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CAPÍTULO II: A TEOLOGIA CRISTÃ E O MUNDO DAS IMAGENS

5. A imagem e o intellectus agens no pensamento de Dietrich de

Dietrich de Freiberg foi membro de um grupo restrito de pensadores dominicanos alemães (os Dominikanerlektoren) e um “defensor combativo de sua posições antitomistas”221. Apesar disso, exerceu grande influência no ambiente acadêmico e usufruiu de certa imunidade, o que não deixa der ser surpreendente se confrontado com o destino de Meister Eckhart. O contexto teológico a partir do qual Dietrich defende

219 GRABMANN, M. Interpretações medievais do Nous Poietikós. Campinas: Unicamp, 2006. Coleção: Textos

Didáticos IFCH/UNICAMP, n. 60, Fevereiro de 2006. Tradução de M. Raschietti, p. 62.

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Não há muitos dados biográficos sobre a figura do dominicano alemão Dietrich de Freiberg: nascido por volta de 1240 em Freiberg, na Saxônia (é conhecido também como “Dietrich de Saxônia” ou “Theodoricus Teutonicus”), exerceu o cargo de lector por volta do ano 1271 no convento dominicano de sua cidade natal. Provavelmente estudou em Paris de 1272 a 1274 e, pelas citações que ele mesmo faz no seu “Tractatus de intellectu et intelligibili”, dá a entender que estudou no mesmo período do Doctor Solemnis Henrique de Gand. Após um breve período como

lector na cidade alemã de Trier (1280-1281), retornou em Paris como “lector sententiarum” e permaneceu no

convento de Saint-Jacques até 1293, ano em que foi nomeado Provincial da província dominicana da Alemanha, onde realizou algumas fundações. Entre 1296 e 1297 alcançou o grau de “magister actu regens” em teologia e continuou lecionar na capital francesa até 1300. Em 1304 esteve presente no Capítulo geral dos dominicanos em Toulouse (onde apresentou sua obra “De iride et de radialibus impressionibus”, muito admirada) e seu nome aparece, pela última vez, nas atas do capítulo de Piacenza de 1310, na qual fora apontado como Vigário Provincial da Teutônia. Após essa citação, seu nome não é mais encontrado em documentos oficiais.

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SALLER, H. Volkssprachliche Überlieferungen zu Dietrich von Freiberg. Artikelpool, Artikel 96/3. Disponível em: http://www.rumolt.com/freiberg.htm. Acesso em: 01 de fevereiro de 2007.

suas posições ousadas remete ao Studium generale de Colônia e à influência “neoplatônico-dionisiano-aviceniana” exercitada pelo seu fundador, Alberto Magno222. Como analisa amplamente Largier em seu artigo223, o debate que fomentou toda a parte do Reno superior no final do séc. XIII e no alvorecer do séc. XIV, foi estabelecer se o intellectus agens (que Dietrich de Freiberg identifica com o abditum mentis agostiniano, a inhabitatio Dei na parte mais íntima do homem) deve ser considerado uma potência natural através da qual o homem conhece o mundo e pode contemplar a Deus, ou se esta contemplação acontece na pura passividade, após silenciar todas as potências naturais. A Quaestio traduzida por Grabmann é testemunha dessa discussão:

