• Nenhum resultado encontrado

A ideia de liberdade

No documento JEAN EDUARDO AGUIAR CARISTINA (páginas 62-66)

2. TURBOCAPITALISMO

2.4. A ideia de liberdade

O mercado trata “livre iniciativa” e “livre concorrência” como faculdades conferidas aos agentes para atuarem segundo seus próprios interesses, balizados por regras que se limitem a regular o direito de propriedade, já que, intrínseca à ideia de competição, obrigatoriamente, está a de regramento. Já para a sociedade, são autorizações para que o mercado aumente a eficiência visando a geração de bem-estar, permitindo às pessoas optarem pelo consumo daquilo que, a um só tempo, lhes pareça mais interessante, dentro de critérios mais ou menos racionais.

Eros Roberto Grau considera que “[...] a livre iniciativa não é tomada, enquanto fundamento da República Federativa do Brasil, como expressão individualista, mas sim no quanto expressa de socialmente valioso”162. Já a livre concorrência “[...] supõe desigualdade

160 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Op. cit., p. 10.

161 São várias as formas de classificação das motivações de consumo. Conforme Eliane Karsaklian é possível

classificar as teorias da motivação em: (i) Teoria Behaviorista - iniciada por John B. Watson, tem como ponto central o impulso, assim considerado como a força que “impele à ação, atribuível às necessidades primárias”. Para esta teoria, todo comportamento humano é orientado pelo impulso; (ii) Teoria Cognitivista - para esta teoria, reconhece-se que o comportamento e seu resultado “dependerão tanto das escolhas conscientes do indivíduo, como dos acontecimentos do meio sobre os quais ele não tem controle e que atuam sobre ele”; (iii) Teoria psicanalítica - o fundador desta teoria foi Sigmund Freud, para quem os “instintos foram classificados por ele em instintos de vida, responsáveis pela autoconservação, como a fome e o sexo, e instintos de morte, comportamentos destrutivos, como a agressão” (KARSAKLIAN, Eliane. Comportamento do Consumidor. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2004, p. 26-29).

ao final da competição, a partir, porém, de um quadro de igualdade jurídico-formal”163. À toda evidência, espera-se certa racionalidade no exercício dessas liberdades positivas, muito embora, na prática, não sejam exercidas com a plena consciência de todos os agentes. Isso porque, os integrantes do mercado têm em comum a busca do prazer, que se apega na conquista das coisas pela mera satisfação de conquistá-las. Essa felicidade artificial se afasta completamente do prazer ético idealizado por Epicuro164, pois não é inato, tampouco estável, já que mantido apenas na constância do bem, do lucro ou do desenvolvimento econômico.

Amartya Sen, debatendo a questão do autointeresse, alerta para o fato de a economia ter caminhado num sentido único:

O contato com o mundo exterior tem ocorrido principalmente na forma de um relacionamento de mão única, no qual se permite que as conclusões da economia preditiva influenciem a análise da economia do bem-estar, mas não se permite que as ideias da economia do bem-estar influenciem a economia preditiva, pois se considera que a ação humana real tem por base unicamente o auto-interesse, sem impacto algum de considerações éticas ou de juízos provenientes da economia do bem-estar.165

Joseph Stiglitz considera que os indivíduos até podem atuar coerentemente, porém, “[...] marcadamente diferente da prevista pelo modelo-padrão da racionalidade”166

. A irracionalidade, para o autor, é uma arma nas mãos do setor financeiro, que já descobriu que a maior parte dos indivíduos não lê ou não entende o que está escrito nos contratos.

Na mesma direção, António José Avelãs Nunes vê muito pouca racionalidade nos

Paulo: Revista dos Tribunais, p. 221.

163 Ibidem, p. 229.

164 O prazer, para Epicuro, é o primeiro bem, o bem inato. Toda escolha ou recusa deriva de quanto prazer está

em jogo. Conforme o filósofo “Nem a posse das riquezas nem a abundância das coisas nem a obtenção de cargos ou o poder produzem a felicidade e a bem-aventurança; produzem-na a ausência de dores, a moderação nos afetos e a disposição de espírito que se mantenha nos limites impostos pela natureza. A ausência de perturbação e de dor são prazeres estáveis; por seu turno, o gozo e a alegria são prazeres de movimento, pela sua vivacidade. Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-nos aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como crêem certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma”. (EPICURO, LUCRÉCIO, CÍCERO, SÊNECA e MARCO AURÉLIO. Coleção Os Pensadores. 3ª edição. Tradução: Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni, Jaime Bruna. São Paulo: Abril S.A. Cultural, 1985, p. 56-57)

