• Nenhum resultado encontrado

3.2 – A impossibilidade da pureza: o feio, o desejo e a dor

No poema ―Psicologia do Feio‖, presente em Missal (1893), a relação biografemática também pode ser visualizada, tendo em vista a caracterização feita pelo sujeito poeta – que incorpora estrategicamente a voz do outro – para descrever a situação dos negros no Brasil. Além disso, nesse poema conseguimos notar a impossibilidade da pureza estética inserida dentro dos padrões instituídos como ideais pelo século XIX. O autor se apropria de uma estrutura e de uma linguagem científica e, com isso, evidencia a forma como os negros eram caracterizados nesse contexto, tendo como base o evolucionismo de Darwin, as análises tipológicas feitas por Nina Rodrigues49, entre outros. Incialmente, nota-se uma descrição científica do ―feio‖, que se opõe à beleza estética da própria construção poética. Percebem-se, dessa forma, dois planos formais: o primeiro, que se refere à construção poética, ao belo especificamente estrutural; e o segundo, que diz respeito à temática científica de descrição da feiura ―lasciva‖, ―animal‖ e ―rapace do símio‖:

Tu vens exata e diretamente do Darwin, da forma ancestral

comum dos seres organizados: eu te vejo bem as saliências craneanas do Orango, o gesto lascivo, o ar animal e rapace do símio. As tuas feições, duras, secas, quase imobilizadas em pedra, puxadas, arrepanhadas num momo, como a confluência interior dos desesperos e das torturas, abrem-se rebeladamente num sarcasmo, ao qual às vezes uma gesticulação epiléptica, nevrótiva, clownesca, faz impetuosa brotar a gargalhada das turbas, enquanto a tua voz coaxa e grasna, numa deprecação de morte, com ásperas e absurdas variabilidades ventríloquas de tons. O teu horror não é deplorável só, não causa só piedade - mas é um obsceno horror - e as abas compridas e esfrangalhadas duma veste que

te fica em rugas, em pregas encolhidas na largura neste teu

corpo esquelético, e que parece a mortalha dalgum hirto cadáver que houvessem desenterrado - as esquisitas abas desta veste, sob o chicote elétrico do vento, alçam-se em vôo, deblateram para trás de ti, ansiosas, aflitas, puxando-te, num arrebatamento histérico, como se fossem fúrias tremendas que

49 Os africanos no Brasil, 2008. Nessa obra – além de traçar os ―tipos‖ africanos no Brasil e sua

respectiva procedência e cultura – traça um panorama sobre a criminalidade negra que, segundo Rodrigues, está associada à evolução moral e jurídica de cada povo. Cito: ―Desde 1894 insisto que muitos atos antijurídicos dos representantes de raças inferiores, negra e vermelha, prestam à criminalidade brasileira, os quais, contrários à ordem social estabelecida no país pelos brancos, são, ainda, perfeitamente legais, morais e jurídicos, considerando-se do ponto de vista de quem os pratica‖ (2008:246).

te quisessem arrojar pelos ares, num delírio de darem-te a

morte. (2000:473)

Construído entre o grotesco e o sublime, esse poema em prosa de Cruz e Sousa, mais uma vez, propõe uma reflexão sobre a estética e sobre o imaginário racialista de finais de século. O narrador crítico demonstra que a noção do belo ocidental se dá muito em função do valor hegemônico sobre as convenções sociais. Assim, o feio e o belo – para o senso comum – seguem uma ordenação pragmática e não precisamente o plano imaterial, pautado em uma metafísica da linguagem. Eis o motivo também da negação feita à sua arte. A voz narrativa (uma 1ª pessoa) estabelece um monólogo com um objeto estranho e feio – provavelmente um símio – (uma 2ª pessoa) e, num ritual frenético de descrição quase naturalista de zoomorfização, desenha-se uma origem do homem e não apenas do ser negro:

Outras vezes, porém, lembram as asas de um grande morcego monstro, imensas e membranosas, causando asco nauseante e enchendo tudo duma sinistra treva lugubremente cortada de arrepios e esvoaçamentos medonhos. Árvores frondentes e undiflavadas de sol, onde os pássaros cantem; rios gorgolejantes de cristais sonoros; vivos e iluminados vegetais em flor; campos verdes, afofados na verdura tenra, como estofos de veludos e sedas rutilosas e orientais, não são já para a tua alegria, recuada agora no fundo das nostálgicas neblinas da torturante desilusão de seres Feio. Os perpétuos gelos do Volga e do Neva para sempre rolam, em densas camadas, sobre o teu coração; e, aí, tudo o que dele se aproxima, outros corações que te buscam, outros afetos que te procuram, perdem todo o calor, resfriam logo, inteiramente ficam gelados já diante da tangibilidade gwinplainesca da tua fealdade. (2000:474)

Partindo, inicialmente, de um conceito, de um substantivo abstrato – o feio – o narrador, por meio dessa descrição pormenorizada do espaço e do corpo do símio – vale-se da técnica naturalista e, ao mesmo tempo, recorre às frases nomimais e adjetivadas para transformar o abstrato em concreto. O feio- meditativo torna-se tangível, palpável, observado cientificamente dentro de sua fealdade. Percebe-se, assim, um jogo paródico em que a ciência é colocada como construtora de ―verdades‖ que podem e são relativizadas: ―Entretanto, eu gosto de ti, ó Feio! Porque és a escalpelante ironia da formosura, a Sombra da

