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PARTE II – A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA MODULAÇÃO TEMPORAL DE EFEITOS DA ALTERAÇÃO DA

4 O TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL E O PRINCÍPO DA SEGURANÇA JURÍDICA

4.3 A importância da segurança jurídica no processo eleitoral

A importância da segurança jurídica no processo eleitoral é evidenciada a partir dos valores ou princípios que informam a preparação e realização de eleições legítimas. Isto é, a segurança jurídica tem a sua relevância como instrumento garantidor de um processo eleitoral livre de incertezas e surpresas e, portanto, perfilhado à finalidade da preservação da soberania popular e do Estado Democrático de Direito.

Não se duvida que a confiabilidade do processo eleitoral, que possui como alicerce o princípio da segurança jurídica, é pressuposto para a legitimidade da escolha do povo de seus representantes.

4.3.1 A Democracia e soberania popular

641 GOMES, José Jairo. op. cit., 2013. p. 67. 642

ZILIO, Rodrigo. op. cit., 2012. p. 36.

643 BARREIROS NETO, Jaime. op. cit., 2013. p. 123.

A democracia constitui uma “forma de regime político, em que se permite a participação do povo no processo decisório e sua influência na gestão dos empreendimentos do Estado”644. É o governo da maioria ou a vontade do povo exercida pelo governo645.

Já no preâmbulo da Constituição Federal vigente consta a informação de que a Assembleia Constituinte se reuniu para a instituir um Estado Democrático. Logo após, no art. 1º, há o registro de que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Aliás, não é por outra razão, que o parágrafo único do art. 1º, estabelece que “todo o poder emana do povo”. Outrossim, o art. 34, VII, “a”, prevê o regime democrático como um princípio constitucional sensível, cuja inobservância autoriza o pedido de intervenção federal.

Como se vê, o regime democrático é um dos princípios mais caros da República e a sua efetivação pressupõe a legitimidade do processo eleitoral, ou seja, a intangibilidade dos votos ou a prevalência da vontade do povo a partir da garantia da igualdade entre os candidatos e da segurança jurídica sobre as “regras do jogo”. Não se questiona que surpresas ou alterações injustificadas no processo eleitoral, assim como condutas que representam abuso de poder, podem conduzir a uma eleição desequilibrada, o que macula a soberania popular e o princípio da democracia. João Gabriel Lemos Ferreira646 adverte que “como resultado de uma eleição desequilibrada, tem-se uma democracia capenga e fajuta, na qual os mandatários foram escolhidos sob a égide de um sistema viciado. A soberania popular torna- se, pois, uma falácia”.

Destarte, vulnerar a segurança jurídica, representada pela previsibilidade das regras eleitorais, significa, sob determinada perspectiva, fragilizar a democracia, que se traduz como “o mais importante dos princípios para o processo eleitoral, porque sem este não haverá outro, haja vista ele assegurar a legitimidade e a normalidade do conjunto de procedimentos que busca a verdade eleitoral”647.

644 CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua; CERQUEIRA, Camila Medeiros de Albuquerque Pontes Luz de Pádua. Tratado de direito eleitoral: Tomo I: direito eleitoral material. São Paulo: Premier Máxima, 2008. p. 183.

645

PEREIRA, Erick Wilson. Direito eleitoral: interpretação e aplicação das normas constitucionais-eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 78.

646 FERREIRA, João Gabriel Lemos. A nova limitação aos agentes públicos em ano eleitoral: a vedação à distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios (art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97). BDM – Boletim de Direito Municipal. São Paulo: NDJ, ano 24, n. 5, p. 352-361, maio.2008.

647 PEREIRA, Erick Wilson. op. cit., 2010. p. 79.

Assim, a segurança jurídica, aliada ao princípio da paridade de armas entre os candidatos, constitui importante ferramenta para a garantia da normalidade das eleições e, por consequência, da preservação do Estado Democrático de Direito e da soberania popular.

4.3.2 Conteúdo punitivo das decisões na Justiça Eleitoral

A segurança jurídica deve ser garantida, não apenas porque o processo eleitoral se relaciona com valores caros para a República, como a democracia e a soberania popular, mas também porque a atuação da Justiça Eleitoral pode atingir a esfera pessoal de direito de cidadãos.

O que se pretende dizer é que a violação de regras do processo eleitoral, provocada por insegurança jurídica, pode ensejar efeitos graves aos interesses do cidadão, candidato ou partido político, uma vez que, na legislação eleitoral, há previsão de aplicação de penalidades administrativas, políticas, cíveis e até penais, conforme a conduta julgada. Basta ver, por exemplo, que muitas condutas tidas como ilegais para a Justiça Eleitoral pode, conforme a situação, ensejar a aplicação de multa pecuniária, a cassação do registro ou do diploma, a aplicação de sanção de inelegibilidade ou, até mesmo, a incidência de pena restritiva de liberdade.

