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4. A COMPLEXIDADE DE MARCELA POR MEIO DOS CONFLITOS

4.1 As relações sociais conflitantes

4.1.3 A incomunicabilidade criada entre as personagens

Torna-se pertinente apresentar a existência de uma outra problemática vivenciada por Marcela, demarcando situações conflitantes entre as personagens com quem ela convive: a incomunicabilidade crescente e extremada desenvolvida entre eles, produzindo cada vez mais a dificuldade das relações e denotando a representação permanente da solidão e do isolamento de cada um em seu mundo distinto e particular.

Essa evidência será melhor explicitada quando passamos a comparar o relacionamento inicial das personagens e as mudanças ocorridas no decorrer da narrativa. Assevera-se que o desenvolvimento da sexualidade de Marcela é o ponto de partida e o desencadeador das dificuldades das relações entre as personagens, fazendo com que não consigam lidar com o contexto social a eles impostos e culminando no distanciamento cada vez mais manifesto.

De modo mais extremado, como já enunciamos, pode-se apontar o distanciamento evidente provocado entre pai e filha, que cria um grande abismo entre os dois e impossibilita que cada um possa enxergar as individualidades, as necessidades do outro e tente buscar mudanças. Todavia, percebe-se que a postura de José no início da narrativa não era tão problemática assim, já que ele se relacionava de forma mais serena com a filha, como podemos observar no seguinte fragmento:

José era triste. No principio ainda se sentava para jogar malhas com ela, pentear sua bruxa de pano, tanger a tartaruga em que ela montava, colecionar búzios e pescar cavalos-marinhos. (LOPES, 2000a:34)

Essa passagem da narrativa demonstra como as relações entre pai e filha, no início, eram mais aprazíveis, pois mesmo José sendo um homem triste, ainda se relacionava com Marcela, tinham maior proximidade e conseguiam estabelecer uma convivência mútua. À medida que ela cresce e as problemáticas vão aparecendo, as diferenças entre eles vão ganhando contornos mais evidentes e começam a se distanciar:

Mas aos poucos tudo vai mudando, cada um se isolando no seu canto. Ultimamente ela chega a passar um dia inteiro na Pedra das Penas e José procurando-a , gritando por ela (LOPES:2000a:80)

Certa manhã, quando abriu a porta da cabana, viu-a despida e passeando na praia. Desceu ao terminal do córrego, ela voltou-se calmamente, sorriu e continuou a caminhar. Não importava que José estivesse observando-a do alto da torre. Se lhe gritasse não respondia. Não era grosseira, mas alheia, cantarolava apenas. (LOPES, 2000a:81)

Diante desses fragmentos, percebemos através da perspectiva do velho Daniel como as relações entre pai e filha foram transformando-se em pura apatia, numa alienação exagerada. José se concentrou na sua solidão e ódio extremo, passando a vigiar Marcela compulsivamente, ao passo que a própria Marcela, passou a desconsiderar e ignorar a presença do pai, tornando-se totalmente apática aos seus chamados.

Esse distanciamento entre os habitantes pode ser observado também entre José e Daniel bem como entre Marcela e Daniel que conviviam desde que pai e filha chegaram à ilha, mas aos poucos as mudanças também foram aparecendo. No que diz respeito à relação entre Daniel e José percebe-se que no início era mais tranquila e amigável:

- Daniel, vamos dividir nosso trabalho. Cuido do farol, mantimentos e suprimentos, você ajuda a levantar uma meia parede na casa-grande, uma sentina nos fundos, tabique perto da fonte. Marcela tem quase dez anos.

Também sua cabana precisa de melhorias. A gente podia construir um trapiche para facilitar o desembarque da lancha de Pepe. (LOPES, 2000a:34)

Nota-se através do fragmento que José e Daniel estabeleciam toda uma convivência na ilha, dividindo as tarefas, comentando sobre trabalho, fazendo planos sobre que atividades desenvolveriam juntos. No entanto, destaca-se que com o passar do tempo José se afasta de Daniel enciumado pela filha e temendo que ele pudesse roubá-la de José. Daniel é impedido de frequentar a casa-grande e passa a ser vigiado, tendo sua casa invadida muitas noites por José procurando pela filha. O extremo dessa situação será a total inexistência de relação entre os dois, não trocando mais nenhuma palavra entre si.

