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A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL

4 A SUCESSÃO NA UNIÃO ESTÁVEL COM FILIAÇÃO HÍBRIDA

4.3 A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL

Conforme visto anteriormente, o direito sucessório aplicado à união estável nunca foi tratado de maneira satisfatória pelo legislador brasileiro. A começar pela árdua busca de seu reconhecimento como entidade familiar, os poucos direitos hoje resguardados à união estável foram alcançados à duras penas.

Além de pouco regulado, a disposição do direito sucessório na união estável é alvo de muitas críticas quanto à forma de tratamento dos indivíduos e patrimônios envolvidos. Um dos dispositivos mais censurados é artigo 1.790 do Código Civil/2002 devido à sua maneira discriminatória de tratar a união estável enquanto entidade familiar e até mesmo os descendentes. Mesmo sendo o único que versa sobre este tipo de sucessão no Livro V (Do Direito das Sucessões) do diploma civil atual, o referido artigo é considerado por muitos inconstitucional em virtude de violar relevantes princípios constitucionais, a exemplo da vedação do retrocesso, isonomia e dignidade da pessoa humana.

Segundo VELOSO (apud GOUVÊA, 2009, p.41):

Se a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado; se a união estável é reconhecida como entidade familiar; se estão praticamente equiparadas as famílias matrimonializadas e as famílias que se criaram informalmente, com a convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, a discrepância entre a posição sucessória do cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente, além de contrariar o sentimento e as aspirações sociais, fere e maltrata, na letra e no espírito, os fundamentos constitucionais.

Em verdade, os direitos patrimoniais da união estável foram praticamente igualados aos do casamento no que tange ao regime de comunhão parcial de bens, abrindo a lei espaço para que os conviventes firmem diverso regime em contrato escrito. É o que se lê do artigo 1.790 do Código Civil/2002: “Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.

Contudo, quando se trata de sucessão, as duas entidades familiares são abordadas diferentemente. Primeiramente, a leitura do próprio dispositivo constitucional que erigiu a união estável a entidade familiar é alvo de dúbia interpretação no que tange à igualdade entre os institutos da união estável e

casamento. Assim aduz o artigo 226, §3º da Constituição Federal/88: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

Boa parte da doutrina defende não ser cabível dupla interpretação ao referido artigo legal. O fato de a lei ter previsto que seja facilitada a conversão da união estável em casamento não significa que este seja mais importante que aquela. Trata-se de uma norma proibitiva onde o legislador quis impedir que a lei infraconstitucional dificultasse a conversão entre as entidades familiares (TARTUCE e SIMÃO, 2012, p.244).

Conforme elucida DIAS (2013, p. 72) acerca do tratamento discriminatório:

Esse tratamento diferenciado não é somente perverso. É flagrantemente inconstitucional. A união estável é reconhecida como entidade familiar pela Constituição Federal (CF, 226, §3º), que não concedeu tratamento diferenciado a qualquer das formas de constituição da família. Conforme Zeno Veloso, o art. 1.790 merece censura e crítica severa porque é deficiente e falho, em substância. Significa um retrocesso evidente, representa um verdadeiro equívoco. Como alerta Rodrigo da Cunha Pereira, não há dúvida que este artigo apresenta um grande retrocesso para a união estável, vez que colocou o companheiro em posição muito inferior ao cônjuge. Ao que parece, retomou-se a mentalidade de que a união estável é uma “família de segunda classe” e não uma outra espécie de família, nem melhor nem pior do que o casamento, apenas diferente.

Entretanto, essa ideia de hierarquização das entidades familiares permeou diversos outros dispositivos, especialmente o artigo 1.790 do Código Civil/2002, que assim afirma:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. O que se observa é que o legislador não inseriu os companheiros no rol dos herdeiros necessários, conforme dicção do artigo 1.845 do Código Civil/2002: “São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”,

possibilitando-lhe a exclusão da participação na legítima. Segundo VENOSA (2013, p. 150):

A impressão que o dispositivo transmite é de que o legislador teve rebuços em classificar a companheira ou companheiro como herdeiros, procurando evitar percalços e críticas sociais, não os colocando definitivamente na disciplina da ordem de vocação hereditária. Desse modo, afirma eufemisticamente que o consorte da união estável ''participará" da sucessão, como se pudesse haver um meio-termo entre herdeiro e mero ''participante" da herança. Que figura híbrida seria essa senão a de herdeiro!