Desse modo, a previsibilidade do direito e a proteção da legítima confiança dos agentes figurantes do processo eleitoral se revelam necessárias para a tutela de um processo judicial ou administrativo justo, uma das expressões do devido processo legal, que possui assento constitucional.

4.3.3 O princípio da anualidade

A importância acentuada da segurança jurídica para o direito eleitoral é verificada com a previsão de um peculiar princípio na Constituição Federal, vale dizer, o princípio da anualidade, insculpido no art. 16: “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.

Originariamente, o art. 16, da Constituição Federal, previa que “a lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação”. Assim, com a alteração promovida pela Emenda Constitucional n. 4, de 14 de setembro de 1993, optou-se por admitir a vigência imediata, mas com eficácia postergada, ou seja, com intervalo de pelo menos um ano entre a existência válida da nova regra e a eleição em face da qual pretende ser aplicada. Como cediço, vigência da lei não significa necessariamente a sua eficácia (aplicação)648.

Segundo a doutrina, o princípio da anualidade do direito eleitoral “se fundamenta na segurança jurídica exigida por toda a coletividade e, também, pelos participantes do processo eleitoral”. O objetivo do princípio é coibir alterações casuísticas, afastando, tanto quanto possível, a influência de interesses pessoais e privados, assim como a interferência do abuso de poder político e econômico”649, especialmente dos grupos dominantes650, que tenham por objetivo beneficiar candidato, partido ou coligação651.

Não divergindo, o Supremo Tribunal Federal, na ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3345652:

[...] PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ANTERIORIDADE ELEITORAL: SIGNIFICADO DA LOCUÇÃO "PROCESSO ELEITORAL" (CF, ART. 16). - A norma consubstanciada no art. 16 da Constituição da República, que consagra o postulado da anterioridade eleitoral (cujo precípuo destinatário é o Poder Legislativo), vincula-se, em seu sentido teleológico, à finalidade ético-jurídica de obstar a deformação do processo eleitoral mediante modificações que, casuisticamente introduzidas pelo Parlamento, culminem por romper a necessária igualdade de participação dos que nele atuam como protagonistas relevantes (partidos políticos e candidatos), vulnerando-lhes, com inovações abruptamente estabelecidas, a garantia básica de igual competitividade que deve sempre prevalecer nas disputas eleitorais. Precedentes. [...].

Sob outra perspectiva, tem-se que o princípio da anualidade representa valioso instrumento de tutela da democracia, uma vez que proíbe surpresas aos diversos atores da disputa eleitoral, na medida em que possibilita o conhecimento prévio das regras do certame, inclusive para que as entidades partidárias deliberem sobre os seus projetos e estratégias653.

648 DANTAS, Silvanildo de Araújo. Direito eleitoral: teoria e prática do procedimento das eleições brasileiras. Curitiba: Juruá, 2005. p. 217.

649 ZILIO, Rodrigo. op. cit., 2012. p. 26. 650

PEREIRA, Erick Wilson. op. cit., 2010. p. 78.

651 DANTAS, Silvanildo de Araújo. op. cit., 2005. p. 217.

652 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3345. Rel. Min. Celso de Mello. Pleno. Julgamento 25/08/2005. DJe 20/08/2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 2jul.2016.

653 PEREIRA, Erick Wilson. op. cit., 2010. p. 77.

Fala-se, ainda, que tal princípio protege as “relações político-eleitorais que ocorrem dentro do procedimento das eleições, pois assegura a inquebrantabilidade da isonomia das regras do pleito”654.

Importante registrar que o princípio da anualidade eleitoral atinge indistintamente as diversas formas de lei, adotando-se um conceito amplo, que abrange tanto a lei ordinária, a lei complementar como a emenda constitucional655 656. No entanto, esse princípio não incide a toda e qualquer lei. Segundo a própria redação do dispositivo, restringe-se à “lei que alterar o processo eleitoral”. Mas é obrigatório advertir que persiste dúvida na doutrina e a jurisprudência não é sedimentada sobre o alcance da expressão “processo eleitoral”.

Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira e Camila Medeiros de Albuquerque Pontes Luz de Pádua Cerqueira657 defendem a adoção de um conceito amplo de processo legislativo. Para eles, apoiado nos votos dos Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio, Carlos Velloso e Aldir Passarinho, proferido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 354658, o processo legislativo não pode ser compreendido como a norma processual eleitoral, mas, sim, como o processo que compreende desde o alistamento dos eleitores, passando pelo registro dos candidatos, a propaganda, a votação, a apuração e a proclamação, até a diplomação dos eleitos, incluindo, ainda, a legislação partidária. No mesmo sentido, Rodrigo Zilio659 afirma que o conceito de processo eleitoral deve ostentar uma suficiente amplitude, com vistas a coibir modificação de última hora, em face de

654

DANTAS, Silvanildo de Araújo. op. cit., 2005. p. 218.

