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A imitação da biologia e o temor à hereditariedade na adoção

3 Adoção em matizes

3.5 A imitação da biologia e o temor à hereditariedade na adoção

A imitação da biologia é um desejo forte, especialmente, entre casais estéreis e que estão recorrendo à adoção pela primeira vez. Há quem diga que a adoção é uma decisão difícil em qualquer circunstância, pois sendo o marido infértil, ele não aceitaria que a mulher fosse fecundada por outro homem. Da mesma forma, a esposa também não concordaria em receber como sua, uma criança filha de seu marido com outra mulher. Nas duas circunstâncias a relação do casal correria o risco de ficar estremecida. Em ambas situações, uma das partes teria que superar ressentimentos e frustrações. O filho que simbolizaria o ápice da solidez do laço conjugal, aqui poderia provocar um efeito inverso e macular a união. De acordo com essa visão, se é complicado quando a criança é filha natural de uma das partes, quando o óvulo e o espermatozóide que originaram a criança são de estranhos, o processo exige dupla superação.

De um lado, o cônjuge estéril terá que superar a frustração e, às vezes, o sentimento de inferioridade despertado por uma incapacidade orgânica. De outro, o cônjuge fértil, dependendo do peso que confere a gerar o próprio filho, pode se sentir sacrificado. Curioso nas reuniões, que nenhum participante declara estar tendo esses sentimentos. As pessoas tendem a objetivá-los, colocá-los como exteriores a elas mesmas, elaboram situações hipotéticas, conjeturam ou falam de terceiros.

Quando o motivo da adoção é a infertilidade, encontrar uma criança com as mesmas características étnicas20 do casal torna mais fácil esconder a própria infertilidade. Os casais que almejam crianças parecidas com eles asseguram que é fundamental revelar à criança a forma pela qual ela entrou para a família, mas não acham que a adoção deva estar visivelmente explícita. Justificam que esse é um assunto de fórum íntimo, privado, que só interessa à criança porque é parte de sua história.

Paulo, voluntário do GA, o mesmo que Vera contou que no I Encontro Nacional de Grupos de Apoio à adoção declarou achar a adoção inter-racial “problemática”, argumentou em uma reunião que “não se deve omitir a adoção, mas o filho adotivo não é uma bandeira que se empunha o tempo todo: Meu filho é adotado”. Ele diz não aconselhar adoções inter-raciais, tardias ou de crianças com deficiência física ou mental. Acredita que os pais adotivos têm o

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Utilizo aqui a expressão “características étnicas” e não características raciais ou, simplesmente, características físicas, porque étnico foi o qualificativo empregado por meus informantes.

direito de escolher o sexo, a idade e a raça do filho. Contrariando o discurso daqueles que afirmam que quando um casal engravida, ele desconhece o sexo, as características do filho e se terá doenças congênitas, acha que a vontade do casal deve imperar, porque é a forma mais segura de primar pelo sucesso da adoção. Reitera que não aconselha a adoção de crianças deficientes porque ninguém escolheria ter um filho assim. Recorda, no entanto, de um casal espírita que acompanhou à distância a gravidez de uma mulher que não desejava o bebê. Quando a criança nasceu, o casal a adotou mesmo sabendo que a menina era cega, mas Paulo só encontra explicação para a atitude do casal na religião que eles seguiam, pois os espíritas encarariam as dificuldades com menos pesar. Destaca que toda adoção é feita de três elementos: amor, respeito e altruísmo, mas que adoção não é caridade, não se pode adotar por pena ou assumir responsabilidades para as quais não se está preparado, optando viver uma realidade que lhe será insuportável.

Como porta-voz da concepção de que se deve imitar a biologia na adoção, Paulo sustenta que haveria um impulso humano, uma ânsia de identificação que nos é inerente ou inata que faz o filho querer se ver nos pais e os pais querem se reconhecer nos filhos, assegurar a continuidade de algo de si. Quando se estabelece o sentido de continuidade e a identificação acontece, pais e filhos adotivos se sentem tão unidos quanto quaisquer outros pais e filhos. Como os casais pretendem adotar recém-nascidos e os bebês em geral parecem ser todos iguais (aliás, neles a pertença étnica ainda é pouco evidente), Paulo os ensina a prever de que cor será a criança pela observação da coloração da pele próxima à cutícula das unhas. Essa região é naturalmente mais escura e essa é exatamente a tonalidade de pele mais escura que o indivíduo poderá atingir mesmo sob a ação do sol quando bronzeado. Alerta também para que se observe as palmas das mãos, porque quanto mais roxas forem as linhas das mãos, mais escura será a criança.

Uma criança fisicamente semelhante aos pais adotivos evitaria que fossem apontados na rua, no restaurante ou em outros locais públicos como uma família diferente das outras. Notei que o olhar dos outros, a idéia de despertar a atenção de transeuntes os faz antecipar incômodos futuros. Imitar a biologia viabilizaria a discrição na adoção, ela seria mantida em sigilo, a privacidade dos envolvidos estaria resguardada. Serem identificados como uma família diferente das outras é tudo que eles não querem para si. A diferença é concebida como carregada de certa inferioridade. O fato dos pais serem diferentes de seus filhos faria aquela

família diferente das outras. Por conseguinte, há um esforço de evitar ou camuflar essa diferença para que não sejam vistos, ou mesmo não se sintam, menos pais que os demais.

