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3.1 JUSTIÇA COMO EQUIDADE COMO CONCEPÇÃO

3.1.1 A concepção política de justiça e as principais ideias

3.1.1.1 A ideia de pessoas como cooperadores sociais

Em resposta a alguns críticos, que apontam a posição original como pressupondo uma concepção metafísica de pessoa, Rawls defende que a concepção de pessoa, tal como pressuposta na posição original, é política e não metafísica. É no artigo Justiça como equidade: política não metafísica que Rawls procura, pela primeira vez depois de TJ, apresentar esse esclarecimento, adicionando à nova interpretação da justiça como equidade como concepção política a ideia de que a

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Em TJ (§24 e §46) não está implícita a interdependência das ideias de racionalidade e razoabilidade nem é destacada a sua importância para a compreensão da ideia de cooperação social, assim como não é desenvolvida a noção de doutrina abrangente razoável e a importância desses elementos para a estabilidade.

concepção de pessoa também deve ser interpretada como política e não metafísica138

.

O problema passa a ser com a defesa da concepção política de justiça e a preocupação da busca de um consenso entre doutrinas abrangentes, o que não permitiria a sua fundamentação em pressupostos metafísicos.

A concepção de pessoa como sujeito político (e não metafísico) é relacionada à ideia de sociedade como sistema equitativo de cooperação. Nas palavras do autor, pessoa é aquele que “[...] é capaz de participar ou de desempenhar um papel na vida social e, por conseguinte, de exercer e respeitar seus diferentes direitos e deveres” (RAWLS, 2011, p. 21), podendo ser um cidadão.

Compreender a pessoa como cidadão significa compreendê-lo como “[...] um membro normal e plenamente cooperativo da sociedade ao longo da vida inteira” (RAWLS, 2011, p. 21-22). Aqui, é importante levar em conta a ideia de sociedade que, de acordo com Rawls, deve ser compreendida como um sistema de cooperação mais ou menos completo e autossuficiente. O que isso significa? As pessoas já nascem em sociedade – não decidem fazer parte dela num determinado momento de suas vidas – e nela passarão o resto de suas vidas. É no interior da sociedade que vão se desenvolver todas as atividades, desde o nascimento até a morte do cidadão. Além disso, a sociedade precisa ser compreendida como possuindo existência perpétua, ou seja, que se

mantém, juntamente com as suas instituições, ao longo de gerações139

. Mas o que muda em relação à concepção de pessoa apresentada em TJ? Além do esclarecimento de que se trata de uma concepção política, outros elementos são mais bem desenvolvidos ou ressaltados em relação à concepção de pessoa de TJ. Veremos alguns desses aspectos a seguir. Como o ponto de partida do LP e outras obras de segunda fase é a tradição do pensamento democrático, o autor também caracteriza as pessoas como livres e iguais. Além disso, como pensa o conceito de pessoa e o de justiça como estando, de alguma forma, unidos, acredita que as pessoas sejam capazes de atuar tanto razoável

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No artigo A estrutura básica como objeto, apesar de esclarecer o aspecto da liberdade e igualdade das pessoas enquanto sujeitos morais, a apresentação da concepção de pessoas como política ainda não aparece. Cf. RAWLS, John. A estrutura básica como objeto. In: Justiça e democracia. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 1-42.

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Cf. RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 22.

quanto racionalmente, o que implica em compreendê-las como capazes de participar de uma cooperação social entre pessoas consideradas dessa maneira.

Mas, o que pretende o autor quando fala de pessoas livres e iguais? Essa caracterização está relacionada à sua ideia básica é de que os cidadãos estão envolvidos na cooperação social e são absolutamente capazes de fazê-lo por toda a vida. Como tais, as pessoas possuem duas faculdades morais, quais sejam: a capacidade de possuir um senso de justiça e a capacidade de formar uma concepção de bem. A capacidade de ter um senso de justiça corresponde à capacidade que o sujeito tem de entender, aplicar e agir de acordo com a concepção pública de justiça (que especifica os princípios de justiça política), a qual caracteriza os termos equitativos da cooperação social. Além disso, o senso de justiça também expressa a disposição e a vontade de se atuar em relação com os outros cidadãos em termos que eles também possam concordar publicamente. Já a capacidade de formar uma concepção de bem corresponde à capacidade da pessoa de formar, revisar e perseguir racionalmente uma concepção de vantagem racional ou de bem.

Quando se diz que as pessoas são dotadas de ambas as faculdades morais, pressupõe-se que tenham tanto a capacidade de envolver-se numa cooperação social mutuamente benéfica por toda a vida, quanto que possam honrar os termos equitativos dessa cooperação.

