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CAPÍTULO 6: AS PRÁTICAS A PARTIR DA RUA

6.1 A importância do vínculo para o engajamento

6.1 A importância do vínculo para o engajamento

Gostaria de realizar a ponderação de que o exercício aqui presente esteve anteriormente concentrado na ideia de demonstrar como os discursos dos AA eram tecidos (qual era o pano de fundo dos discursos) pela via dos poderes pastorais e resignificação dos mesmos pela tecnologia êmica de doença para, no capítulo anterior, demonstrar como, de fato, eram operadas as práticas e as estratégias e, mais do que isso, o que circulava/organizava concretamente essas operações, essencialmente pelo trânsito das categorias nativas fundo do poço e bêbado seco para a construção das malhas e as subsequententes itinerações na busca por cuidados.

Do mesmo modo, se busquei pela perspectiva da redução de danos entender como os discursos eram organizados pelo dispositivo da cidadania, da razão humanitária, gostaria de entrar de maneira um pouco mais pormenorizada em como essas estratégias são desempenhadas pelos CanR, na prática, e como, do mesmo modo, criam pelas noções de controle e de cuidado do sofrimento no “aqui e agora” as itinerações terapêuticas que, em última instância, entram em defesa da vida.

Adotar, de certo modo, o caráter de incompletude antropológica, acerca da vulnerabilidade, é buscar deslizar pelas fronteiras das relações sociais e assumir, concomitantemente, que todas as relações da vida social estão organizadas em campos de poder. No ato de jogar com as ferramentas e capitais contidos nesse processo o viés político-pragmático e os significados técnicos da inclusão (BiEHL, 2004 p.124) entram em defesa da vida, como citado, mas, ao mesmo tempo, se mostra descontinuo essencialmente por parte do Estado na não responsabilização do desenvolvimento de políticas sociais, aquelas que combatem a desigualdade e a falta de justiça social para se pensar fundamentalmente a saúde.

Por este prisma, é relevante notar, e aqui ficará evidenciado em relação aos AA, pela questão “menos negociada” com que é forjado seu modelo terapêutico, que as pessoas em situação de rua perante os ordenamentos sistemáticos das regras do jogo itineram mais entre táticas particulares e estratégias externas (propostas pelo CnaR) na busca de cuidados.

. Neste aspecto, por analogia, temos a seguinte interação entre regra/movimento estrutura/ação:

A noção de regra no estruturalismo pode ser feita a partir do exemplo de Saussure do jogo de xadrez para discutir o conceito estrutura e da relação entre regra, peças e sistema: nesse jogo, o que conta são as regras de movimento e de posição de cada uma das peças, e não cada uma em si. Mas podemos objetar que, se para se jogar, é preciso as regras, elas em si não são o jogo, o jogo de xadrez é o movimento das peças. Do mesmo modo, estendendo a argumentação para a questão mais geral discutida por Saussure, se fala é a reprodução inconsciente das leis da linguagem, da língua, a língua só ganha existência social na fala, ou seja, no evento que a reproduz e a modifica. Retornando ao argumento de Levi-Strauss, se o que define a eficácia simbólica é a forma como os diferentes elementos (sujeitos, técnicas, mito) “fazem sistema” de forma coerente, ao ponto de permitir as correspondências e analogias, são as operações concretas, as práticas, agenciamentos e relações engendradas entre e por esses sujeitos que constituem o ato mesmo que pode ser produzir alguma eficácia. O jogo não é um conjunto de regras, mas o movimento das peças e as relações entre elas (MALUF, 2013, p.52).

Se para os AA, a alcoolização é encarada como um processo inacabado, e sua recuperação está alocada num movimento da vontade individual e/ou no basta agir que

você consegue para, subsequentemente, o tecimento da terapêutica/cuidado êmicos, este

cuidado, pela via do CnaR, vai deslizar pela arena de não culpabilização e responsabilização individual sobre este processo e vai ser tornar um movimento mais plástico (pelo menos sobre a forma como são assumidos os usos por uma via mais horizontalizada e menos estigmatizadora). Para a itineração na busca de cuidados não há um modelo pré-definido: ele se constrói no delineamento das ações em curso. Neste prisma, valoriza a ideia de encaixe e porosidade sobre algo que não necessariamente se direcione para ações de “alta complexidade” - como a abstinência – embora, distante disto, não a exclua se assim for prospectada individual ou coletivamente. Costura-se e busca-se, de fato, um “projeto de qualidade de vida” representado, neste caso, pelos campos da ampliação da cidadania – enfatizada e apresentada pelo campo da saúde como uma possibilidade de expansão dos próprios direitos.

É fato que o termo “qualidade de vida” é um termo em disputa que geralmente representa um discurso de classe média empenhado com a educação de pessoas racionais, livres e responsáveis para escolherem sobre sua saúde, como a própria redução de danos (e o discurso da abstinência) pode assim se apresentar. Todavia, pelas próprias características do campo, os CnaR, ao trabalharem na intersecção entre saúde & assistência social, de maneira a valorizar as relações face-a-face-, operam com uma

noção de redução de danos e qualidade de vida um pouco mais flexível no sentido de “educar sua atenção para o cuidado”.