165 SEN, Amartya. Sobre Ética e Economia. Op. cit., p. 45.

166 Stiglitz dá um exemplo da irracionalidade do indivíduo: “Muitos proprietários que tentam vender suas casas

mostram uma irracionalidade similar. Recusam-se a vender a propriedade a menos que recebam uma soma igual ou maior do que a que pagaram por ela. Suponhamos que a casa custou 100 mil dólares e que, ao preço atual de mercado, valha 90 mil. A inflação, no entanto, faz aumentar todos os preços ao ritmo de 5% ao ano. Muitos proprietários preferirão esperar dois anos – com grandes inconvenientes no período – até que o preço da casa suba para o nível dos 100 mil dólares, embora, em termos reais, não adianta nada esperar.” (STIGLITZ, Joseph E. O mundo em queda livre: os Estados Unidos, o mercado livre e o naufrágio da economia global. Op. cit., p. 357)

mercados. Sua análise sobre as bolsas de valores demonstra que, em 1999, a soma de ações emitidas nas bolsas de Nova York era de cem bilhões de dólares, ao passo em que o valor das ações transacionadas chegava à cifra de 20,4 trilhões de dólares. Sua conclusão é de que “[...] só 1% dos valores transacionados em bolsa representam novo capital para as sociedades cotadas em bolsa; 99% dos negócios bolsistas são jogos de casino. As bolsas são a alma do capitalismo de casino”167. Opinião semelhante é oferecida por Rabah Benakouche, que assevera que as economias de cassino não têm regra. É o poder hegemônico que dita o que o mundo deve fazer168.

Vilfredo Pareto não trata da racionalidade propriamente dita, embora demonstre que certos dogmas da livre concorrência definham diante de uma situação irregular de mercado. É que a economia livre considera não-lógica a prática de ações empresariais que desassociam o fim objetivo, do subjetivo, isto é, “[...] se estas empresas têm um monopólio, tais ações se tornam lógicas”169. A lógica do mercado, portanto, faz da irracionalidade dos consumidores o instrumento para estabelecer uma aparente ordem, que só existe sob o ponto de vista do mercado.

Para Ha-Joon Chang, as liberdades são mera definição política, pois jamais existiram mercados inteiramente livres170. Nesse sentido é também o pensamento de Vital Moreira171, para quem não há uma liberdade absoluta nem mesmo os autodenominados liberais, confirmando, portanto, que a ordem instituída pelos mercados estabelece um subsistema, que tende a responsabilizar o Estado pelo excesso de restrições, mesmo que elas não existam, procurando a isenção da culpa por eventuais falhas172.

Fábio Nusdeo registra que os liberais de hoje só têm a opção de externar sua preferência quanto aos limites da intervenção, não sendo mais viável rejeitar a presença do

167 NUNES, António José Avelãs. A crise atual do capitalismo: capital financeiro, neoliberalismo, globalização.

Op. cit., p. 41.

168 BENACOUCHE, Rabah. Globalização ou pax americana. In ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de;

RAMOS, Alexandre Luiz (org.). Globalização, neoliberalismo e o mundo do trabalho. Curitiba: IBEJ, 1998, p. 12.

169 PARETO, Vilfredo. Sociologia. Organizador: José Albertino Rodrigues. Tradução: Ruy R. Cunha. São Paulo:

Ática, 1984, p. 51.

170 Ricardo Sayeg e Wagner Balera demonstram que “[...] já a partir do século XIX, na Europa e nos Estados

Unidos da América, a certeza quando à aptidão do mercado para autorregular-se passou a ser minada. Apesar de reconhecer as liberdades pela filosofia do laissez-faire, a disciplina jurídica positiva da ordem econômica começou a fixar alguns regulamentos e restrições sobre a atividade mediante o Merchandising Markets Act, destacando-se ainda o Medical Act de 1858; nos Estados Unidos da América a lei antitruste, o Sherman Act, foi promulgada em 1890.” (SAYEG, Ricardo Hasson; BALERA, Wagner. O Capitalismo Humanista: filosofia humanista de Direito Econômico. Op. cit., p. 54)

171 MOREIRA, Vital. Auto-Regulação Profissional e Administração Pública. Coimbra: Almedina, 1997, p. 19. 172 CHANG, Ha-Joon. 23 coisas que não nos contaram sobre o capitalismo. Op. cit., p. 22.