Quais as implicações da caracterização das pessoas como iguais? As pessoas são vistas como iguais na medida em que todos têm, no grau mínimo necessário, as faculdades morais necessárias para envolver-se na cooperação social a vida toda e participar da sociedade como cidadãos iguais. A base de igualdade entre os cidadãos está no fato de ser detentor de tais faculdades nesse grau140.

E a caracterização das pessoas como livres, o que implica? É importante reafirmar que a ideia de pessoas livres é extraída da cultura política da sociedade democrática, uma vez que a justiça como equidade

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A adoção das duas faculdades morais como fundamento da igualdade política no interior da sociedade indica para a compreensão da “[...] sociedade democrática como uma sociedade política que exclui um estado confessional ou aristocrático, para não falar de um estado de castas, escravocrata ou racista”. Cf. RAWLS, John. Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 29. Rawls destaca como relevante a distinção entre uma sociedade política e as associações existentes no interior da mesma ou a ideia de comunidade. Cf. RAWLS. Idem, p. 28 e 29.

é uma concepção política voltada para essa sociedade. Veremos, a seguir, de que maneira Rawls caracteriza as pessoas como livres.

Em primeiro lugar, os cidadãos são livres por consideram a si mesmos e aos demais como detentores da faculdade moral de ter uma concepção de bem. Dessa maneira, enquanto cidadãos que possuem uma

determinada concepção de bem não estão inevitavelmente

comprometidos com ela, mas podem revê-la e modificá-la assim que o desejarem. Enquanto pessoas livres possuem o direito de serem consideradas como independentes de qualquer concepção de bem e de serem identificadas a alguma dessas concepções de bem ou esquema de fins últimos. Considerando-se sua faculdade moral de formar, revisar e procurar racionalmente atingir uma concepção de bem, sua identidade pública ou legal como pessoas livres não é atingida pelas mudanças que possam vir a ocorrer em relação à sua concepção específica do bem. O que se pretende destacar aqui é a ideia de que a pessoa política possui uma identidade pública que independe da identidade moral. Por consequência, o sujeito pode modificar sua concepção de bem, seu estilo de vida, optando, por exemplo, por mudar de religião, mas continua sendo a mesma pessoa. Sua identidade pública não é alterada.

Em segundo lugar, as pessoas percebem-se a si mesmas como livres enquanto fontes auto suscitantes de reivindicações legítimas. Significa isso que as pessoas sentem-se autorizadas para fazer reivindicações a suas instituições para que as mesmas promovam suas concepções de bem (desde que essas mesmas concepções não conflitem com a concepção pública de justiça). O outro sentido a partir do qual os cidadãos são considerados livres está relacionado ao fato de que as pessoas são consideradas capazes de ser responsáveis por seus fins, o que interfere, e muito, na maneira como são avaliadas suas reivindicações.

É importante frisar que a concepção de pessoa como livre e igual é normativa, de acordo com Rawls, ou seja: “ela é dada por nosso pensamento e nossa prática moral e política, e é estudada pela filosofia moral e política e pela filosofia do direito” (RAWLS, 2003, p. 33). Essa concepção não deve, portanto, ser confundida com a concepção de ser humano tal como a toma a biologia ou a psicologia ou a metafísica. Entretanto, ela é, segundo Rawls,

[...] elaborada a partir da maneira como os cidadãos são vistos na cultura política pública de uma sociedade democrática, em seus textos políticos básicos (constituições e declarações de direitos humanos), e na tradição histórica de

interpretação desses textos (RAWLS, 2003, p. 27).

Rawls esclarece que a utilização da concepção de cidadãos como pessoas livres e iguais pretende ser uma abstração de uma série de características do mundo social. Revela-se aí o que o nosso autor compreende como sendo o papel das concepções abstratas: são usadas para buscar um panorama claro e ordenado de uma questão que é fundamental na determinação da resposta à questão fundamental da filosofia política num regime constitucional democrático, que é a da garantia da igualdade e da liberdade.

Na caracterização das pessoas também é importante acrescentar as faculdades essenciais que são associadas às duas faculdades morais, sendo necessárias para o seu exercício, quais sejam: as faculdades da razão, da inferência e do julgamento.