Com Marcela a situação será a mesma, embora Daniel tenha sido aquele que mais conviveu fraternalmente com ela porque foi uma espécie de professor para a menina, ensinando-a a ler, a escrever, contando histórias e desenvolvendo uma afeição e amizade muito bonita entre os dois, com as mudanças de Marcela e as transformações das relações na ilha, a menina passa a se distanciar inclusive de Daniel:

Restavam-lhe os dias, a rotina. Apanhava água, fazia café, punha o machado no ombro. Ao cruzar por ela diminuía o passo, às vezes parava a sua frente e esperava dela uma palavra qualquer, desejava fazer-lhe perguntas, mas ela continuava a cantarolar, cabeça baixa, estendendo roupa no arame ou regando as plantas. (LOPES, 2000a:81)

Por meio da perspectiva de Daniel, podemos observar o distanciamento de Marcela para com ele, a menina que antes era curiosa, falante, sempre a fazer perguntas a Daniel sobre tudo, tornou-se uma pessoa fechada, incomunicável, alheia ao que acontecia ao seu redor, criando barreiras no seu relacionamento com outros. Daniel não conseguia entender a atitude de Marcela, mas sentia que não podia mais viver na ilha, já que a única coisa que importava para ele ali era Marcela e ao sentir que a perdera, entendeu que “perdera a própria ilha”, decidindo partir para o continente.

No íntimo de Marcela, veremos que a partida de Daniel causou grande sofrimento, mas já não conseguia modificar aquela realidade a que estava submetida, concentrando-se apenas numa evidente passividade, sem poder de modificação diante da sua realidade sofrida, mergulhando em seus próprios conflitos: “Chorei a noite passada quando Daniel abandonou a ilha. Ele ensinou-me a crescer. Sinto que não o verei nunca mais” (LOPES, 2000a:74).

Esse distanciamento entre as personagens será também estendido para Roberto que veio substituir Daniel depois de sua partida. Quando Roberto chega à ilha já sente

um clima de desconfiança, de estranheza e logo passará a sentir medo de José quando compreende a relação esquisita entre pai e filha, percebida por meio do controle exacerbado de José e o comportamento intrigante de Marcela.

A própria natureza de Roberto já revela um homem misterioso, excêntrico, “arrastando a perna esquerda, riscando a terra com a ponta do pé” (LOPES, 2000a:95), restringindo-se a escutar as instruções de José e permanecendo “fechado no seu silêncio” (LOPES, 2000a:95), apenas observando o que acontecia na ilha e sentindo sempre um clima de estranheza. Desde o início, procurou não se aproximar de Marcela, pois era vigiado a todo o momento por José: “Roberto trabalhando, capinando, como se ninguém mais existisse aqui além dele mesmo” (LOPES, 2000a: 54).

Diante dessas considerações, assevera-se o grande distanciamento provocado entre os habitantes da ilha, o relacionamento entre Marcela e os outros passa a quase não existir: ela vive a se refugiar no seu relacionamento com Saulo, deixando todos intrigados com as suas atitudes e extremamente perturbados, pois não conseguem definir o que estava acontecendo em sua intimidade. Todos os habitantes “pareciam três estranhos, como se tivessem perdido a voz” (LOPES, 2000a:53), cada qual criando suas próprias redomas e ali se fechando “quase não trocavam palavras nos últimos meses cada um em seu canto” (LOPES, 2000a:62).

Nessa gama de fronteiras e distâncias entre as personagens, observamos que cada indivíduo em particular criou um universo próprio e ali se concentrou como ser humano mudo. Cada um só enxergava a si mesmo, pois era incapaz de reconhecer uns aos outros. Isso acontece porque cada personagem, vivendo com os seus conflitos interiores, acabou por se concentrar apenas nessas dificuldades: José sempre marcado pela traição da mulher, da qual não conseguiu se desvencilhar; Roberto determinado por uma trajetória estranha, indecifrável que ele apenas sentia como um mal irremediável; Daniel carregando os sinais de um passado difícil, com uma experiência no seminário frustrada, um histórico de fracasso nos trinta anos de farol e a perda do filho e da esposa. Ao lado de todas essas crises e tensões individuais, desenrola-se a trajetória tumultuada de Marcela, uma personagem inteiramente confusa e perturbada diante das novas descobertas e transformações, vivendo isolada em uma ilha e isolando-se em seu próprio mundo fantasioso, distante de tudo ao seu redor.

Essa conjuntura denota uma questão bastante presente e peculiar nessa narrativa: a questão do silêncio. Recolhidos a si, as personagens são silenciadas e não sabem criar pontes de relacionamento umas com as outras. Tal silêncio revela-se na ausência de interação entre elas observada por meio da inexistência de fala e de expressão dialogal

dentro do romance, o que será resolvido por meio do voltar-se para a interioridade através do fluxo de pensamento das personagens.

Observa-se que todas as discussões e embates entre as personagens se revela por meio da interiorização dos pensamentos através da exploração da consciência que passa a refletir as problematizações entre elas. Essas personagens não dialogam por meio do ato presente da fala, mas sim, por meio da interiorização dos pensamentos, cada monólogo interior baseia-se numa resposta a voz do outro, cada personagem considera a visão do outro e a interpreta, produzindo um embate de ideias e discussões.