Por seguinte, isto quer dizer que tal atenção também leva em consideração que os sujeitos da intervenção, embora desprovidos de atenção por parte do Estado numa política continuada, não são meros depositários de saberes/poderes inflexíveis em sua manifestação: eles também contam e jogam com o movimento das peças.

Essa é um pouco da minha motivação e tentativa final de apresentação e argumentação aqui. Buscar desenhar como são construídas as práticas de uma micropolítica do cotidiano. Adicionalmente, também acrescento a ideia de que as itinerações na busca de cuidados, que serão debatidos neste viés supracitado dos movimentos, também se constituem enquanto um processo aberto que dependerá de como se transversalizam os saberes para sua produção.

Neste aspecto, durante toda a observação desses processos entre cuidado e controle, efetivamente me empenhei em considerar o paradoxo e a ambiguidade da saúde como poder disciplinador e regulador, (edificado através da reflexão sobre tipo de sujeitos estavam sendo construídos pelos AA e pelos CnaR) mas, igualmente quais eram os valores, os sentidos e significados, as categorias nativas que circulam na produção de linhas da vida. Logo, do mesmo modo que busquei analisar entre os AA, não necessariamente seguirei as pessoas e suas experiências pelas malhas de cuidado, mas o que circula por entre essas malhas e o que transita nos delineamentos das ações em curso.

Os aspectos contidos, por exemplo, nas associações entre negociação e vínculo, tramadas entre os CnaR e as pessoas em situação de rua, acerca das suas demandas, foram destaques enquanto categorias mediadoras para essa argumentação, uma vez que funcionam como estratégias abertas para as operações e tramas do cuidado. Na prática se manifestam como campo de possibilidades que também debatem perspectivas acerca das malhas e cuidados: como veremos. Deter-me-ei, neste momento às categorias supracitadas.

No tocante as respectivas ações de vínculo com as pessoas que não querem ou não conseguem para de beber de modo rotineiro e dito abusivo, por exemplo, são construídas alternativas perante aos usos, pois aqui, de modo visual, busca-se construir linhas de vida. O vínculo, todavia, parte de um processo dialógico não estruturado por operações simplistas que apressadamente tendem a tecer juízos de valor acerca da

alcoolização como uma “situação problema”, até porque, dentro de uma conjuntura mais macro de sofrimento e desigualdade social e falta de políticas de continuidade, os consultores apreendem que o próprio consumo rotineiro e dito abusivo também pode assumir e ser tomado como uma redução de danos (face aos sofrimentos dos contextos vulneráveis).

Na realidade, o ponto chave da questão, referente as formas como os cuidados são tecidos, é que as ações intervencionistas do CnaR, para alem de medidas que expressem uma relação de poder – de cima para baixo – buscam pela noção orientadora do vínculo encontrar e definir modos de cuidado que também sejam porosos e fluidos no contato. A redução de danos, invariavelmente, expressa um movimento para além de um modelo – indica, subsequentemente, que as tomadas de decisão sobre os processos de alcoolização, de maneira individual ou coletiva, não predispõe um arquétipo pré- configurado de ação, mas uma zona de incertezas construídas pela e na relação, que não necessariamente hierarquiza saberes, afinal, também há um relativismo cultural operante em cena que instabiliza, ou melhor, afrouxa a lógica do controle.

Por exemplo: Como já exposto, a prática por excelência de redução de danos na rua é a negociação da hidratação, ao passo que o carro em que os consultores circulam sempre está munido com caixas de copos descartáveis de água. Aparentemente, essa estratégia terapêutica parece ser um predicado que contemple a todos. Porém, não raro, é revelado na rua um “processo de simbolização operante” (que fabrica sentidos, age e, consequentemente, produz efeitos sobre as práticas) que indica que beber água e bebidas alcoólicas, ao mesmo tempo, “da cirrose ou faz você ficar como o pé inchado”. Não beber água, neste caso, se manifesta como uma prática e/ou estratégia terapêutica êmica. Logo, tal postura, embora predisponha uma responsabilidade em negociar com o sujeito a hidratação, também desencadeia um processo de relativização dos discursos e práticas dotadas de sentido para o outro.

A alteridade se constrói, portanto, não na imposição de verdades ou perante um relativismo cultural absoluto, mas nas operações de vínculos e diálogos capazes de levar em consideração as categorias de organização das práticas dos sujeitos em situação. O registro necessário a ser feito aqui é acerca da construção de ferramentas ou estratégias situacionais que valorizam o cuidado que, embora reparador, não pretende fixar saberes, mas construí-los conjuntamente durante as micropolíticas das relações cotidianas, isto é, temos uma conjuntura transversalizada de moralidades que podem ser negociadas.

