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A importância do vaqueiro: uma casta diferenciada

4 O HERÓI EM O SERTANEJO

4.1.3 A importância do vaqueiro: uma casta diferenciada

Como representante nato do Brasil, Alencar elege o vaqueiro, homem símbolo da região nordeste. Sua importância para a cultura nordestina marca as mais diversas obras literárias. Em O sertanejo, Arnaldo é o típico vaqueiro, “sertanejo da gema” (p. 316), “que à unha de cavalo acossa o touro indômito no cerrado mais espesso, e o derriba pela cauda com admirável destreza.” (ALENCAR, 1953, p. 27)

Seu temperamento, arredio e solitário, faz com que assuma uma postura que em muito não concerne com a realidade paternalista do período. Pois toma suas decisões e faz suas próprias escolhas, mesmo indo de encontro do capitão-mor Gonçalo Pires Campelo. Como vimos anteriormente, Arnaldo vive conforme sua ideologia, não obedecendo também às ordens do braço direito do capitão-mor, o feitor Agrela; este comportamento reforça a rebeldia do herói e sua indisposição em atender as ordens do capitão-mor.

Segundo Ivone Cordeiro Barbosa, em seu artigo “História social do sertão na obra de José de Alencar” (1978), essa aparente indiferenciação social entre o vaqueiro e sua chefia manifesta-se também por uma proximidade do vaqueiro com aquele que exerce o poder na fazenda, o capitão-mor, que é como um pai para o vaqueiro Arnaldo: “dessa forma é que se estrutura um sentimento de poder que é conferido à condição social de vaqueiro, obscurecendo o seu caráter subordinado dentro da estrutura social, e criando uma aparente igualdade.” (BARBOSA, 1978, p. 50)

Arnaldo é filho do vaqueiro que antes era responsável pela morada da Oiticica, função hereditária, passada de pai para filho; espera-se então de Arnaldo que assuma, quando atingir certa idade, a função de seu pai como vaqueiro da fazenda. Mas este não é o desejo de Arnaldo, pois prefere ser livre e viver nas matas do sertão. Todavia, a necessidade de manter- se próximo a D. Flor e sua família de modo a protegê-los faz com que aceite a função, mesmo a contragosto. Mostra-se nesse aspecto o embate do homem com a “segunda natureza”, que nada mais é do que as convenções sociais que o impelem a uma adequação com a comunidade:

Por isso, depois do que acontecera, não teve ânimo de contrariar de novo e tão próximo o desejo do capitão-mór. Prestou-se a desempenhar por algum tempo o emprego de vaqueiro, do qual o afastavam os seus instintos de liberdade, os hábitos de sua vida nômade, e mais que tudo uma repugnância invencível de servir a qualquer homem por obrigação e salário. (ALENCAR, 1953, p. 202)

Percebemos que ao longo da obra, a história é construída baseada na tensão constante entre o vaqueiro Arnaldo e o capitão-mor, embate que simboliza a luta entre duas culturas, a sertaneja, nascida no coração do sertão e a colonizadora. Os sinais da rebeldia de Arnaldo surgem para evidenciar a luta de um povo por sua identidade própria, reforçando o caráter nacionalista da obra alencarina. Os constantes confrontos e a recusa de Arnaldo em submeter-se aos mandos do capitão-mor apoiam outro aspecto relevante do período, seria este“[...] o caráter autoritário e paternalista da sociedade sertaneja.” (BARBOSA, 1978, p. 53)

Todavia, o herói romanesco não se adapta a essas convenções, buscando uma vida longe da sociedade que não o aceita como é. Tal situação faz com que o herói se afaste ainda mais, pois é apenas na solidão da mata que se sente realmente acolhido.

E buscou no recôndito da floresta a sua malhada favorita. Era esta jacarandá colossal...

Alí costumava o sertanejo passar a noite ao relento, conversando com as estrelas, e a lama a correr por estes sertões das nuvens, como durante o dia vagava ele pelos sertões. (ALENCAR, 1953, p. 64)

É observável na obra alencarina que a função de vaqueiro possui um status diferenciado dos demais homens da fazenda. Principalmente por ser Arnaldo o afilhado do capitão-mor, gozando, em alguns momentos, de uma tolerância maior: “O vaqueiro não entra na classe dos servidores estipendiados; é quase um sócio, interessado nos frutos da propriedade confiada à sua diligência e guarda”. (ALENCAR, 1953, p. 203)

Conforme Boechat, o status diferenciado do vaqueiro é revelado em alguns hábitos observáveis na narrativa. Como exemplo, podemos citar as festividades da quartiação e da ferra, pois estas se relacionam diretamente com a sua atividade. Consolida-se ainda em O sertanejo a relevância da atividade pecuária no seu período histórico, resgatada por Alencar, na construção do sertão pastoril e na experiência de ocupação pela pecuária no passado daquela região.

Outro aspecto relevante é o fato das ações do vaqueiro serem diretamente ligadas à honra de seu senhor. Seu sucesso e proezas na corrida elevam ou denigrem a imagem do capitão-mor. Neste aspecto, a honra do herói está diretamente ligada à de seu líder, o que é bastante retratada, por exemplo, na obra de Walter Scott, na qual o cavaleiro presta vassalagem ao rei e seus atos são responsáveis por enobrecê-lo. Logo, podemos avaliar que ocorre no herói alencarino uma assimilação do herói medieval, principalmente no que concerne à relação cavaleiresca de vassalagem, que é retomada por Alencar nas obras O gaúcho e O sertanejo. Sobre esta influência medieval, diz Antonio Candido: “[...] instalados no papel de elemento simbólico da pátria, prontos para o retoque decisivo que os românticos lhes darão, assimilando-os ao cavaleiro medieval, embelezando os seus costumes, emprestando-lhes comportamento requintado e suprema nobreza de sentimentos.” (CANDIDO, 1999, p. 42)

Nota-se que a participação direta do proprietário nas atividades e festividades que se ligam diretamente à lida do vaqueiro confere maior prestígio a esta função, “em decorrência, ‘enobrece’ a condição social do vaqueiro, prática que pode ser considerada bizarra, uma extravagância, mas também uma forma de generosidade e de boa vontade com os subalternos” (BARBOSA, 1979, p. 50). O fato do próprio chefe vestir-se à vaqueira, ressalta o orgulho nordestino e a importância do seu principal representante, o próprio vaqueiro.

Havia naquela época entre os abastados criadores da província essa bizarria de se vestir de couro à sertaneja, e associarem-se assim por mero recreio às lidas dos vaqueiros, cujo ofício desta arte enobreciam. (ALENCAR, 1953, p. 197)

Podemos concluir, portanto, que o vaqueiro, apesar de agregado, possui um status social diferenciado dos demais empregados da fazenda. Tal importância assevera-se, especialmente, na representatividade da função de vaqueiro na cultura nordestina. Pois diversos aspectos, os hábitos diários, como as festividades, o modo de vestimenta do fazendeiro e a posição de associado na fazenda são ligados à lida do vaqueiro.

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