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A Igreja e a organização dos trabalhadores rurais antes de

As transformações nas relações de propriedade e de produção que avançaram na agricultura no pós-Segunda Guerra Mundial, produziram uma grande efervescência política no campo brasileiro entre 1950 e o golpe militar de 1964. De um lado, os arrendatários , parceiros, meeiros, e outras categorias camponesas não-proprietárias, lutavam pela redução das taxas de arrendamento e outros tipos de renda cobrados pelos fazendeiros. A tendência desses grupos, como já exposto, foi a organização de associações denominadas “Ligas camponesas” que, da luta contra as altas taxas, geralmente evoluíram para a resistência à expulsão, culminando com a luta pela terra. Uma outra categoria, a dos posseiros, se organizaram para resistir à expropriação por parte de grileiros. De outro lado, os assalariados que, muitas vezes, não recebiam os salários em dinheiro e ainda se tornavam verdadeiros prisioneiros dos patrões por causa de dívidas impagáveis, lutavam pelos seus direitos e pela extensão da legislação trabalhista ao campo. Essa categoria tendeu, gradativamente, a se organizar em sindicatos.

Essa mobilização quase generalizada dos trabalhadores produziu inúmeros eventos em nível regional e nacional, culminando com a criação da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), em 1954, sob orientação do PCB, a realização do I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas e Lavradores, em Belo Horizonte, Minas Gerais (15 a 17 de novembro de 1961), e a fundação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (22 de dezembro de 1963). A criação da Contag foi, em larga medida, uma vitória do PCB sobre a sua principal concorrente pelo controle das organizações sindicais, a Igreja Católica. Pelo menos até o início da década de 1960 os comunistas foram a força hegemônica no sindicalismo rural,131 passando, a partir do V Congresso do partido (1960), a priorizar os assalariados, afastando-se das “ligas”.132 Dessa época em diante, passa a contar com a decidida concorrência dos militantes católicos no setor.

131

Cf. MEDEIROS, Leonilde Sérvolo. op. cit. pp. 48-49.

132

Esse afastamento do PCB em relação às “ligas camponesas” colocou os dois grupos em pólos opostos, a partir do Congresso de Belo Horizonte, onde os delegados das “ligas” fizeram aprovar a proposta da “reforma agrária radical”, contra a dos comunistas de reforma com medidas parciais. Ver BASTOS, Elide Rugai. op. cit. 100-101 e 123-125; MEDIROS, Leonilde Sérvolo. Op. cit. pp. 54-56; MARTINS, José de Souza. Os

O envolvimento da Igreja com a organização e a educação política dos trabalhadores rurais em sindicatos, assim como a proposição da reforma agrária, teve como motivação o combate ao avanço do comunismo no campo. Da mesma forma que preconizavam uma “reforma agrária cristã”, lutavam pela criação de “sindicatos cristãos”. O referencial político era a doutrina social da Igreja. Os primeiros experimentos em formação de sindicatos católicos na história datam da década de 1880, na França.133 Mas foi com a publicação da encíclica Rerum novarum (1891) que o tema teve formulação oficial. A partir de então, os agentes católicos passaram a se empenhar ostensivamente, na criação de sindicatos operários. Segundo Amado (op. cit.), o ‘sindicalismo cristão’ representou a “tentativa de empreender um ‘catolicismo militante’, tentando superar a mentalidade anticlerical das classes dirigentes, enfrentando as ‘idéias subversivas e revolucionárias’ e defendendo-se da ideologia liberal”.134 Inicialmente, “numa perspectiva de cristandade militante”.Em síntese, tratava-se da apropriação de uma criação da sociedade moderna para combater seus mais danosos produtos, do ponto de vista da instituição: o liberalismo anticlerical e o socialismo ou comunismo ateu. No Brasil, o envolvimento da Igreja na organização operária foi inaugurado com a criação dos Círculos Operários, pelo padre Leopoldo Brentano, na cidade de Pelotas (Rio Grande do Sul), em 1932,135 e da Juventude Operária Católica (JOC).136 Ainda na década de 1930, criou a Confederação Nacional dos Círculos Operários (CNOP). A estreita colaboração da Igreja com o governo Vargas permitiu que a entidade fosse transformada em órgão técnico e consultivo do Ministério do Trabalho, em 1941.

