• Nenhum resultado encontrado

2 AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA: LEGALIDADE, EMBATE DE OPINIÕES E

2.1 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA

Um dos principais argumentos utilizados pelas instituições opoentes à prática das audiências de custódia no Brasil foi a inconstitucionalidade dos atos normativos que as implementaram, e tal pode ser visualizado nas duas ADI ajuizadas no STF.

A primeira delas, a ADI 524063, foi interposta em fevereiro de 2015 pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL), esta ação tinha como objeto atacado o Provimento Conjunto n.º 03/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo e Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo que, como visto no capítulo anterior, regulamentou a implantação da audiência de custódia no Estado de São Paulo.

Em síntese, a petição inicial desta ADI deixava claro o posicionamento dos Delegados de Polícia do Brasil pela flagrante inconstitucionalidade formal do Provimento Conjunto n.º 03/2015. Alegaram, em suas razões, que este ato normativo ofendeu os princípios da legalidade, da separação dos poderes e usurpou competência legislativa federal, ao estabelecer regras de conduta a serem observadas por juízes, promotores, defensores e delegados quando estiverem diante de pessoas pressas em flagrante.

Os Delegados de Polícia entendem que os Tribunais de Justiça não podem instituir normas sobre audiência de custódia, porquanto elas sequer foram incluídas

63

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5240. Requerente: ADEPOL. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, DF, 12 fev. de 2015. STF. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4711319>. Acesso em: 30 set. 2016.

no CPP, ressaltando, ainda, que tramita no Congresso Projeto de Lei com esta finalidade. Desse modo, ao tratar de normas evidentemente processuais, por meio de ato normativo sem estatura legal, o Provimento ultrajou a competência privativa da União para legislar em matéria processual (artigo 22, inciso I, da CRFB/88), bem como feriu o princípio da legalidade ao instituir condutas a determinadas instituições por meio de ato normativo infralegal64.

Ademais, os dirigentes da polícia civil entendem que o princípio da separação dos poderes restou igualmente afrontado pela edição do Provimento pelo Poder Judiciário, isto porque os órgãos de segurança pública integram o poder executivo (artigo 144, §6º, da CRFB/88), portanto, não pode aquele definir as competências e atribuições deste mediante ato administrativo interno65.

Diferentemente do que se verificará na ADI n.º 5448, o STF entendeu que a ADEPOL possuía legitimidade ativa para ajuizar ação direta de inconstitucionalidade, determinando, pois, o prosseguimento da ação.

Intimados, tanto o Advogado Geral da união como o Procurador Geral da República, foram uníssonos em rechaçar o pleito da ADEPOL, fundamentando que o Brasil tem o dever de adotar medidas normativas para a fiel execução das normas internacionais ratificadas, pois estas possuem aplicação imediata, servindo de fundamento de validade para a edição de diplomas normativos de caráter meramente regulamentar e que em momento algum houve afronta aos princípios da legalidade e da separação dos poderes. Entendem, igualmente, que não foi o Provimento atacado que inovou no ordenamento jurídico, mas sim os próprios tratados internacionais, os quais, devidamente incorporados, produzem efeitos imediatos, devendo, portanto, serem observados.

Ademais, alegam que o Tribunal de Justiça de São Paulo agiu corretamente e dentro de suas atribuições constitucionais ao dispor sobre competência e funcionamento dos seus órgãos jurisdicionais e administrativos (artigo 96, inciso I, ‘a’, da CRFB/88)66

.

64

ASSOCIAÇÃO DOS DELEGADOS DE POLÍCIA DO BRASIL. Petição Inicial na ADI n.º 5240.

Supremo Tribunal Federal, Poder Judiciário, Brasília, DF, 2015, p. 07-09. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7777061&ad=s#2%20- %20Peti%E7%E3o%20inicial%20-%20Peticao%20inicial%201>. Acesso em: 30 set. 2016.

65

Ibid., p. 09-10.