Isto é uma diferença marcante com o modelo terapêutico dos AA, visto que nos grupos de ajuda mútua, o alcoolista, está permanentemente se construindo enquanto sujeito em recuperação a partir da incorporação externa das narrativas pré-definidas. Improvisar, se adequar a precariedade da rua, negociar e itinerar na busca de cuidados são, de certo modo, tentativas de trama do cuidado por empreendimentos participativos e dispostos nas intersecções dos saberes populares e profissionalizados acerca do cuidado em saúde, isto é, mais do que uma relação hierárquica absoluta temos também certas equações que problematizam e provocam o controle, isto é, a busca por uma construção pragmática e política que também reflita sobre um “engajamento no ambiente” (INGOLD, 2012) em questão.

Pode-se proferir que o vínculo se manifesta enquanto categoria empírica central para atividades dos CnaR, assim como representa uma categoria conceitual que expõe a relação construída que também se pretende aberta, até porque, mesmo obtendo êxito no processo dialógico, isso não é significado numa garantia de que o cuidado não será realizado de maneira descontinuada. Digo isto porque, os próprios consultores, também estão amarrados às conjecturas perante as regras do jogo mais amplas para a efetivação de alguns movimentos, isto é, também encontram desafios na própria política de direitos de inclusão precária, vendo, eles próprios, o “engajamento com o ambiente” (INGOLD, 2012) como uma ferramenta necessária para extrapolar as adversidades manifestas na relação com a rede intersetorial.

Por exemplo: Frequentemente, os consultores entravam em embates com profissionais da saúde pelo fato do acolhimento da rede intersetorial não ser efetivado por um evidente processo de estigmatização e/ou criminalização da pobreza. Os efeitos desse processo são perversos, culminando, por exemplo, não na falta de motivação em gerenciar as formas de cuidado possíveis perante o investimento numa situação, mas pelo efeito generalizado de que as pessoas em situação de rua pudessem adquirir o sentimento de não se sentirem cuidadas pelo Estado. Tal ideia, por sua vez, desemboca no próprio afastamento dos sujeitos para com as instituições. O problema, em si, não é regulamentar e/ou institucionalizar os corpos e sujeitos em situação de rua, mas a forma como esses sujeitos eventualmente são (ou deveriam) ser recebidos pela instituição. Habitar o sistema público de saúde pode corresponder à uma violência física ou simbólica para essas pessoas que, em diversos momentos, se sentem mais livres na rua do que dentro das próprias agências oficiais e hegemônicas do cuidado.

A resistência, nesse caso, a partir do apoio e confiança do vínculo entre consultores e pessoas em situação de rua, também se transformam em forças motrizes para as ações combativas nas relações de face-a-face com as violências institucionais. Logo, os consultores, quando vinculados qualitativamente com as pessoas às quais pretendem cuidar conseguem, conjuntamente, itinerar e habitar os sistemas de saúde com essas pessoas criando, subsequentemente, um modo de problematizar e tecer estratégias que questione as faltas de acesso acarretados pelas questões da ordem de desigualdade, justiça, sofrimento social e violência estrutural. Independentemente das relações de causa e efeito acerca da alcoolização, em nosso caso, a ideia de problematizar as noções apressadas da responsabilização e culpabilização dos indivíduos perante uma dita situação-problema, frente às instituições, também é um modo de explorar nas ações micropolíticas uma desestabilização da ordem que criminaliza, que patologiza:, que tipologiza o alcoolista como um desviante e/ou um “vagabundo”. Pela pragmaticidade, esta argumentação também pode ser considerada como o empreendimento político e social de destaque dos CnaR, afinal, o intuito não é moralizar, mas buscar acessos a saúde e a cidadania; buscar direitos.

Não raro, quando ocorria o encaminhamento ou efetivação de alguma adesão terapêutica, como uma entrada ao CAPS-AD, por exemplo, foi observado durante o trabalho de campo que as pessoas em situação de rua agradeciam de forma veemente os consultores. Isto, de certo modo, é um indicativo de que se era desejado certo cuidado por parte do Estado e que aquele cuidado não era entendido como um direito, mas como um favor – merecedor de agradecimento. Isto é revelador no sentido de que a gestão dos riscos, pela via dos CnaR, no ato de regulamentar, também explora o cuidado como ferramenta que vá ao encontro e conflua como um plano de maximização dos direitos, isto é, os consultores não desempenham favores ou caridade; mas contribuem de maneira profissionalizada com o plano da cidadania muitas vezes negada.

Pensando na incompletude antropológica da vulnerabilidade, ou do sujeito vulnerável, o vínculo não pode ser, portanto, considerado anódino, mas como um dispositivo que aciona e problematiza os desejos de cuidado quando estes não são contemplados em sua perspectiva intersubjetiva.

No intuito de mediar e também levar a sério o sofrimento como um “resto” (BONET, 2018) para além da ordem dos discursos, busco explorar algumas itinerações na busca de cuidados que exponham as relações conflitivas e de negociações de

improviso, incongruências, zonas de incertezas (muitas vezes paradoxais) e que também tenham uma conotação de plasticidade e movimento. Que entram em defesa da vida.