“A 14ª opinião é do mestre Dietrich de Freiberg (magister Teodoricus): o intellectus agens é idêntico ao conhecer latente e inconsciente (intelligere abditum). Ele se refere a S. Agostinho que distingue um intelligere abditum, um conhecer espiritual, latente e inconsciente, em atual e manifesto (intelligere abditum actuale et apertum). A existência deste intelligere abditum é demonstrada e explicada pelos textos de S. Agostinho. Dietrich cita dois trechos do De Trinitate. No primeiro S. Agostinho afirma: ‘Assim nos é demonstrado que na profundeza do nosso espírito repousa uma espécie de conhecimento de certas coisas que, em seguida, estas mesmas coisas entram de um certo modo até seu centro, quase para se tornar manifestas ao olhar do nosso espírito, no momento em que são pensadas’ (De Trinitate, 1. XIV, c. 7). Em outro trecho S. Agostinho escreve: ‘A profundidade da nossa memória está aí, onde encontramos também aquelas essências que pensamos pela primeira vez e onde é criada a palavra mais íntima, que não pertence a nenhuma língua, que vem como ciência do saber, visão do ver, e juízo do juízo; realizando o ato do pensamento, na verdade, se apresenta o juízo que deriva daquele juízo que já estava na memória, embora latente’ (De Trinitate, 1., XV, c. 21, n. 40). Segundo esses textos agostinianos, pode-se afirmar que há em nós um intelligere abditum, um conhecimento espiritual latente, inconsciente, oculto”224.

O pensamento de Dietrich de Freiberg está ligado, portanto, à doutrina da iluminação do bispo de Hipona e tem sua natural realização na doutrina da visão beatífica: o fato de o intellectus agens coincidir com seu princípio divino garante uma

222 Cf. DE LIBERA, A. La Mystique rhénan. D’Albert lê Grand à Mâitre Eckhart. Paris: Éditions du Seuil, 1994., p.

10.

223 LARGIER, N. “Intellectum in deum ascensus”. Intellektheorische Auseinandersetzungen in Texten der deutschen

Mystic. In: Deutsch Vierteljahrsschrift für Literaturwissenschaft und Geistesgeschichte, 69 Jahrgang, 1995, Heft/3

Sept., Stuttgart/Weimar, pp. pp. 423-471.

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bem-aventurança que se compreende na união com Deus no âmbito da contemplação beatífica per essentiam:

“Na segunda parte o mestre Dietrich demonstra que o intellectus agens é um intellectus per essentiam, e apresenta duas razões. A primeira, que o intelecto conhece a si mesmo per essentiam; a segunda, que ele conhece todas as outras coisas. A primeira prova é formulada na seguinte forma: todo intellectus per essentiam conhece a si mesmo per essentiam. Mas isto se verifica para o intellectus agens. Portanto ele é um intellectus per essentiam. A segunda proposição é assim formulada: aquilo que é de tal forma pela sua essência, in concreto, é de tal forma também pela sua essência em virtude da abstração formal. Assim, por exemplo, o homem é homem pela sua essência; por conseguinte, ele é também essencialmente homem pela sua humanitas. Como ainda o intellectus agens é intellectus pela sua essência, assim é também intellectus pela sua intellectualitas. E como a humanitas está no homem, assim também a intellectualitas tem em si, em modo a ela peculiar, a ratio principii formalis em relação à sua essência. Mas isto não é outra coisa senão o mergulhar operante do intelecto em si mesmo intelectualmente; é a autoconsciência do intelecto através da própria essência. Um segundo argumento, segundo o qual o intelecto conhece a si mesmo per essentiam, é o seguinte: o intellectus agens é separado, autônomo, e sem elementos conaturais, alheios à sua essência. Portanto, o que nele é operante (a sua natureza) é uma atividade exercida pela sua essência”225.

A posição de Meister Eckhart em relação a essa questão é diametralmente oposta. Interrogando-se sobre o que é a oração, na Pr. 19, o turíngio cita o Pseudo- Dionísio: “O que é a oração? Dionísio afirma: uma ascensão para Deus no intelecto, esta é a oração”226.

Esta resposta revela dois aspectos: a) Eckhart tem uma compreensão fundamentalmente intelectual do encontro entre Deus e o ser humano; b) nesse evento, a função do intelecto é essencialmente passiva, não ativa. O Tratado do intelecto

agente e possível227, redigido entre 1302 e 1323 no âmbito da mística alemã, estabelece um confronto entre essas duas posições: para Meister Eckhart, a alma humana deiforme é privada de toda atividade e receptividade, e o conhecimento de

225 Ibidem, p. 42-43.

226 “Was ist (das) Gebet? Dionysius sagt: Ein Aufklimmen zu Gott in der Vernunft, das ist (das) Gebet”. Quint, p.