Esse tipo de método narrativo é o que Mikhail Bakhtin chama de microdiálogo, a interação das consciências no âmbito das ideias percebido, por exemplo, por meio de um monólogo interior dialogado, encontrado nos romances dostoievskianos, caracterizados pelo discurso polifônico: “nele[s] todas as palavras são bivocais, em cada uma delas há vozes em discussão (...) o diálogo penetr[a] no âmago de cada palavra, provocando nela luta e dissonância de vozes” (BAKHTIN, 1997:75).

Podemos ilustrar esse monólogo interior dialogado, representando as vozes em discussão, por meio de uma passagem do romance em que Marcela percebe que ficou sozinha na ilha e, vivendo na iminência de perder seu pai e Roberto, passa a refletir dentro de seu próprio discurso as vozes e pensamentos das demais personagens:

Pai! Roberto! Não pode deixá-los morrerem. São homens, fracos, brutos, odeiam e sofrem e possuem medo (...) Pai! Roberto! Roberto! Venham! Está tudo pronto na mesa. Venham! Quero vê-los aqui, em volta, tomando café. Assim como são, grosseiros, as mãos calosas, braços peludos, pés grandes e chatos, barbados, possuindo ódio e medo. (...) Pai, você é importante no seu medo, eu ajudarei você a envelhecer. Esqueça o ódio a mãe (...) Olhe ali Roberto que vem da cabana arrastando a perna... ela não quer destruir você nem dominar a ilha, quer apenas conviver conosco. Podemos ainda nos amar os três. (LOPES, 2000a:149-150)

Nessa passagem, observa-se o monólogo interior de Marcela a refletir e trazer para o seu discurso a interpretação de vozes que são das outras personagens. A moça evoca os comportamentos do pai, interpreta a situação problemática vivenciada na ilha, trazendo para o seu pensamento o reflexo da voz do outro como se estivesse promovendo um diálogo. Além disso, podemos perceber que tal postura de Marcela revela uma tentativa de conseguir promover a comunicação entre as personagens, um convívio sadio e feliz, o qual elas não conseguiram vivenciar até aquele determinado momento. Esse é o auge da incomunicabilidade entre as personagens, pois as tentativas de Marcela por tentar resgatar essas relações revelam-se no ápice da tragédia quando todos já haviam se lançado ao mar e seria impossível o retorno. Será assim que a

personagem desacreditada, desiludida e vivendo a conturbação psicológica mais extremada entrega-se à sua própria destruição.

Por meio de todas essas discussões sobre as relações sociais conflitantes dessa narrativa de Lopes, patenteia-se que o contexto social vivido por Marcela denota a extrema complexidade que se desenrola em torno de sua figura, porque as constantes oscilações de comportamento impelidas pelas problemáticas internas em combate com a vivência externa impedem a criação de uma imagem bem definida e determinada da personagem.

Nesse sentido, percebemos em Marcela a concentração de várias características que permitem considerá-la como uma personagem complexa da narrativa moderna, pois é um ser desiludido que não vislumbra nenhum tipo de mudança futura, profundamente sem perspectiva. Mais que isso, a sua trajetória e conflitos interiores não deixarão para o leitor nenhuma visão conclusiva do mundo. A personagem termina o romance ainda mais problemática e incerta, pois “jamais entra em contato com algo mais do que uma realidade dividida e divisora” (ZÉRAFFA, 2010:129)

A trajetória de Marcela acaba por ser definida por um embate entre a vida subjetiva e a realidade exterior do mundo que nunca está em consonância com as questões da consciência, corroborando numa postura de passividade da personagem diante das situações, determinada por sua incapacidade de ação. Tal impossibilidade de mudança da realidade vivida será bem representativa para acompanharmos a natureza de Marcela, pois se observa que a personagem não consegue levar adiante nenhum tipo de ação diante do contexto social hostil do qual faz parte, acaba concentrando-se em seus conflitos mais interiores e fechando-se em seu silêncio.

Mesmo no fim da narrativa, quando Marcela apresenta uma tomada de consciência sendo capaz de observar os fatos de outra forma, reconhecendo realidades que não enxergava antes, sua reflexão consciente e bastante reveladora não produz nenhum tipo de mudança na personagem, pelo contrário, é nesse momento de esclarecimento tão fugaz, como um lampejo, que ela entrega-se definitivamente a sua própria destruição, deixando evidente o abismo criado entre a vida subjetiva e a sua realidade exterior.

Diante desse contexto, a representação de Marcela será dada ao leitor como um quadro de incertezas repleto de incompletudes oriundas das constantes oscilações comportamentais provocadas pelas situações sociais conflitantes que produzirão, consequentemente, imagens difusas e destoantes da personagem, como se a vivência e a imagem de Marcela fossem refletidas por meio de um espelho quebrado, onde só

enxergamos a dissociação, a inexistência de contornos, a fragmentação, por fim, a complexidade da personagem.

4.2 A CAMADA SIMBÓLICA E AS REPRESENTAÇÕES METAFORIZADAS