Uma preocupação bastante freqüente entre pessoas que estão pensando em adotar é se certificar ao máximo de que a criança é saudável. Casais que comparecem a reuniões para dar depoimentos após efetivarem adoções contam que conversaram com os médicos que realizaram o parto do bebê para obter informações sobre o estado de saúde da criança e qual a possibilidade de apresentar doenças congênitas. Também procuram colher um mínimo de informações sobre a mãe, marcadamente se é aidética ou dependente química. Alguns chegam a pedir exames clínicos adicionais para estarem seguros de que a criança é sadia antes de a aceitarem e darem continuidade ao processo de adoção. Em observações feitas em cadastros do GB, alguns candidatos a pais adotivos também costumam ressaltar que não querem crianças com comprometimentos físicos ou mentais, ou geradas por aidéticos ou alcoólatras. Outros vão mais longe, e recusam crianças que tenham antecedentes de AIDS na família, mas também há aqueles que adotariam uma criança cujos genitores fossem aidéticos, desde que exames comprovassem que ela não é portadora do HIV.

Conforme o relato de pais adotivos, os médicos estão abertos a prestar-lhes todos os esclarecimentos solicitados. Soube de um caso em que os pretendentes desistiram de adotar uma menina porque o médico suspeitou que ela teria comprometimentos neurológicos por toda a vida em conseqüência do consumo de craque pela mãe durante a gravidez. Por sinal, há médicos que não se limitam a descrever o estado clínico da criança. Uma mãe adotiva procurou o GA justamente porque o médico que fizera o parto de seu filho contou a ela que o menino era fruto de uma relação incestuosa entre pai e filha. A mãe adotiva estava agora angustiada, pois toda vez que olhava para o bebê lembrava do ato ilícito que o gerou. Estava aflita por imaginar que um dia o filho pode lhe perguntar sobre sua origem e ela não sabe o que irá dizer, se deve omitir essa informação ou não. Os participantes não chegaram a uma conclusão, se era melhor contar ou omitir esse dado, mas se criticou a postura do médico por ter “falado mais do que devia”, mais do que aquilo que haviam lhe perguntado. Os adotantes obviamente supõem que nenhuma criança liberada para adoção foi gerada em condições ideais, imaginam que em princípio há algo sombrio, triste ou trágico e, ao mesmo tempo em que têm curiosidade de saber o quê aconteceu, temem essa realidade e preferem evitá-la.

No fundo, há um sentimento presente nas entrelinhas das falas dos pais adotivos de que toda adoção comporta uma margem de riscos, como ouvi de uma mãe adotiva: “...eu perguntei muito, mas eu acho que eu deveria ter perguntado mais ... eu acho que é aquela coisa, se é por adoção eu acho que eu tinha que escarafunchar muito mais”. Há um empenho em acumular um saber sobre a criança para no futuro não ser pego de surpresa. Todavia, por mais que se saiba dados sobre a família de origem, ela atiça a imaginação e torna-se objeto de inesgotáveis fantasias. É o desconhecido sempre na eminência de ser desvendado. Questionei a mãe adotiva da citação acima sobre o porquê ela sentia necessidade de saber mais sobre a família de origem, notavelmente sobre a mãe biológica, e ela explicou-me: “... mais pra conhecer mesmo. Porque quer queira, quer não, é uma pessoa que está vinculada à gente pro resto da vida. Então, é aquela vontade de saber mais sobre ela”.

Aliás, os sentimentos dirigidos pelos pais adotivos às mães biológicas revestem-se de complexa ambigüidade. Como bem sintetizou o pensamento de uma parcela de pais adotivos, afirmou Lúcia:

A tendência é pensar muito mal de uma mulher que abandonou. A tendência inicial é essa. Agora tem havido uma alteração nessa forma de ver, de perceber a mãe que doou um filho. Já está sendo mais compreendido que não são todas as pessoas que por procriarem, por serem capazes de procriar, por terem a condição biológica da procriação, que são capazes também psicológica e emocionalmente de manterem uma criança, um filho, de criar. Não são mesmo todas as pessoas que têm isso, que têm essa condição. Criam, ou melhor, procriam, mas não têm um vínculo, não estabelecem uma relação, contrariando a natureza, porque até os animais defendem a cria. Então existe esse preconceito, que vai sendo lidado também. Está sendo modificada também.

Nas reuniões de pais e pretendentes à adoção, as mães que dão seus filhos ao nascer despertam sentimentos ora de pena, ora de condenação, ora de gratidão por haverem proporcionado a alegria a outros que poderão realizar o sonho de constituir famílias com filhos. Mas as crianças não são vistas como pertencendo a essas mulheres, foi “Deus quem enviou a criança aos pais adotivos por meio delas”. Uma interpretação que se pode depreender de uma afirmação desse tipo é que as mães biológicas por vezes são tomadas mais como instrumento (objeto) da vontade divina, do que sujeitos reagindo ao contexto no qual estão inseridos.

Apesar de os pais adotivos exaltarem que o papel da educação é superior à ação de gerar uma criança, não se pode negar que muitos deles tentam dominar o conhecimento acerca

da hereditariedade e controlar a possível expressão dela em seus filhos adotivos. Dizer que buscam controlar a hereditariedade de seus filhos implica apontar que há uma clara seleção das características herdadas da família biológica (traços étnicos, recusa de crianças com anomalias físicas e mentais). Entretanto, a hereditariedade, por mais explorada no momento da adoção, permanece sendo uma carta curinga, uma incógnita. Ela torna-se alvo de manipulação toda vez que se identifica uma conduta indesejável no filho. Quando o filho não corresponde às idealizações dos pais ou assume comportamentos que eles desaprovam, culpar a herança genética é uma forma de isentar a família adotiva de quaisquer possíveis falhas na educação. A hereditariedade é lançada como fator explicativo, principalmente, em caso de alcoolismo e dependência química, pois “pode ser que o filho já tivesse propensão genética, nunca se sabe”.