239. Cf. também SA, p. 135.

227

Deus está sempre ligado a uma imagem (bilde) que não se encontra nas potências da alma, mas sim no seu fundo (Grund). Consequentemente, só é possível alcançar a bem-aventurança na essência da alma e não nas suas potências: “Desse modo se mostra que a bem-aventurança consiste nisso, padecer Deus. Isso significa o que Cristo fala: bem-aventurados são os olhos que vêem o que vós estais vendo”228.

Para Dietrich de Freiberg, ao invés, o intelecto agente é naturalmente bem- aventurado e não é interessado por uma transformação super-natural: “A bem- aventurança do homem consiste nisso, que o intelecto agente conhece em virtude de seu próprio Ser”229.

Portanto, o intelecto agente enquanto tal não é guiado pela Graça, mas, prossegue o Tratado, emana intellectualiter de Deus e a Ele retorna em um modo também intelectual. A idéia de emanação (Ausfließen) e do retorno (Zurückkehren), como foi indicado pelo primeiro capítulo, é um conceito tipicamente neoplatônico, a respeito do qual Flasch230 destaca sete condições de inteligibilidade, a saber:

1) a emanação é uma atividade própria do intelecto, inclusive em seu conhecimento intelectual;

2) intellectualiter significa “essencialmente”: o intelecto é, na sua

essência, atividade;

3) a atividade do intelectus per essentiam se desenvolve na eternidade, que é ausência de tempo (zeitlos). O ser humano, embora viva no tempo, participa do intelectus per essentiam que é o princípio da sua alma e seu “eu” verdadeiro;

4) o intelecto não se afasta do seu princípio, mas “mergulha” nele: sua emanação é também seu retorno;

228

“Auf diese Weise zeigt sich, daß die Seligkeit darin besteht, Gott zu erleiden. Dies heißt, was Christus spricht: Selig sind die Augen, die da sehen, was ihr seht”. Ibid., p. 433.

229 “Die Seligkeit des Menschen besteht darin, daß er sein Sein kraft der wirkenden Vernunft erkennt”. Ibidem. 230

FLASCH, K. Converti ut imago – Rückkehr als Bild. Eine Studie zur Theorie des Intellekts bei Dietrich von

5) o intelecto, como imago, possui uma perfeita semelhança com Deus (perfecta similitudo Dei), recebe seu ser ativo na eternidade, não é acidental e nem capax Dei passivamente;

6) a vida do ser humano, que nada tem a ver com o intellectus per

essentiam, é contudo forjada por ele, sem nunca chegar a uma

identificação;

7) o retorno (reditio, conversio) é característica da relação entre o

intellectus possibilis e o intellectus agens: esse último é princípio do

primeiro, que emana dele e a ele retorna.

Meister Dietrich desloca o problema da possibilidade do conhecimento racional universal para a questão sumamente teológica da bem-aventurança in patria, revestindo o ser humano de uma nova dignidade e levando até as últimas conseqüências filosóficas a temática da união intelectual do homem com Deus. Nesse modo, explica a criação do ser humano à imagem de Deus dando um novo fundamento especulativo às possibilidades inerentes à doutrina da imago Dei. Em relação a esta, as posições defendidas por Dietrich são praticamente as mesmas defendidas por Eckhart. O primeiro também sustenta que o “proceder como imagem” é uma emanação de caráter formal, caracterizada pela forma coessencial da relação entre imagem e modelo, onde as regras da lógica e da física aristotélica não são mais suficientes231. As propriedades da imagem enunciadas por Eckhart no Comentário do Evangelho de João (que serão analisadas no capítulo sucessivo), já estão sistematizadas no De visione

beatifica de Dietrich de Freiberg. Isso quer dizer que, em seus escritos, é possível

encontrar uma chave para compreender a doutrina da imagem do turíngio.