Alegando o tratamento discriminatório e, portanto, inconstitucional, dado pelo artigo 1.790 do Código Civil/2002 à união estável e também criticando a omissão do ordenamento em reconhecer o companheiro como herdeiro necessário, PEREIRA (2014, p. 150) afirma:

Os resultados são manifestamente insatisfatórios: não apenas se deveria ter reservado local mais apropriado para as normas do art. 1.790, como também não se poderia ter deixado de aludir ao companheiro – segundo a orientação que fosse claramente adotada – no art. 1.845 ou no art. 1.850: num deles certamente haveria de enquadrar-se aquele sucessor. De tudo isso fica a sensação de que o art. 1.790 é, no sistema do novo Código Civil, um corpo estranho, pouco à vontade na companhia de outras normas originalmente concebidas para um sistema que simplesmente desconhecia a figura do companheiro, no campo sucessório.

Ademais, diferentemente do que sobrevém ao cônjuge, que concorre apenas com descendentes e ascendentes (artigo 1.829 do Código Civil/2002), o companheiro, conforme o dispositivo em apreço, concorrerá com todas as classes, inclusive colaterais até o quarto grau (artigo 1.790, III, Código Civil/2002).

Além de trazer clara desigualdade entre os institutos, este dispositivo apresenta profunda violação ao princípio da vedação do retrocesso, mais um motivo para conclamá-lo de inconstitucional. Isto ocorre porque o artigo 2º, III, da Lei n. 8.791/94 assim dispunha acerca do posicionamento do companheiro na ordem de vocação hereditária:

Art. 2º As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições:

III - na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.

Acerca do princípio constitucional implícito da vedação ao retrocesso, BARROSO (apud COSTA e SOUZA, 2013, p.8) afirma que:

Por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico- constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser arbitrariamente suprimido.

Latente, pois, que o atual código civil, ao disciplinar a sucessão do companheiro retrocedeu em garantir-lhe direitos, porquanto o tratamento legislativo atual é significativamente inferior se comparado à antiga legislação. Conforme o artigo 1.790 do atual Código Civil, o companheiro só herdará a integralidade da herança se não houver nenhum outro parente colateral sucessível. Mostram-se necessárias, pois, mudanças no sistema atual do direito sucessório da união estável, a fim de evitar que no plano fático os conviventes sejam prejudicados pela inconstitucionalidade do artigo (COSTA e SOUZA, 2013, p.8).

Como se não bastasse o tratamento diferenciado entre companheiro e cônjuge, o artigo 1.790 do Código Civil/2002 ainda é repreendido pela forma que disciplina a concorrência sucessória no que tange aos filhos.

O artigo 227, §6º, Constituição Federal/88, proíbe quaisquer formas de discriminações entre filhos: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Pelo princípio da igualdade, não se considera mais válidas classificações filiais. A dicotomia entre filhos legítimos e ilegítimos, por exemplo, não merece mais espaço no ordenamento jurídico brasileiro após esta garantia constitucional.

Entretanto, o artigo 1.790 do Código Civil/2002, ao disciplinar a concorrência na união estável, dá a entender que os filhos comuns merecem receber quota inferior à concedida aos filhos unilaterais do autor da herança. Pelos modos de partilha dos incisos I e II do supracitado dispositivo legal, o companheiro sobrevivente receberia quinhão igual ao dos filhos comuns, enquanto isso, os filhos exclusivos do de cujus auferem quinhão correspondente ao dobro do que aufere o companheiro sobrevivente.

Essa diferença de tratamento que coloca sob suspeita de inconstitucionalidade o artigo 1.790 do Código Civil fica ainda mais evidente na situação hipotética em que, numa sucessão: exista apenas um filho em comum para concorrer com o companheiro sobrevivente, esse filho receberia a metade da herança, ficando a outra metade com o companheiro sobrevivente. Já na hipótese em que o companheiro sobrevivente concorra com apenas um filho exclusivo do autor da herança, esse filho ficaria com dois terços da herança, ficando o outro terço com o companheiro sobrevivente, de quem é enteado. Está claro que existe, para efeitos de sucessão, diferença entre ser filho em comum e ser filho só do autor da herança.

A única maneira justificável para que os filhos, herdeiros necessários (artigo 1.829, inciso I, Código Civil/2002), recebam quinhões diferentes entre si é nos casos em que o autor da herança deixa testamento dividindo arbitrariamente sua parte disponível da herança entre seus descendentes. Isto porque, a relação existente entre descendentes do de cujus e companheiro supérstite é indiferente quando se está a promover a sucessão dos bens daquele que, igualitariamente, é ascendente de todos os filhos.

Em vista disso, cabe ao legislador promover o cumprimento da determinação constitucional que estatui idêntico tratamento à união estável e ao casamento como entidades familiares de caráter instrumental e fundadas no respeito, dignas da proteção estatal igualitária. Toda forma de discriminação entre união estável e casamento, seja em sede legislativa ou judiciária, deve ser considerada inconstitucional. Assim, propõe-se o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil/2002 de maneira que as entidades familiares sejam igualmente tratadas – artigo 226, §3º, Constituição Federal/88 e artigo 2º, III, Lei n. 8.791/94 (DIAS, 2013, p. 73).