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A importância do conceito de vida

No documento Foucault, o corpo e a filosofia (páginas 42-46)

Segundo Foucault, o conceito de vida presente na obra de Canguilhem, formulado através de pesquisas sobre as ciências da vida, foi de extrema importância para a sua formação intelectual. De acordo com Canguilhem, nas ciências da vida existe uma impossibilidade em reduzir o conhecimento aos domínios físico-químicos; porque só se encontra o princípio de seu

68DAGOGNET, François. Georges Canguilhem: Philosophe de la vie. Paris: Institut Synthélabo, 1997. p.61.

69Idem, p.67.

desenvolvimento na interrogação sobre os fenômenos patológicos. ―Foi impossível constituir uma ciência do vivente sem que fosse levado em conta, como essencial ao seu objeto, a possibilidade da doença, da morte, da monstruosidade, da anomalia e do erro.‖71 Se as ciências da vida se

constituíram através do esclarecimento dos mecanismos físicos e químicos, pela utilização de modelos matemáticos, em contrapartida, esse desenvolvimento só se tornou possível à medida que era relançado o problema da especificidade da doença e do limiar que ela determina para todos os seres naturais. O vitalismo teve, e ainda continua tendo, um papel essencial como indicador.

E isso de duas maneiras: indicador teórico dos problemas a resolver (ou seja, de forma geral o que constitui a originalidade da vida, sem que ela constitua de maneira alguma um império independente na natureza) indicador crítico das reduções a evitar (ou seja, todas aquelas que tendem a fazer desconhecer que as ciências da vida não podem se abster de uma certa posição de valor que marca a conservação, a regulação, a adaptação, a reprodução etc.)72

As ciências da vida colocam, de uma maneira singular, a questão filosófica do conhecimento. O biólogo estuda um objeto ao qual ele próprio pertence, ―já que ele vive e essa natureza de vivo ele a manifesta‖, e desenvolve uma atividade de conhecimento entendido como um método geral para a resolução direta ou indireta das tensões entre o homem e o meio. O biólogo busca compreender o que faz da vida um objeto específico de conhecimento, fazendo existir, ―no seio dos vivos, seres que, por estarem vivos, são capazes de conhecer afinal de contas a própria vida.‖73

Canguilhem se interessa em saber como o conceito se articula com a vida. O conceito enquanto uma informação que o vivente extrai de seu meio ou utiliza para estruturá-lo. O fato de o homem viver em um meio arquitetado conceitualmente não prova que ele se desviou da vida, mas que desenvolve uma tal relação com o meio que não tem sobre ele um ponto de vista fixo,

71 FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. RJ:

Forense Universitária, 2005. p.362.

72 idem, p.363. 73 idem, p.363.

concebendo-se a si próprios como viventes que possuem corpos móveis sobre um território indefinido, que ele tem que se deslocar, mover as coisas umas em relação às outras, para torná-las úteis. ―Formar conceitos é uma maneira de viver, e não de matar a vida; é uma maneira de viver em uma relativa mobilidade e não uma tentativa de imobilizar a vida [...]‖74

Canguilhem dedicou atenção ao encontro entre as ciências da vida e a teoria da informação, utilizando-se de termos como códigos, mensagens, mensageiros, etc. ―Desse ponto de vista, O Normal e o Patológico, do qual uma parte foi escrita em 1943 e a outra no período entre 1963 e 1966, constitui, sem dúvida nenhuma, a mais significativa obra de Canguilhem.‖75 Ela mostra como

o problema da especificidade da vida foi recentemente desviado em uma direção, na qual se encontram alguns problemas que se acreditavam pertencerem propriamente às formas mais desenvolvidas da evolução.

No cerne há o problema do erro. No nível mais fundamental da vida, os jogos do código e da decodificação abrem lugar para um acaso que, antes de ser doença, déficit ou monstruosidade, é alguma coisa como uma perturbação no sistema informativo, algo como um ‗equívoco‘. ‗No limite, a vida — daí o seu caráter radical — é o que é capaz de erro. Se o vivente é o que está aberto ao erro, o homem é um vivente que nunca se encontra completamente adaptado, um vivente condenado a ‗errar‘ e a se ‗enganar‘. ―Se admitimos que o conceito é a resposta que a própria vida dá a esse acaso, é preciso convir que o erro é a raiz do que constitui o pensamento e sua história.‖76

Para Canguilhem, a verdade é, no enorme calendário da vida, o mais recente erro. A dicotomia verdadeiro-falso e o valor atribuído à verdade constituem a maneira mais singular de viver que foi inventada por uma vida ―que do âmago de sua origem trazia em si a potencialidade do erro. O erro é a contingência em torno da qual se desenrola a história da vida e o futuro dos homens. Assim, a partir do erro, Canguilhem, formula problemas filosóficos e caracteriza-se como um ‗filósofo do erro‘. ―Será que toda a teoria do sujeito não deve ser reformulada, já que o conhecimento, mais do que se abrir à verdade do mundo, se enraíza nos ‗erros‘ da vida? E é aí que encontramos resposta à

74 idem, p.364. 75 idem, p.364. 76 idem, p.364.

seguinte questão formulada por Foucault: ―A fenomenologia solicitou ao ‗vivido‘ o sentido originário de qualquer ato de conhecimento. Mas não se pode ou não é preciso buscá-la do lado do próprio vivente?‖ Ao que Foucault responde que a fenomenologia, sobretudo a concebida por Merleau-Ponty, podia introduzir, no campo de análise, o corpo, a sexualidade, a morte, o mundo percebido; mas o Cogito aí permaneceria central,

nem a racionalidade da ciência nem a especificidade das ciências da vida podiam comprometer seu papel fundador. A essa filosofia do sentido, do sujeito e do vivido G. Canguilhem opôs uma filosofia do erro, do conceito do vivente, como uma outra maneira de abordar a noção de vida.77

Com a noção de vida entendida como capacidade inventiva e inesgotavelmente normativa na relação do organismo com o meio, Canguilhem se engaja em várias aventuras teóricas e filosóficas dispersas. Sua filosofia se construiu tendo a corporeidade como fundo que torna qualquer forma de conhecimento possível. Sua astúcia está em utilizar tão bem, nessas aventuras conceituais, o fato de que a vida não se deixa fixar, caracterizando-se por suas infinitas metamorfoses. O conhecimento não deve ser entendido como tentativa de definição da vida e do corpo, mas como manifestação da astúcia do vivente. Canguilhem se utiliza de um conceito de corpo, aquele formulado pela medicina e pela biologia no início do século XIX, corpo-organismo, mas dele se utiliza para se opor à definição objetiva e biologizante, à mecanização da vida e do corpo. Como afirma François Delaporte, na época em que Merleau-Ponty chamava atenção para o fato de que ainda existia uma luta entre mecanicismo e vitalismo, Canguilhem se destacou por traçar essas historicidades. Na filosofia de Canguilhem, a vida se define, sobretudo, por uma indefinição. No que diz respeito às reflexões sobre o corpo formuladas por Foucault, talvez esse seja o maior ensinamento.

3. Capítulo II: Do corpo alma ao corpo dissecado

No documento Foucault, o corpo e a filosofia (páginas 42-46)

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