Entretanto, não se pode deixar de relevar que entre os dois há diferenças. A primeira e fundamental é que Dietrich nunca afirmou, ao contrário de Eckhart, que a imagem na alma é incriada. Além disso, a aplicação eckhartiana do paradigma imagem- modelo aos conceitos transcendentais (ens, unum, verum, bonum) constitui talvez o motivo mais inovador e interessante de toda sua filosofia. Com efeito, instituindo uma

231

identidade de relação que há entre imagem e modelo com o justo e a justiça (que será analisada no capítulo sucessivo), o turíngio afirma que, como não é possível ser mais ou menos imagem de Deus, assim também não se pode ser mais ou menos justos. A relação tradicional de participação cede o lugar para uma lógica de “virtude ou não- virtude”, de “ser ou não-ser”. Na medida em que o homem é justo, participa da justiça que é o próprio Deus, no sentido em que está para com a justiça na mesma relação dialética que intercorre entre imagem e modelo, ou seja, é engendrado como justo na justiça, a conhece, se identifica com ela, é um elemento da justiça não distinguível da justiça mesma. No momento em que o homem não é justo, simplesmente não é.

É possível, portanto, falar de uma descoberta da divindade e da nobreza do intelecto humano, imagem do intelecto divino, que aponta no homem justo o verdadeiro e novo fundamento antropológico da humanidade, o homem do desprendimento (Abgeschiedenheit) que se libertou de todos os laços representados pelas coisas criadas e de todas as imagens, alcançando dessa forma a região do intelecto divino e realizando de forma plena o processo de emanação e retorno.

Esses temas da especulação eckhartiana encontram seus correspondentes nas obras de duas beguinas232, Mechtild de Magdeburg e Marguerite Porete, cuja linguagem mística procura transmitir a experiência (por si inefável) do encontro com Deus, um Deus não escolástico, não definível por fórmulas cristalizadas, mas que, fugindo dos dogmas e das interpretações eclesiásticas exclusivamente masculinas, se manifesta de forma imediata e sensível como objeto de amor.

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No século XII, particularmente na França, Alemanha e nos Países Baixos, havia um grande número de mulheres sozinhas, pertencentes à classe social médio-baixa, que não podiam casar-se por escassez de homens, dizimados pelas cruzadas ou por guerras locais, e que não eram aceitas pelos poucos conventos femininos existentes na época (mais interessados em acolher jovens mulheres ricas e nobres). A única alternativa para essas mulheres era viver sozinhas nas periferias das cidades, rezando e ocupando-se com trabalhos manuais ou dedicando-se ao ensino. A etimologia do nome beguina é obscura: a hipótese mais provável é que tenha origem na palavra flamenga beghen, que significa rezar. Segundo o Dicionário Italiano de Mística (1998), “o termo francês begin[e], originalmente utilizado no Brabante Meridional, nos territórios de Liége e nas regiões renanas, pode ser uma corruptela de Alibigenses, ou deriva do verbo anglo-saxônico beggen (pregar, mendigar) ou ainda, mais provavelmente, do antigo francês bege (tipo de lã grossa ou não tingida) com o sufixo inus, ou seja beg(u)inus, pessoa que vestia o hábito dos hereges (cátaros ou lulardos)”. Cf. BORRIELLO, L. - CARUANA E. - DEL GENIO, M.R. – SUFFI, N. (orgs.).

Dizionário di Mística. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1998. Disponível em: http://eurositi.com.

6. As imagens da luz e do fogo nas “Offenbarungen der Schwester Mechtild von Magdeburg oder das fließende Licht der Gottheit“ (FL)233

Poucos são os dados biográficos disponíveis sobre Mechtild, inclusive aqueles obtidos diretamente da sua obra ou dos acréscimos feitos pelo tradutor latino: nascida por volta de 1208 na diocese de Magdeburg, quando ainda criança teve sua primeira visão mística, conforme ela mesma escreve: “Indigna pecadora, no meu décimo segundo ano de idade, enquanto estava sozinha, o Espírito Santo me saudou com um beatíssimo fluido, de tal forma que nunca mais teria sido possível, para mim, cair em um grande pecado cotidiano” (FL IV, 2)234.