655 Conforme Acórdão proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3685 (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rel. Min. Ellen Gracie. Pleno. Julgamento 22/03/2006. DJ 10/08/2006 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 2jul.2016): “[...] 2. A inovação trazida pela EC 52/06 conferiu status constitucional à matéria até então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal, provocando, assim, a perda da validade de qualquer restrição à plena autonomia das coligações partidárias no plano federal, estadual, distrital e municipal. 3. Todavia, a utilização da nova regra às eleições gerais que se realizarão a menos de sete meses colide com o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral (ADI 354, rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 12.02.93). [...] Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) [...]”.

656 ZILIO, Rodrigo. op. cit., 2012. p. 27. 657

CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua; CERQUEIRA, Camila Medeiros de Albuquerque Pontes Luz de Pádua. op. cit., 2008. p. 44-45.

658 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 354. Rel. Min. Octavio Gallotti.

Pleno. Julgamento 24/09/1990. DJ 22/06/2001. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 2jul.2016. 659 ZILIO, Rodrigo. op. cit., 2012. p. 32.

quaisquer dos sujeitos envolvidos nas eleições. Para o autor, a proteção do princípio da anualidade se adéqua a normas de caráter material e, não, instrumental. Nesse diapasão, almeja-se proteger regras relativas à “convenção partidária, passando, necessariamente, pelo pedido de registro de candidato (...), regras de arrecadação e gastos de campanha, propaganda eleitoral e, também, pelo momento do voto e do escrutínio, culminando com a diplomação dos eleitos”.

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3345660, o Supremo Tribunal Federal reproduziu um conceito amplo semelhante:

[...] O processo eleitoral, que constitui sucessão ordenada de atos e estágios causalmente vinculados entre si, supõe, em função dos objetivos que lhe são inerentes, a sua integral submissão a uma disciplina jurídica que, ao discriminar os momentos que o compõem, indica as fases em que ele se desenvolve: (a) fase pré-eleitoral, que, iniciando-se com a realização das convenções partidárias e a escolha de candidaturas, estende-se até a propaganda eleitoral respectiva; (b) fase eleitoral propriamente dita, que compreende o início, a realização e o encerramento da votação e (c) fase pós-eleitoral, que principia com a apuração e contagem de votos e termina com a diplomação dos candidatos eleitos, bem assim dos seus respectivos suplentes. [...].

Porém, necessário o esclarecimento trazido no voto condutor do Ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3741661:

[...] Esta Corte já teve a oportunidade de estabelecer o alcance do princípio da anterioridade, por ocasião do julgamento da ADI 3.3.45, relatada pelo Ministro Celso de Melo, assentando que “a norma inscrita no artigo 16 da Carta Federal, consubstanciadora do princípio da anterioridade da lei eleitoral, foi enunciada pelo Constituinte com o declarado propósito de impedir a deformação do processo eleitoral mediante alterações casuisticamente nele introduzidas, aptas a romperem a igualdade de participação dos que nele atuem como protagonistas principais: as agremiações partidárias, de um lado, e os próprios candidatos, de outro. O STF, no entanto, deu o devido temperamento ao contingenciamento temporal a que deve submeter-se a legislação eleitoral, afirmando, no julgamento daquela ADI, que “a função inibitória desse postulado só se instaurará quando a lei editada pelo Congresso Nacional importar em alterações do processo eleitoral.

660

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3345. Rel. Min. Celso de Mello. Pleno. Julgamento 25/08/2005. DJe 20/08/2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 2jul.2016.

661 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3741. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Pleno. Julgamento 06/08/2006. DJ 23/02/2207. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 2jul.2016.

Naquele julgamento, ademais, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que só se pode cogitar de comprometimento do princípio da anterioridade, quando ocorrer: 1) o rompimento da igualdade de participação dos partidos políticos e dos respectivos candidatos no processo eleitoral; 2) a criação de deformação que afete a normalidade das eleições; 3) a introdução de fator de perturbação do pleito; ou 4) a promoção de alteração motivada por propósito casuístico. [...]

Perfilhando-se ao posicionamento acima transcrito, Silvanildo de Araújo Dantas662 defende que a proibição de aplicação da alteração antes do transcurso do período em comento deve incidir nos procedimentos que possam influenciar diretamente as regras das eleições, provocando “uma alteração na realidade fática do processo das eleições”. Defende, de outro lado, a inaplicabilidade da vedação contida no princípio às leis que venham “apenas imprimir operatividade ao pleito”.

De qualquer modo, verifica-se, em síntese, que o princípio da anualidade da lei eleitoral objetiva a garantir a segurança jurídica do processo eleitoral, proibindo modificações abruptas, capazes de fragilizar a igualdade entre os candidatos e o princípio democrático.

4.4 A função orientadora do Tribunal Superior Eleitoral como garantia da segurança