66

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL - PGR. Manifestação do Procurador Geral da República na

ADI n.º 5240. Supremo Tribunal Federal, Poder Judiciário, Brasília, DF, 2015, p. 12-20 Disponível

em:<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletro nico.jsf?seqobjetoincidente=4711319>. Acesso em: 30 set. 2016.

Por fim, em acórdão salutar de lavra do Ministro Luiz Fux (Relator), esse foi extremamente minucioso ao dissecar o Provimento Conjunto n.º 03/2015. De antemão, concordou com seus pares de que a melhor terminologia para as audiências seria “Audiências de Apresentação”67

e não de custódia, pois esta denota que a audiência teria como finalidade única custodiar o autuado, quando, no entanto, visa garantir os direitos do preso e deliberar quanto à necessidade ou não da sua prisão.

O Ministro, em seu voto, que foi seguido pelos demais julgadores68, conheceu em parte da ação e, no que conheceu, julgou improcedente o pedido. Tal se deu pelo fato de que, analisando individualmente cada artigo do Provimento, constatou que osartigos 1º, 3º, 5º, 6º e 7º não poderiam se submeter ao controle concentrado de constitucionalidade, porquanto não disciplinam, modificam ou sequer se fundamentam em matéria constitucional, mas, sim, elucidam69, dentro da prerrogativa dos Tribunais, matéria infraconstitucional, sem extrapolar ou contrariar o conteúdo dessas normas, representando o exercício lícito do poder regulamentar que a todas as autoridades administrativas é outorgado, para o fiel cumprimento da lei70.

A contrario sensu, entendeu o Ministro que os artigos 2º, 4° 8°, 9º, 10 e 11 encontram amparo legal na Constituição, o que legitima o controle concentrado de constitucionalidade, sem, contudo, afrontá-la ou usurpar seus limites legais. Tais dispositivos veiculam comandos de mera organização administrativa, condizente com a prerrogativa que é outorgada aos Tribunais pelo artigo 96, inciso I, alínea ‘a’, da Constituição Federal.

Portanto, concluiu o STF que os atos normativos expedidos por Tribunais visando regulamentar as audiências de custódia não violam os princípios da legalidade nem da reserva de lei federal em matéria processual, pois apenas

67

Para fins didáticos, optou-se por manter neste trabalho a terminologia “Audiências de Custódia” por ser a mais comumente utilizada no âmbito jurídico, facilitando, pois, a compreensão.

68 Com exceção do Ministro Marco Aurélio que preliminarmente julgou extinta a ação. 69

Nesse sentido, entende a Professora Fernanda Marinela que os “atos normativos são aqueles que contêm comando geral e abstrato, visando à correta aplicação da lei, detalhando melhor o que a lei previamente estabeleceu”. Cf. MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 8 ed. Niterói: Impetus, 2014, p. 309.

70

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na ADI nº 5240. Requerente: ADEPOL. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, DF, 20 de agosto de 2015. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 01 fev.

2016. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronic o.jsf?seqobjetoincidente=4711319>. Acesso em: 30 set. 2016.

disciplinam e elucidam legislações já existentes (no caso, CPP e Convenções já ratificadas) sem modificá-las. Ademais, assentou que os atos emanados respeitam integralmente a separação dos poderes, posto que não são estes que criam obrigações para os Delegados, Magistrados, Promotores e Defensores, mas sim a própria Convenção Americana de Direitos Humanos e o Código de Processo Penal, os quais possuem efeito imediato e geral, ninguém podendo se escusar de cumpri- los.

Foi com este precedente que o CNJ, em dezembro de 2015, respaldou a edição da Resolução n.º 213/201571, que uniformiza e disciplina o exercício das audiências em todo o território nacional. Justamente contra este ato normativo do CNJ que a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES) se insurgiu, em janeiro de 2016, ajuizando perante o STF a ADI n.º 544872. Entretanto, o Ministro-Relator Dias Toffoli, negou seguimento à ação por ausência de legitimidade ativa da requerente, decisão contra a qual foi interposto recurso, ainda pendente de julgamento.

