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A impostura do medo: uma relação de autodefesa

No documento O cangaço no sertão d’Os desvalidos (páginas 128-131)

Lampião personifica o objeto que promove a angústia em Coriolano. Este objeto, como o “objeto a” de Lacan, possui a característica da transitividade, da falta a ser. Este fato pode ser confirmado quando da morte do chefe dos cangaceiros. Esta personificação do medo passa a ser ampliada para os “cangaceiros rebelados” (DANTAS, 1996, p. 15). Isto porque, como uma forma de ressuscitar as intenções do chefe degolado, eles, os cangaceiros rebelados, dariam continuidade à velha ameaça da integridade física do mestre seleiro. Este era o novo temor de Coriolano, transformando- se, assim, na nova feição do “objeto a”, e por isto mesmo o representante da nova denominação de sua velha angústia: o medo da morte.

O primeiro encontro de Coriolano com Lampião ocorreu quando da partida daquele para Penedo, no estado de Alagoas. O mestre seleiro queria reencontrar-se com seu tio Felipe. Este querer era guiado pelo remorso da culpa pela separação entre o almocreve e sua amada, Maria Melona. Coriolano ansiava pedir-lhe perdão. Mas no meio do caminho, “quase cego de tanta ruindade na cabeça cutucar!”, ele encontra Lampião, e pensa: “Ah meu Pai do Céu! Êta vidinha caipora! Pois não é que, em carne e osso, estufa em cima de mim o bando de Lampião!” (DANTAS, 1996, p. 101).

O primeiro diálogo entre Coriolano e Lampião revela toda a autoridade presente na pessoa daquele que foi denominado rei do cangaço. O espaço que separa o eu do outro é por ele bem delimitado. No diálogo a seguir, enquanto Lampião se impõe, Coriolano tenta mostrar-se um nada, retirando-se do diálogo direto e expressando-se internamente:

–De onde vem assim escoteiro? (...)

–Venho dali de Propriá, inhô sim, meu capitão. Mas parece que perdi a viagem...

– Viu catinga de macaco por aí? Viu algum comento da andada deles? – Vai interrompendo insistente Virgulino, que não gosta de bolodoros compridos, nem de considerandos nem de mastigação.

– Inhô não, meu capitão – resposta de pronto Coriolano, já travando a língua que não vai se perder na mão do outro, só por não se mostrar direto e positivo.

– Mexe com arte de couro? – Inhô sim, meu capitão.

– Mas é mestre caprichoso ou remendão?

– Sou remendão, meu capitão! – Ah! Horinha da peste! – Me aponte pra onde fica Propriá.

– Fica acolá pra trás, meu capitão (DANTAS, 1996, pp. 101-102).

Desse encontro, Coriolano ainda mantém acesa na memória a advertência do capitão que, após pagar os serviços prestados pelo mestre remendão no conserto de peças de couro, “gritou sete vezes que traidor só sangrando”, e após largá-lo “numa ladeirada”, ofendeu ao chamá-lo de “lambuzão”, renovou a ameaça de lhe “cortar a língua, se desse rumo dele à força do governo” (DANTAS, 1996, p. 112). Esta impostura do medo, através da ameaça a sua vida, passou a ser um dos elementos nomeados por Coriolano para sua angústia.

A partir daí Lampião passou a ser nomeado por Coriolano como o “Herodes”, portanto, colocando-se na posição do Crucificado. A Bíblia conta que o Cristo foi

crucificado por ter ido de encontro às estruturas sociais impostas pelo Império Romano aos povos conquistados. A manutenção desse mundo encontrava-se na imposição da força promovida por quem mantinha o controle das armas. Cristo veio para mostrar um mundo que não sendo aquele, tendo na figura de Deus-Pai o grande Senhor, existia baseado no amor, no respeito, na solidariedade. Estes são elementos que inviabilizam a dominação do homem pelo homem colocando-os no mesmo nível de igualdade. A mensagem do Novo Testamento é a existência de um Deus de amor; um Deus diferente do que aparecia no Velho Testamento; um Deus que prega a tolerância, pois se deve perdoar “setenta vezes sete”.

Igualar Lampião a Herodes revela a necessidade de delimitar uma presença forte, na qual a autoridade e a diferença representam sinônimos de força e violência, colocando o rei do cangaço como um demarcador de um lugar no sertão, de um lugar no mundo. Mas o pouco convívio de Coriolano com os cangaceiros enquanto remendava seus aviamentos revelou-se cheio de surpresas: a miséria, a fome, a falta de banho, o estado permanente de alerta e a presença de uma mulher disfarçada de homem – no caso Maria Melona que assumiu a alcunha de Zé Queixada – deixam a mostra uma visão do cangaceiro como um homem com pouco, ou quase nenhum, conforto. Esta visão deixa claro que o cangaceiro só tem a perder é a própria vida. Nesse sentido, o medo acaba se tornando o meio encontrado para a manutenção da vida no cangaço.

Jean Delumeau, em História do medo no Ocidente:1300-1800, ao historicizar o medo, revela que este sentimento, ao ser desnaturalizado, passou a representar o elemento de diferenciação entre as classes sociais. Aos nobres não era possível ter tal sentimento, que era próprio às classes hierarquicamente inferiores. Esse elemento diferenciador possibilitava à nobreza impor-se sobre os menos favorecidos economicamente para destes cobrar impostos e assim assegurar o aumento da fortuna. No caso do cangaço, o medo era utilizado pelos cangaceiros para se imporem perante a sociedade, obrigando-a a pagar por proteção, tática frequente na última fase de atuação do cangaço.

O medo de modo geral aparece na trama de Os desvalidos para marcar a posição desprotegida em que o homem sertanejo se encontrava. Apesar da errância que é característica deste povo, especialmente em época de seca, haja vista a enorme quantidade de retirantes que migram para outras áreas dos estados do Nordeste e para

outras regiões do país, a palavra medo resume as aflições dos sujeitos que, ora premidos pelo meio físico, ora premidos pelo meio social, lutam para ter uma vida mais abastada.

Nessa perspectiva, os sujeitos denominados desvalidos não são apenas os despossuídos de terras e de dinheiro, mas os que procuram estabelecer-se a partir da crença em uma sociedade onde a justiça social, o respeito ao próximo e as qualidades de cada um venham a ser valorizadas, ou seja, os homens comuns. O medo esconde as injustiças sociais, as relações de parentela e de apadrinhamento da classe dominante, e ao mesmo tempo aponta a fragilidade da vida humana.

Fomentar o medo foi a arma mais poderosa com que o cangaço pôde contar a seu favor. Foram homens que deram vazão a seus instintos norteados por uma concepção rígida de sociedade e das relações sociais, embora essa mesma sociedade lhe permitisse uma saída: entrar para o cangaço. Esta saída era, quase sempre, temporária ou porque eram mortos em combate ou porque largavam a vida de aventureiros.

No documento O cangaço no sertão d’Os desvalidos (páginas 128-131)