aurora da carne, o luto da matéria doirada ao Sol...‖(2000:472). Para Ronald Augusto, esse fragmento metonímico do poema de Cruz e Sousa sugere a complexidade do estrato semântico do autor, já que o feio representa, ao mesmo tempo, vetor ético e estético. Para o crítico, trata-se de uma poesia- onça, que ―instaura um tipo de poema cujas leituras possíveis e desejáveis devem ser deduzidas de sua própria materialidade enquanto objeto signico em situação de relação sincrônica com o legado da tradição‖. (Morcego cego, 1998). Essa poesia-onça – poesia pele poética – constrói-se como possibilidade de rasurar paradigmas e, estruturalmente, fricciona – com a potência de sua linguagem – um ideal estético construído pelo outro que não se atem à logica criativa da construção literária. É nesse aspecto que Cruz e Sousa, como personagem, subverte valores e evidencia duas dimensões estéticas distintas: a construída em sua obra e a erguida pelo imaginário da assim chamada elite social hegemonicamente branca. Com pleno domínio da filosofia estética em voga naquele contexto, o poeta vale-se da noção kantiana (2002) de que o belo está no sujeito, no olhar, e não necessariamente no objeto. A representação identificada do feio na obra contrapõe-se à visão social universalizada de caracterização do objeto como feio, o que evidencia o pouco domínio que se tinha da real dimensão do estético, inclusiva na filosofia kantiana.

Nesse poema em prosa, Cruz e Sousa – consciente do gosto pelo feio – propõe um jogo espeleológico entre o sujeito que narra (uma primeira pessoa - o eu) e aquele a quem a escrita é direcionada (a segunda pessoa - o tu). No fragmento, nota-se essa dimensão performativa presente na escrita de Cruz e Sousa:

Só eu, numa suprema hora de spleen, de esgotamento de forças psíquicas, em que me falte extensamente o humor - essa bondade hilariante do Espírito - te idolatro e procuro, ó lascivo Feio! Que da luxúria pantagruélica dos vermes devoras na treva os sonhos - porque não os podes alimentar, nem ver florir, nem crescer! Sem que a diabólica verdade flagrante esteja a rir de teu amor e a pintar picarescamente caricaturas na quase apagada perspectiva da tua existência. (2000:476) Quem narra é, ao mesmo tempo, produtor e receptor do discurso e, assim, há um ‗pacto ficcional‘ marcado pelo duplo identitário, no sentido de que aquele que ―conta a história‖ se identifica com o objeto que é descrito na poesia. O

gosto se dá pelo olhar do narrador direcionado ao feio científico. Portanto, o narrador, que se alia ideologicamente à história pessoal e biográfica de Cruz e Sousa, produz para ele – poeta, negro e marginalizado no contexto finissecular – uma obra cujo sentido só pode ser construído plenamente por aqueles que, de uma forma ou de outra, são vítimas das relações racialistas próprias do século XIX. Roland Barthes, em Roland Barthes por Roland Barthes (1975), reflete sobre essas inversões pronominais num ritual de identificação discursiva, que se aproxima do acima referido. Veja-se:

(...) Pronomes ditos pessoais: tudo se joga aqui, estou fechado para sempre na liça pronominal: o ―eu‖ mobiliza o imaginário, o ―você‖ e o ―ele‖ a paranoia. Mas também, fugitivamente, conforme o leitor, tudo, como os reflexos de um chamalote, pode revirar-se: em ―quanto a mim, o ―eu‖ pode não ser o mim, que ele quebra de um modo carnavalesco; posso me chamar de ―você‖, como Sade o fazia, para destacar em mim o operário, o fabricante, o produtor de escritura, do sujeito da obra (o Autor); por outro lado, não falar de si pode querer dizer: falo de mim como se estivesse um pouco morto, preso numa leve bruma de ênfase paranoica, ou ainda: falo de mim como o ator brechtiano que deve distanciar sua personagem: ―mostrá- lo‖, não encarná-lo, dar à sua dicção uma espécie de piparote, cujo efeito é deslocar o pronome de seu nome a imagem de seu suporte, o imaginário de seu espelho (Brecht recomendava ao ator que pensasse todo o seu papel na terceira pessoa). (1975:179).

Apesar do distanciamento temporal que separa as duas obras, é pertinente afirmar que Cruz e Sousa, ainda no século XIX, incorporou um eu em sua escrita que era, ao mesmo tempo, primeira, segunda e terceira pessoa do discurso. Ao se apropriar da linguagem científica, o poeta negro projeta-se dentro do sistema e de uma tradição exatamente para transgredi-los de sua ordem natural. A psicologia do feio aponta para o interno, para o desejo, o gosto pela ―escalpelante ironia da formosura‖ como forma de negar e, portanto, rasurar uma visão purista, consagrada e ocidentalizada de beleza. Nesse sentido, ultrapassa-se a crítica ao progresso para abarcar os signos de formação da identidade brasileira em oposição ao purismo hegemônico. O signo feio, logo, é utilizado como transgressão, como forma de romper com uma estética ocidental do belo e evidenciar o duplo étnico. Para Leda Maria Martins, o código da duplicidade inerente à cultura negra ―instaura o jogo da

aparência e da representação, que é também o jogo do olhar, da ironia, da sedução, o jogo do andar e dos sentidos na tradução da diferença em que não se cristalizam verdades absolutas (...)‖ (1995:56).

Nesse jogo de desconstrução de verdades, o poeta deseja lascivamente o feio, já que, somente ele, pode rasurar as formas perfeitas e fundar uma nova visão em torno do estético. Para além do código simbolista, instaura-se um código filosófico, que retoma o feio e o explora, no poema, como categoria rasurante dos padrões instituídos. O purismo, nesse caso, ocorre por meio da junção de códigos distintos – o estético, o científico e o social – evidenciando ainda as técnicas a que recorre o poeta.