Esta experiência a levou a abandonar a casa paterna para entrar em uma comunidade de beguinas, conduzindo uma vida de oração, penitência e encontros místicos com Deus. Por trinta anos guardou segredo dessas suas visões, até que, em 1250, aconselhada pelo confessor dominicano Heinrich von Halle, começou escrever suas Offenbarungen (revelações) em folhas avulsas. Entretanto, os originais da obra, escritos em vernáculo, foram perdidos. Se, por um lado, essa obra despertou muita admiração por Mechtild, do outro suscitou inveja, ciúme, calúnias e persecuções, especialmente por parte dos religiosos (homens e mulheres), cuja corrupção e malvadez foram denunciadas corajosamente pela beguina. Em 1261, uma decisão do sínodo dos Dominicanos de Magdeburg contra o movimento das mulheres leigas obrigou Mechtild a voltar momentaneamente em família, para depois transferir-se definitivamente no convento cisterciense de Helfta. Na paz do claustro, escreveu o sétimo e último livro de suas revelações, muito embora estivesse internamente dividida: “Suplicava a Deus de indicar-me se era vontade Dele que eu deixasse de escrever. Por quê? Porque reconheço ser agora mais miserável do que fora trinta anos atrás, e mais ainda, quando comecei a escrever” (FL VII, 36)235.

Lá viveu provavelmente ainda por doze anos e faleceu por volta de 1283. Após a morte, sua obra foi traduzida em latim por dois dominicanos de Halle com o título de Lux

233 Revelações da irmã Mechtild de Magdeburg ou a luz fluente da deidade. 234

MECHTILD VON MAGDEBURG. La luce della fluente divinità. Firenze: Giunti ed., 1991, p. 148.

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divinationis semper fluens in corde veritatis ou, mais resumidamente, Revelationes mechthildianae. A única tradução completa em alemão da baixa idade média falado no

norte (mittelhochdeutsch, mhd) é constituída pelo código do convento de Einsiedeln (Suíça), um manuscrito do séc. XIV. De acordo com o estudo de Nemes236, que realiza uma análise pormenorizada das questões de crítica textual levantadas pela obra de Poor237, a opção de Mechtild ao lançar mão do vulgar como instrumentum scripturae se torna decisiva para o alcance da obra: entre a língua falada na igreja (latim) e aquela falada na corte (mhd), a beguina escolhe um meio de expressão para que “todos os aflitos e as pessoas confusas” encontrem consolação, mas que, os que “acolherem outra consolação, sejam ainda mais confundidos por aquilo que ele fala”238.

A obra de Mechthild se insere naquela corrente de espiritualidade medieval indicada pelo nome de Brautmystic (mística nupcial), cujo modelo literário é o Cântico dos Cânticos. É impressionante a riqueza de imagens utilizadas pela beguina, assim como as metáforas que pertencem ao patrimônio comum da mística medieval: todos os místicos, afinal, lançam mão de uma linguagem semelhante constituída de figuras, fórmulas e imagens na tentativa de expressar a deidade que, por si, é indizível. Ao contrário de Eckhart, Mechthild nunca cita suas fontes; mesmo assim, procedendo por analogia e comparação, é possível individuar na Bíblia (Antigo e Novo Testamento), na Patrística e no Pseudo-Dionísio Areopagita, a nascente de onde provém sua inspiração. Esse último, em particular, utiliza as metáforas da luz e do sol como símbolo da deidade. Assim também Mechthild fala para Deus: “Tu és uma luz de todas as luzes [...]; Meus olhos estão iluminados pela tua luz de fogo” (FL II, 10.18)239. Além disso, a luz é uma metáfora da alma que, nascida da luz eterna, é por sua vez fonte de luz: “A alma inocente, segundo a sua natureza, emana sempre luz e esplendor, porque ela fora gerada da luz eterna sem pena” (FL III, 21)240. Realidade humana e divina ao mesmo tempo, ponto de intersecção de um único movimento, lugar de eterna felicidade: “É o

