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as paredes antigas

da grande abadia erigida no Vale de Nightshade cm honra a Santa Maria, hoje um edifício decaído com o arco alquebrado, torre, imagens, árvores vivas,

uma cena santa!32

Em meio à natureza vegetal — que fermenta depois de uma chuva, pinga, sussurra e suspira; em outras palavras, vive —, eleva-se o canto da carriça nas ruínas abertas da nave da igreja, acima dos ciclos do tornar-se e deixar de ser, e anuncia a duração supratemporal do local:

31 William Gilpi,

Essays on Picturesque Travel.

Londres, 1792, p. 46. 32 William Wordsworth,

Prelúdio II,

pp. 103-8.

ESPAÇOS DA R E C O R D A Ç Ã O

that single Wren

Which one day sangso sweetly in the Wave O f the old church [...] that there I could have made My dwelling-place, an d livedfor ever there

To hearsuch music.

aquela pequena carriça cantou tão docemente na nave

da velha igreja [...] que eu poderia ter feito

daquele lugar minha morada, e lá viver para sempre a ouvir tal música.

A ruína pitoresca romântica remete menos ao passado que a uma duração supratemporal. N o estado de ruína a cultura se aproxima da natureza. Para que as ruínas possam ser lidas como sumário de um passado específico não é ne­ cessário um olhar estético, mas sim o olhar curioso do antiquário. Nesse con­ texto, faz-se iluminadora a observação feita por um membro do grupo da viagem de Cícero, em meio ao passeio em comum. Ele distinguiu um olhar legítimo e um olhar ilegítimo sobre o passado:

Então disse Piso: “Claro, Cícero, esses interesses só apresentam envergadura inte­ lectual quando se prestam à imitação de homens distintos, do contrário não despertam mais que mera curiosidade, quando se trata de reconhecer os vestígios de eras passadas”.

{studia ingeniosorum... studia curiosorum, V.6)

Não se considera legítimo um estudo do passado que tencione obter mero saber; do abismo do esquecimento só se deve resgatar algo passado quando se tenciona vitalizar tal coisa e dar-lhe continuidade. Piedade é a atitude com que cabe voltar-se ao passado./A_mera curiosidade de antiquário distingue-se clara­ mente de uma consciência viva da tradição. Petrarca e Colonna, apesar da obs­ curidade crescente dos tempos, aprenderam a ler os sinais das ruínas com essa devida piedade, e revitalizaram o passado em sua recordação. Ambos corporifi- cam a pretensão classicista de uma cultura que constrói, por sobre os tempos obscuros do esquecimento, uma ponte da tradição e da recordação.

Quando desaba esse nexo da recordação e transmissão de uma tradição que se mantém viva, também os locais da memória se tornam ilegíveis. Com isso, no entanto, também podem vir à tona novos modos de leitura. A curiosidade as­ sume a atitude piedosa. Locais honoríficos tornam-se cenários arqueológicos cuja decodificação demanda a competência de especialistas. Onde antes com­ pareciam peregrinos, amontoam-se agora epígrafos, arqueólogos e historiadores

L OC AI S

e assumem o negócio laborioso da proteção dos vestígios em nome da sanha por saber a que Cícero se opôs. O espírito histórico de pesquisador se desenvolve às custas de romper com a tradição de passados normativos e esquecê-la. “A medição histórico-cultural do tempo”, descreve George Kubler em seu livro D ieForm der

Zeit [A forma do tempo]33, “baseia-se principalmente em fragmentos de objetos: fragmentos destruídos provenientes de aterros de lixo e cemitérios, de cidades abandonadas e vilarejos soterrados”. Isso significa que a memória perdida se transfere para os locais? Ainda é possível alcançar indiretamente, por meio de objetos remanescentes, o que não mais se alcança por meio das recordações? O princípio da asseguração metódica dos vestígios baseia-se na confiança de que seja assim. Ela constitui, para além do gradual declínio temporal, uma consciên­ cia histórica em relação ao passado que já nada tem a ver com a consciência viva que Cícero ou Petrarca cultivaram em face da tradição.

Quando se observa a Arqueologia nos seus primórdios, no entanto, borra-se com facilidade a fronteira entre piedade e curiosidade. Como exemplo notável cabe considerar a obra do pintor arquitetônico italiano Giovanni Battista Piranesi. Em 1756 foram publicados quatro volumes em fólio sob o título Le

Antichità Romane. O autor tinha nada menos que a pretensão de haver resgatado “os rastros da cidade eterna dos danos e das feridas do tempo” (VRBISAETERNA

/ VESTIGIA/ERVDERIBUS/ TEMPORVMQUEINIVRIIS/ VINDICATA). No

título em latim, as palavras “vestígios” e “salvar” são especialmente destacadas pelo posicionamento isolado e sinalizam do modo mais compacto possível um projeto de antiquário extremamente ambicioso. O artista, com mais de 250 águas-fortes, quis fazer retroagir a obra destruidora do tempo e fazer Roma ressuscitar na fantasia. O empreendimento foi movido por uma forte experiên­ cia de destruição e perda. Piranesi constatou o rápido declínio a que estavam expostos os sítios de escavação amplos, mas bastante destruídos, cindidos pelas vias de acesso a Roma. A Erínea do desaparecimento desencadeou nele uma notável energia de conservação. Tudo que apresentasse uma materialidade tridi­ mensional e se revelasse exposto a um declínio irrefreável podia ao menos ser registrado pela escrita e pela imagem — graças a técnicas modernas de repro­ dução, como livros impressos e água-forte — e, desse modo, conservar-se para a posterioridade. Aqui, escrita e imagem, monumento e livro não competem mais como diferentes media de memória; é muito mais o livro que possibilita uma vida póstera ao monumento, mesmo que este prescinda por completo de sua substância. N o prefácio, Piranesi explica a intenção de seu projeto visto como uma obra memorial:

33 George Kubler,

Die Form der Zeit,

p. 47.

