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A imitação criadora e o adestramento linguístico

No documento A ideia de mestre em Nietzsche (páginas 83-87)

Capítulo 2. Os mestres como modelos

2.3 A imitação criadora e o adestramento linguístico

LINGUÍSTICO

A partir daqui, adentramos o segundo contragolpe de Nietzsche à formação moderna, os seus antídotos, como a influência criadora e o adestramento dos impulsos. Mas tais respostas não tratam de domesticar o outro, sendo incluso contrárias a isso, pois Nietzsche está em desacordo com a domesticação, que é a marca própria dos egoísmos do Estado, da ciência, do comércio e da bela forma jornalística. Assim, a ideia de adestramento linguístico parte da fala e da escrita, do profundo conhecimento do próprio idioma, estando intimamente ligado à influência criadora. Segundo Rosa Dias, o ato de adestrar linguisticamente, para Nietzsche,

não significa domesticá-lo com um acúmulo de conhecimento histórico acerca da língua, mas sim fazê-lo construir determinados princípios, a partir dos quais possa crescer por si mesmo, interior e exteriormente. Significa tornar-se senhor de seu idioma e continuar a construir uma língua artística, a partir do trabalho dos que o procederam (...). O adestramento linguístico – em outras palavras, o estudo da língua levado a sério

– é o primeiro requisito para uma verdadeira cultura (1993, p. 76).

Como sabemos, o momento em que a língua começa a ser ensinada, isto é, quando o seu desenvolvimento se torna propício e seu foco essencial, ocorre comumente nos primeiros anos de escola. No entanto, enquanto as instituições da época ensinavam uma língua morta, sem direção nem desafios, sem a ínfima seleção entre os clássicos que dariam as verdadeiras bases da escrita, hoje, por sua vez, percebemos o mesmo quadro, pois nos primeiros anos ainda investimos nos ditados, nas redações com um número x de palavras, sobre assuntos pré- determinados, mas que não tocam as vivências, nem ao menos chegam próximos da realidade particular dos alunos.

Uma boa escrita, antes de tudo, deve passar pela calma, pelo respeito com as palavras. De fato, ela existe na medida em que exercitamos o escrever, o falar e o pensar juntos. Para isso, nada melhor que praticar traduções para exercitar tais partes que resultam num todo. Era dessa maneira que o jovem professor da Basileia ministrava suas aulas, propondo traduções, leituras e exercícios longos e árduos; revisitando os clássicos — mas os bons clássicos — que exalavam uma inspiração criadora.

Entretanto, como o ensino da língua alemã à época deixava a desejar, já que os professores ensinavam a partir da “pseudocultura” predominante, estes se utilizavam de um modo de escrita apressado e vão, aproximando-se da mania desprezível dos escritores de escrevinhar livro, ausente de estilo, com um modo de se expressar pouco refinado e sem caráter, ou tristemente grandiloquente (NIETZSCHE, 2009, p. 73), além de fazer dos jornalistas suas inspirações. Consequentemente, reproduziam o velho modelo estéril, isto é, erudito, recriando novos cientistas, deturpadores da língua materna, pois ofereciam tamanha liberdade — e já de antemão — tanto na escrita quanto na fala, deseducando, assim, através de uma cultura livresca, fácil e sem direção. Novamente nos deparamos com os erros do ensino moderno; erros corriqueiros, porém, de resultados bárbaros, e que ainda estão vivos, pois, até hoje, os docentes empreendem e conservam os mesmos métodos. Porém, o diagnóstico de Nietzsche não é estéril ou paralisante, afinal, vem acompanhado de soluções. O adestramento da língua para salvaguardar os melhores impulsos dos alunos visa oferecer um rumo aos primeiros anos escolares, a fim de evitar a dissipação de suas vontades e o desperdício de seus desejos. Para isso, necessitam de guias,

de uma determinada orientação acompanhada de rigor e disciplina, assim como de exercício e retidão.

Como segundo recurso, temos a imitação criadora, que é fruto da confiança. Vale ressaltar, no entanto, que o ato de imitar aqui não significa preservar certos cânones da moda, mas fugir do domínio tradicional do ensino, pois quando o aluno se espelha nos verdadeiros mestres, ele consegue ligar a linguagem do texto às práticas cotidianas, desenvolvendo, assim, seu próprio gosto, ritmo, estilo.

Assim, ambas alternativas tratam de decodificar a linguagem do texto de acordo com as vivências ao decorrer da existência. E, mais uma vez, Nietzsche se esforça para demonstrar a importância do mestre em ação, afinal, nos deparamos com o formar acompanhado das teorias, mas, principalmente, através dos atos. Tudo indica que revisitar os mestres, isto é, se deixar inspirar, é parte importante na formação autêntica do homem, mas como seria possível imitar e ao mesmo tempo ser original, ser ativo? A imitação de Nietzsche é contrária à reprodução do conhecimento, típica do “filisteu da cultura”, pois, de fato, se difere da relação de passividade que esse tipo mantém com a história (DIAS, 1993, p. 76). Porém, é nesta mesma afinidade com a história que a imitação criadora deve estar, mas de uma maneira ativa, transformadora, convertendo essa relação em algo novo: numa criação do próprio estilo. Em outras palavras, a imitação criadora retira da “história monumental” tudo que é exemplar e digno de ser imitado, “servindo-se da história como estímulo para a ação e para uma nova configuração” (DIAS, 1993, p. 76).

Da mesma maneira, ao tomar seus mestres, Nietzsche se cultivou, compreendendo esse momento como parte essencial de sua criação. Com ele, “Nietzsche tornou-se Nietzsche”, aumentando seu tom de voz, dando asas às suas concepções e pensamentos de maneira autônoma. E resulta importante lembrar que, no momento de imitação criadora, não se imita o “pensamento contido no sistema, mas a atividade criadora que produziu o pensamento” (DIAS, 1993, p. 76). Essa concepção fica evidente mais adiante, nos fragmentos póstumos, quando Nietzsche, então, declara: “Estou bem longe de crer ter compreendido Schopenhauer corretamente; aprendi apenas a me compreender um pouco melhor através de Schopenhauer; é por isso que lhe devo o maior reconhecimento” (NIETZSCHE apud DIAS, 1993, p. 77).

No documento A ideia de mestre em Nietzsche (páginas 83-87)