236 NEMES, B. J. Neues zu den Fragen der Autorschaft und Kanonizität des Fließenden Lichts der Gottheit

Mechthilds von Magdeburg. Disponível em: www.meister-eckhart-gesellschaft.de. Acesso em: 25 de Março de 2008.

237

POOR, S. S. Mechthild of Magdeburg and her book. Gender and the making of textual authority. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004.

238 MECHTILD VON MAGDEBURG. Op. cit., p. 29. Introdução ao FL.

239

Ibidem, p. 74 e p. 76.

240

amor fluente em movimento, que de Deus flui secretamente na alma e com a Sua força escorre novamente em direção dele, de acordo com a potência dela” (FL VI, 22)241.

Diretamente ligada à metáfora da luz, na obra de Mechthild se encontra também a imagem do fogo, antiqüíssimo símbolo da divindade em todas as religiões, que carrega em si um significado ambivalente: por um lado ele é destruidor-purificador, mas do outro é gerador de vida. No capítulo 29 do livro VI, a beguina escreve sobre as dez qualidades do fogo divino que provém da nobreza de Deus:

“Uma pessoa indigna refletia com simplicidade sobre a nobreza de Deus. Então Ele lhe deu um fogo para conhecer com os sentidos e olhar com os olhos da alma. Ardia sem parar em alto sobre todas as coisas. O fogo ardia sem começo e continuará sempre a arder sem fim. Esse fogo é o Deus eterno, que contém em si a vida eterna e dele todas as coisas emanaram. [...] Essas coisas saíram do fogo divino e lá retornam fluindo, cada uma segundo o ordenamento divino, com eterno louvor. Quem a esse respeito quiser falar mais, se coloque no fogo, e vá e experimente, como a deidade eflui e como a humanidade derrama, como o Espírito Santo lute e obrigue muitos corações a amar a Deus ébrios de amor” (FL VI, 29)242.

Um ensaio de Tobin243 sobre os pontos de contatos e de divergência entre Mechthild de Magdeburg e Meister Eckhart põe em evidência como este também utilize as imagens da luz e do calor para descrever a atividade no seio da deidade e os efeitos da sua atividade nas criaturas, mas “é o uso que ele faz da ‘emanação’ que mais particularmente traz à tona o imaginário de Mechthild”244. Por exemplo, na Pr. 50 (Eratis

enim aliquando tenebrae), o dominicano escreve:

“Eu falei várias vezes: é da obra em Deus e do nascimento que o Pai gera seu Filho unigênito, e desse eflúvio floresce o Espírito Santo, Espírito que eflui de ambos; nesse eflúvio brota a alma como fluída, e a imagem da deidade é gravada nela. Nesse fluir e no refluir das três Pessoas, a alma é influída e in-formada de novo na sua primeira imagem sem imagem. É isso que Paulo

241 Ibidem, p. 274.

242

Ibidem, p. 278.

243 TOBIN, F. Mechthild of Magdeburg and Meister Eckhart. In: McGINN. B. (org.). Meister Eckhart and the

Beguine Mystics. Hadewijch of Brabant, Metchthild of Magdeburg and Marguerite Porete. New York: Continuum,

2001, pp. 44-61.

244

entende quando fala: ‘mas agora uma luz em Deus’. Ele não diz: ‘Vós sois uma luz’, mas: ‘mas agora uma luz’”245.

Assim, também, na Pr. 72 (Videns Jesus turbas, ascendit in montem etc.), o dominicano afirma:

“Os maiores mestres dizem: as potências da alma e a própria alma são