ESPAÇOS DA R E C O R D A Ç Ã O

Então percebi que os restos das antigas edificações de Roma, que em grande parte estão dispersos sobre os jardins e outras áreas usadas para plantações, encolhem dia após dia, em parte por causa da devastação pelo tempo, em parte por causa da avareza dos proprietários, que com uma indiferença bárbara tratam de demolir as ruínas clandes- tinamente e vender as pedras para uso em construções novas; assim, assumi para mim a tarefa de preservar na prensa o que ainda resta. [...] Foi por isso que, com todo o cuidado, retratei nos volumes que ora apresento os objetos remanescentes aqui mencionados; em muitos deles tratei não apenas de reproduzir sua figura exterior, mas também a planta baixa e o interior; por meio de cortes e perfis distingui cada uma de suas partes e indiquei os materiais de construção, ocasionalmente também as técnicas empregadas em cada edifício. Esse discernimento técnico, eu o adquiri no decorrer de muitos anos de observações, escavações e investigações minuciosas e incansáveis34.

Piranesi observou as ruínas de Roma de um jeito diferente de Petrarca e Co- lonna; enquanto eles se referem a um círculo estreito de objetos históricos e le­ gendários remanescentes, ele estende sua atenção também aos monumentos anô­ nimos e não aparentes, cuja fragilidade e desproteção ele conheceu. N o olhar de Piranesi as ruínas perderam a consistência robusta como portadoras alegóricas de signos e se tornaram um objeto volátil. A ruína não é mais um sustento seguro

Giovanni Battista Piranesi, Le Antichità Romane (1756)

34 Apud Norbert Miller,

Archäologie des Traums. Ein Versuch über Giovanni Battista Piranesi

[Arqueologia do sonho. Um ensaio sobre G. B. P.]. Munique, 1994, p. 159.

L O C A I S

da recordação para um passado invisível, mas o próprio objeto da recordação, da conservação, do levantamento e da reconstrução. Seja qual for a avaliação que hoje prevaleça ante a façanha antiquaria de Piranesi, a precisão pedante com que ele reuniu e avaliou a tradição oral escrita e, ao fazê-lo, acolheu medidas, planos, detalhes e opiniões, não deixa dúvida de que sua documentação dos memoriais estava mesmo baseada em uma ética da publicação arqueológica.

O que diferencia Piranesi dos arqueólogos modernos, no entanto, é o fato de ele atribuir à imaginação tanta importância quanto à recordação. É na obra que mais tarde lhe garantirá fama que ele logra fundir ciência e fantasia. Trata-se da versão expandida de Vedute di Roma, que ele publicou por sua própria editora em 1760. Nessa obra, adota o antigo ciclo dos Carceri, projetos fantásticos de casas de detenção que tanto avivaram a fantasia romântica. Na nova edição, porém, esses esboços foram profundamente retrabalhados em seu estilo; o ele­ mento lúdico e o caráter de improviso dão lugar a uma maior clareza e intensi­ ficação do peso e da força impressivos. A mudança mais importante consiste em que as construções de cárceres, antes projetadas no espaço livre da fantasia, ga­ nham agora uma indicação histórica, datadas no antigo império romano. Com isso elas alcançam o status de um marco lendário da imaginação histórica, e co­ mo tal foram admiradas pelos românticos. As construções dos cárceres apresen­ tam uma “arqueologia do sonho” (Norbert Miller), tanto na condição de ar­ quitetura labiríntica virtual da alma humana quanto na condição de substrução oculta, mas duradoura, do império romano, como vãos e abóbada subterrâneos que permanecem subtraídos à consciência histórica e se descortinam somente ante a imaginação histórica. Em sua nova versão, as Carceri dlnvenzione são um exemplo grandioso da investigação “de uma contrarrealidade soterrada sob a superfície do mundo vivido”35.

Quando Edgar Allan Poe, um século depois, descreveu a experiência do tu­ rismo histórico romano, o contato com o passado condensava-se sobre a aura dos objetos remanescentes. N o Coliseu, não é mais a curiosidade que move o visi­ tante e também lhe é estranho um fervor por preservar os objetos. Entre pedras, escombros de colunas e alicerces, ele se concentra unicamente em sua imagina­ ção. Abandona-se, para tanto, a um grande número de sensibilidades bastante vagas. Abstração e ênfase são as características indubitáveis de uma poesia que tenta fixar essas emoções:

35 Idem, op. cit., p. 151.

ESPAÇOS DA R E C O R D A Ç Ã O

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