Embora a criação das primeiras pastorais agrárias, no Brasil, date de 1950, com a organização da Ação Católica Rural e da Juventude Agrária Católica (JAC), somente em 1960 foi iniciada a ação sistemática de formação de sindicatos no campo. A iniciativa coube aos bispos do Rio Grande do Norte, que criaram o setor de sindicalização ligado ao Serviço de Assistência Rural (SAR), que desde 1958 desenvolvia o trabalho de formação de lideranças rurais, utilizando escolas radiofônicas.137 Já no ano seguinte (1959), a CNBB propôs que a experiência fosse estendida para todo o país.138Daí por diante, padres e bispos se lançaram na

133

Cf. AMADO, Wolmir Therezio. op. cit.. p. 111.

134

Idem. p. 112.

135

Cf. BANDEIRA, Marina. Op. cit. p. 49.

136

Cf. MAINWARING, Scott. Op. cit. p. 49.

137

Cf. GUIMARÃES, Maria Tereza Canesin. Op. cit. p. 75.

138

empreitada da sindicalização dos trabalhadores rurais:

 Em junho de 1961, cria-se o Serviço de Orientação Rural de Pernambuco pelo

arcebispo do Recife, que envolveu, de início, 25 padres;

 Em agosto do mesmo ano, prelados do norte do Paraná criaram a Frente

Agrária Paranaense (FAP)139;

 Em 30 de março de 1962, agentes católicos, liderados pelo arcebispo de

Goiânia, D. Fernando Gomes dos Santos, fundam a Frente Agrária Goiana (FAGO).140

Os principais objetivos dessas organizações eram formar lideranças e promover a sindicalização dos trabalhadores rurais.141 Entretanto, até onde se sabe, nenhuma delas contava com trabalhadores do campo em sua coordenação. Ao contrário disto, por vezes, fazendeiros ocupavam em sua direção importantes cargos. Na verdade, a intenção dos seus idealizadores era congregar desde assalariados, camponeses não-proprietários (arrendatários, parceiros, meeiros, agregados etc.), pequenos proprietários até os grandes proprietários. A Igreja pretendia que fossem organizações pan-classistas, como a própria Instituição, capazes de promover a “fraterna harmonia” entre os socialmente desiguais. O clero, enquanto intelectual tradicional, sempre procura projetar no imaginário social a sua auto-representação de agente supra-classista. O problema é que a própria Igreja é atravessada pelos conflitos entre interesses e visões de mundo antagônicos, porque, antes de mais nada, a Igreja é uma instituição histórica. As contradições sociais que se aprofundavam nos anos 1950/60 na sociedade brasileira, particularmente no campo, trataram de pôr em xeque as tentativas da Igreja de conciliação entre as classes rurais. Em 1964, os próprios agentes católicos ajudaram a sepultar suas iniciativas, ficando do lado da classe dominante contra os dominados, ao apoiar os golpistas.

Quanto aos meios empregados pelos agentes católicos para a formação política dos trabalhadores rurais, um deles se destaca: o MEB. Quando instituído com essa denominação, por meio de um convênio com o governo federal (Decreto nº 50.370, de 21 de

139

Idem.

140

Cf. GUIMARÃES, Maria Tereza Canesin. Op. cit.; AMADO, Wolmir Therezio. Op. cit.

141

A Frente Agrária Goiana se comprometia, também, a estudar a questão agrária e lutar por uma legislação para o setor. Cf. GUIMARÃES, Maria Tereza Canesin. Idem. p. 115.

março de 1961), a experiência da alfabetização por meio do rádio já era realizada em outros estados do Nordeste. O convênio estendia o serviço aos estados das regiões Norte e Centro- Oeste, além dos estados do Nordeste. Era nessas regiões que se encontrava a maior proporção de jovens e adultos analfabetos.