A diferença entre o razoável e o racional pode ser notada na própria linguagem do dia-a-dia, através de exemplos comuns nos permitem perceber essa diferença. Vejamos o exemplo citado por Rawls: “A proposta que fizeram era perfeitamente racional, dada a posição privilegiada de barganha de que dispunham, mas, a despeito disso, nada tinha de razoável e chegava mesmo a ser ultrajante” (RAWLS, 2011, p. 57). O razoável será tomado com um sentido mais restrito que o racional, justamente devido aos propósitos de uma concepção política de justiça. Assim, ao razoável é associada à disposição das pessoas de propor e sujeitarem-se aos termos equitativos da cooperação e, em segundo lugar, a disposição de reconhecer as limitações impostas pela capacidade do juízo e de aceitar as consequências dessas limitações.

Rawls acrescenta uma observação em relação aos termos razoáveis impostos às partes na posição original, sugerindo que tais termos pretendem contribuir para o esforço de obterem um acordo racional sobre os princípios de justiça. No entanto, nesse caso, a razoabilidade é prioritária, subordinando a racionalidade, o que também

expressa a prioridade do justo141

.

O que Rawls pretende significar quando diz que as pessoas são capazes de atuar tanto racional quanto razoavelmente? A ação “racional” está relacionada à satisfação dos desejos ou fins de alguém. Por isso, os interesses ou fins dos outros somente entram em consideração enquanto fatores que podem promover o interesse próprio,

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Cf. RAWLS, John. Justiça como Equidade: Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 115.

daquilo que é “bom” para mim, levando-me a adotar determinadas “estratégias” que levam à sua realização.

Por outro lado, por “razoável” entende-se o reconhecimento do exercício dos próprios fins diante dos fins moralmente justificados dos outros. Enquanto seres razoáveis, as pessoas estão dispostas a guiar suas ações por um princípio (de equidade) a partir do qual elas e as demais pessoas possam argumentar umas com as outras; as pessoas razoáveis levam em conta as consequências de suas ações para o bem-estar dos demais. Trata-se, portanto, da noção acerca dos “termos equitativos da cooperação”, os quais se espera que todo participante reconheça, ao

supor-se que todos os outros também reconheçam142

.

As pessoas são razoáveis na medida em que se dispõem a propor critérios que constituirão os termos equitativos da cooperação, concordando voluntariamente em submeter-se a esses critérios (princípios de justiça), mesmo que tenham que sacrificar seus interesses, se as circunstâncias o exigirem, tendo em vista a garantia de que os outros farão o mesmo. As normas propostas também seriam razoáveis e,

por isso mesmo, justificáveis a todos143

. Em JFR, Rawls acrescenta que não seria sensato não honrar os termos da cooperação que os outros estão dispostos a aceitar. Menos sensato ainda seria fingir propor tais termos ou fingir atuar de acordo com eles quando a sua disposição é, na verdade, de violá-los com o intuito de buscar seu próprio benefício quando houver oportunidade para isso.

O racional é uma ideia distinta do razoável na medida em que se aplica a um único agente que tem a capacidade de juízo e deliberação e que persegue fins e interesses apenas em seu benefício próprio. Também está relacionada ao racional a maneira como são adotados e afirmados tais fins e interesses, além da escolha dos meios. Os agentes racionais podem selecionar e ordenar os fins que têm em vista de distintas maneiras. No entanto, falta aos sujeitos racionais, segundo Rawls,

[...] a forma específica de sensibilidade moral que está por trás do desejo de se engajar na cooperação equitativa como tal e de fazê-lo em termos que se possa razoavelmente esperar que os outros, na condição de iguais, aceitem (RAWLS, 2011, p. 60).

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Cf. RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 58-59.

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Em outras palavras, falta aos agentes racionais a motivação que os capacita e sensibiliza para a ação razoável.

A teoria da justiça como equidade toma as ideias de racional e de razoável como distintas e independentes. Elas se distinguem na medida em que não se deve nem se pretende derivar uma da outra. O razoável não pode ser compreendido como derivado do racional para a justiça como equidade. Ao contrário, a ideia de cooperação equitativa toma os conceitos de razoável e racional como complementares. Cada um desses elementos (o razoável e o racional) conecta-se a uma faculdade moral distinta, ou seja, o razoável conecta-se à capacidade de ter-se um senso de justiça, enquanto o racional se conecta à capacidade de ter-se uma concepção de bem. Assim, ambos atuam juntos para especificar a ideia de termos equitativos de cooperação.

Compreendidos como ideias complementares, não se pode tomar nem o razoável, nem o racional, independentes um do outro na caracterização das pessoas. Se tomássemos as pessoas como agentes puramente razoáveis, estes não teriam fins próprios a serem realizados através da cooperação equitativa. Por outro lado, agentes concebidos como puramente racionais não possuem sendo de justiça e,

consequentemente, não reconhecem as reivindicações dos outros144.