Nesta altura, não cabe aqui expor os argumentos utilizados pela ANAMAGES no tocante ao pleito de ter confirmada a inconstitucionalidade da Resolução n.º 2013/2015, pois se fundamentam no mesmo sentido do alegado pela ADEPOL na ADI n.º 5240. Contudo, o que deve se extrair da petição inicial é o inconformismo dos magistrados, não pela inconstitucionalidade da Resolução, que serviu apenas como subterfúgio, e sim a real intenção de demonstrar o descontentamento desta instituição pelas audiências de custódia, conforme se verifica neste pequeno trecho da sucinta inicial de oito laudas:

Por fim, é importante frisar que, apesar de já terem tido sua constitucionalidade reconhecida pelo STF, as audiências de custódia são

extremamente retrógadas e trazem pouca ou nenhuma vantagem às partes envolvidas. [...] tais audiências foram criadas durante a Ditadura

Militar, um momento histórico muito distinto do vivido hoje, ocasião em que

71

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 213, de 15 de dezembro de 2015. Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas. Resolução. Brasília, DF, 16 dez. 2015. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3059>. Acesso em: 01 out. 2016.

72

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5448. Requerente: ANAMAGES. Relator: Ministro Dias Toffoli. Brasília, DF, 06 jan. de 2016. STF. Brasília. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4911778>. Acesso em: 01 out. 2016.

as audiências serviam para coibir as práticas de torturas e execuções realizadas pelas forças armadas73. (grifo nosso).

Ao cabo, é impossível deixar de se anotar o julgamento da ADPF n.º 34774, interposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em maio de 2015, que objetivava o reconhecimento pelo STF do “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro, propondo providências a serem tomadas pelo poder público, a fim de proporcionar o mínimo de dignidade ao sistema carcerário, inclusive com a adoção imediata das audiências de custódia.

Os Ministros, em seus votos, ressaltaram a relevância de também se observar as consequências advindas da omissão do poder estatal e não só as decorrentes de sua ação. O Ministro Celso de Melo foi imperioso em alegar que a inércia do Estado em viabilizar as imposições constitucionais revela um desrespeito pela Carta Magna, configurando verdadeiro sentimento de indiferença pelo valor e alto significado que se reveste a Constituição75. Nessa ação, julgada em setembro de 2015, o STF atendeu o pleito do PSOL e determinou que todos os juízes brasileiros, em até 90 dias, dessem cumprimento aos Tratados Internacionais, realizando as audiências de custódia.

Assim, da análise das duas ADI e da ADPF, resta claro que a Suprema Corte inclina-se pela constitucionalidade da implementação das audiências de custódia no Brasil, independentemente de haver, ainda, projeto de lei visando incorporá-las ao CPP, pois, como bem posto no capítulo anterior, e reiterando as palavras de Flávia Piovesan: “torna-se possível a invocação imediata de tratados e convenções de direitos humanos, dos quais o Brasil seja signatário, sem a necessidade de edição de ato com força de lei, voltado à outorga de vigência interna aos acordos internacionais”76

.

73 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MAGISTRADOS ESTADUAIS. Petição Inicial na ADI n.º 5448.

Supremo Tribunal Federal, Poder Judiciário, Brasília, DF, 2015, p. 06-07. Disponível em: <

http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.j sf?seqobjetoincidente=4911778>. Acesso em: 07 out. 2016.

74

Acompanhamento processual da ADPF n.º 347 disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4783560>. Acesso em: 17 out. 2016.

75 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na ADPF n.º 347. Requerente: PSOL. Requerido:

União e outros. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, DF, 09 de setembro de 2015. Diário de

Justiça Eletrônico. Brasília, 19 fev. 2016. Ata n.º 13/2016. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronic o.jsf?seqobjetoincidente=4783560>. Acesso em: 17 out. 2016.

76 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14 ed. São

Nesse passo, pode-se, agora, passar à próxima seção, em que serão expostos os demais argumentos que embasam o ponto de vista, favorável ou desfavorável, das instituições estatais já delimitadas.

Documentos relacionados