Segundo autoformulação do Movimento, o objetivo central do MEB era a “promoção do homem”. Nessa educação básica se incluía a formação política do trabalhador rural, grupo social para o qual estava orientado prioritariamente, tendo em vista estimulá-lo a se organizar em sindicatos ou outras formas de associação de classe. Mas foi a partir de 1962 que, pressionada pelos bispos, de acordo com versão de Bandeira (uma ex-militante do Movimento),142 a equipe do MEB assumiu sistematicamente a tarefa da sindicalização rural. Essa instigação dos bispos se deveu ao acirramento da competição com os comunistas pelo controle do sindicalismo no campo. Em Goiás, segundo Guimarães, o Movimento nunca assimilou totalmente essa função, dando prioridade ao “trabalho estritamente ‘educativo’”.143

A partir de 1962, a luta dos militantes católicos pela criação e reconhecimento oficial dos sindicatos se ampliou para o esforço de constituição de federações regionais e estaduais e de uma confederação nacional. Naquele ano, o governo federal baixou algumas Portarias regulamentando o processo de reconhecimento de entidades sindicais rurais. Em março de 1963 foi sancionada a lei que instituiu o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR, Lei nº 4.214), que estendeu os direitos trabalhistas ao campo. Já em outubro de 1962, as federações controladas por militantes católicos, antecipando-se às demais forças, tentaram criar uma confederação nacional, mas foram frustrados, pois o Ministério do Trabalho não a reconheceu, sob justificativa de que outras federações, ainda não oficializadas, desejavam ser incluídas no processo. Somente no final do ano seguinte a Contag foi criada num congresso instituinte. Das 26 federações fundadoras, dez eram controladas pelo PCB, oito pela Ação Popular (AP)144 – organização de esquerda originária de dissidência da Juventude Universitária Católica – seis pelos católicos e duas que se posicionavam como ‘independentes’.145 Por deter maior número de federações, os comunistas indicaram o presidente e o tesoureiro da nova entidade, enquanto a AP ficou

142

Cf. BANDEIRA, Marina. Op. cit. p. 335.

143

GUIMARÃES, Maria Tereza Canesin. Idem. p. 117.

144

Sobre a origem e trajetória da Ação Popular, ver MAINWARING, Scott. Op. cit. pp. 85-57; LIMA, Haroldo e ARANTES, Aldo. História da Ação Popular: da JUC ao PC do B. São Paulo: Alfa-Omega, 1984.

145

com a secretaria geral. Os vitoriosos não tiveram tempo de consolidar a Confederação, pois dois meses após a sua oficialização perderam-na para o novo regime que se instalou no país.

Ao comparar as práticas do sindicalismo católico com as dos comunistas, no que se refere à “lógica da criação dos sindicatos rurais e o seu funcionamento”, Guimarães (op. cit.) afirma que “não houve diferenças significativas” entre as duas vertentes. “A tônica”, diz a autora, “consistia em fundar sindicatos nos mesmos moldes e espírito dos sindicatos operários urbanos”, isto é, nos limites das ‘técnicas populistas’, que impunha a burocratização das relações sociais através do enquadramento das entidades na legislação criada polo Estado corporativista.146 Essas práticas se referenciavam na concepção leninista (no caso de PCB) e da cristandade (no caso dos católicos) de que as massas populares necessitam de alguém que interprete a realidade corretamente e lhe dê consciência clara da sua condição e do seu papel histórico. Martins é mais taxativo na avaliação da atuação desses agentes externos junto às massas trabalhadoras do campo. Para ele, esses atores cumpriram o papel de “evitar uma revolução camponesa no Brasil”, tanto os católicos quanto os comunistas.147

Se este foi o significado da intervenção dos agentes católicos nos movimentos e lutas dos trabalhadores rurais, também é inegável que aqueles tiveram suas concepções e práticas alteradas em virtude desse envolvimento. A conjuntura dramática dos anos da ditadura contribuiu para aguçar ainda mais essas mudanças. A irracionalidade da violência dos governos militares fez com que o Estado perdesse uma importante aliada e ganhasse uma opositora. A reconciliação ainda não ocorreu de forma completa, visto que alguns dos fatores que contribuíram para que essa situação ocorresse, como é o caso da não solução da questão agrária e da questão sociopolítca no campo, ainda persistem.

146

Cf. GUIMARÃES, Maria Tereza Canesin. Op. cit. p. 125.

147