Estado173. Estevão Riegel pontifica que os governos autodenominados neoliberais mantêm um Estado forte justamente para intervir nas relações entre público e privado174. A substituição de uma liberdade absoluta do mercado pela liberdade supostamente regulada é observada por André Ramos Tavares175 como um fundamento da nova economia.

Os mercados podem até se sujeitar, em certa medida, à regulação estatal, muito embora, por não acompanharem a velocidade inata do turbocapitalismo, jamais conseguem estabelecer uma ordem ampla que coordene efetivamente as ações dos agentes, permitindo, assim, o estabelecimento de uma subordem que tende a se autodenominar “ordem econômica”. Neste sentido, é a observação de Edward Luttwak quanto a possível semelhança do turbocapitalismo americano com a versão soviética do comunismo. O primeiro “[...] também oferece um único modelo e conjunto de regras para todos os países do mundo, ignorando as diferenças sociais, culturais e de temperamento”176.

Milton Santos denomina este subsistema de “despotismo do consumo”, ao reconhecer que “[...] a produção do consumidor, hoje, precede à produção dos bens e dos serviços. [...] Então, na cadeia causal, a chamada autonomia da produção cede lugar ao despotismo do consumo. Daí o império da informação e da publicidade”177. No mesmo sentido, Jean Baudrillard pontua que “[...] os objetos se apresentam antes de terem sido adquiridos, antecipam-se à soma dos esforços e do trabalho que representam [...]”178.

Quanto maior o desejo de liberdade, mesmo que não se a conheça, maior a propensão dos povos a aceitarem o imperialismo do mercado e a imposição do consumo como a única forma admissível de comunhão com o mundo economicamente ativo, com total desatenção aos demais aspectos que formam o indivíduo, a exemplo de sua cidadania. Para Baudrillard

Consumismo e competitividade levam ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa, à redução da personalidade e da visão do mundo, convidando, também, a esquecer a oposição fundamental que há entre a figura do consumidor e a figura do cidadão. É certo que, no Brasil, sentimos menos, ou quase nada, tal oposição, porque em nosso país jamais houve a figura do cidadão. As classes médias jamais quiseram ser cidadãs; os pobres jamais puderam ser cidadãos. As classes medidas foram condicionadas a querer apenas privilégios, e não direitos.179

173 NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: introdução ao Direito Econômico. Op. cit., p. 212.

174 RIEGEL, Estevão. Globalização, neoliberalismo e flexibilização: direitos e garantias. Op. cit., p. 137. 175 TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. Op. cit., p. 45.

176 LUTTWAK, Edward. Turbocapitalismo: perdedores e ganhadores na economia globalizada. Op. cit., p. 49. 177 SANTOS, Milton. As formas da pobreza e da dívida social. Momento Nacional (textos). Brasília (DF):

Secretaria Nacional – CNBB, 1999, p. 9.

178 BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Tradução: Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo: Perspectiva,

2012, p. 168.

Segundo o escólio de José Pereira da Silva, o consumo, do ponto de vista das liberdades econômicas, deveria estar umbilicalmente ligado a uma ampla política de crédito, onde o Estado, por meio de intervenções e adoção de medidas de regulação, e o mercado, a quem compete a decisão última de fornecer crédito, atuariam diretamente no nível de consumo da sociedade180 e, consequentemente, haveriam de compartilhar a responsabilidade pelas externalidades positivas e negativas.

O discurso de liberdade adotado pelos mercados não passa do estabelecimento forçado de uma ordem que, apesar de respeitar as débeis regulações, impõe tamanha velocidade e dinâmica à economia que, facilmente, livram-se dos balizamentos estatais e determinam uma subordem que passa a ser a ordem vigente, a ordem do mercado, do mercado turbocapitalista. É o que Michael Sandel denomina liberdade como meio, e não como fim181.

Não é um mundo sem Estado, mas um mundo em que o Estado não acompanha a velocidade do mercado182, tampouco impede que a irracionalidade dos consumidores provoque graves crises. É inevitável que o crédito, como produto de instigação do mercado, seja cada vez mais utilizado por consumidores ávidos por consumir.

No documento JEAN EDUARDO AGUIAR CARISTINA (páginas 62-66)