• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 5 ASPECTO DOGMÁTICO DO DELITO DE DISPARO

5.1. A inexpressividade do art 15 da Lei 10.826/03

A necessidade do desenvolvimento dogmático dos elementos descritos na figura típica do delito de disparo nos conduz a um retorno ao âmbito do sistema jurídico-penal.

Com o intuito de averiguar o grau de formalização do texto legal, a análise do problema mergulha no universo dogmático para revelar a capacidade do instrumental teórico e prático permitir ao operador jurídico o reconhecimento de importância penal somente nos casos concretos em que estejam presentes os parâmetros legitimadores do delito de disparo.

O tipo legal de crime tem como papel a fixação do marco de interpretação e conseqüente aplicação da norma penal. O cumprimento desse encargo fica a depender de uma técnica legislativa capaz de forjar os termos da lei de modo preciso e fiel ao conteúdo material162, de tal forma que o caráter especialmente reprovável que dele se expressa possa ser captado com precisão mediante a leitura do dispositivo legal163 (ROXIN, 2006, §7, nm. 55, p. 219).

No que tange a esse rendimento interpretativo no âmbito do tipo legal de disparo, a aplicação prática do enunciado contido no artigo 15 da Lei 10.826/03 tem evidenciado certa esterilidade expressiva do texto legal. Tal deficiência está manifestada na superficialidade com que os operadores jurídicos reconhecem a relevância penal das hipóteses concretas de disparo, tendo em vista o fato no qual a determinação de um efetivo resultado de ofensa não é levado em conta como pressuposto da tipificação daqueles casos.

O reflexo dessa visão incompleta do conteúdo material do delito está projetado nas razões que compõem grande parte dos processos judiciais relacionados à aplicação do aludido dispositivo legal. Talvez em decorrência da ausência de um resultado típico que facilitasse a visualização da ofensa ao bem jurídico, as análises jurisprudenciais do delito de disparo

161 O artigo 15 da Lei 10.826/03 prevê como crime: “[...] disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar

habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime.”

162 Trata-se da “função de garantia” atribuída ao tipo penal que, em um sentido político-criminal, consubstancia o

cumprimento do princípio nullun crimen nulla poena sine lege pelo legislador, devendo criar “[...]com o teor literal do preceito um marco de regulação que é preenchido e concretizado pelo juiz.” (ROXIN, 2006b, §5, nm. 28, p. 148).

163 Segundo Roxin (2006b, §5, nm. 11, p. 141), dentre as conseqüências do princípio da legalidade, uma delas

exige que o legislador elabore o preceito penal de forma mais precisa, permitindo que nele reconheçam-se as características atribuídas à conduta punível.

concentram a força dos argumentos de reprovação do fato em torno do desvalor da ação, faltando empenho na valoração do resultado164. Não é sem razão que, invariavelmente, as

decisões de absolvição por atipicidade da conduta são tomadas somente em sede dos casos de inexistência da ocorrência do disparo165 ou ausência de dolo ensejada por “disparo

acidental”166, ao passo que as decisões condenatórias consideram irrelevante para o

cumprimento do tipo “[...] a avaliação subseqüente sobre a ocorrência de efetivo perigo à coletividade.”167

Toda essa dificuldade do operador em inferir o conceito material do delito por intermédio da análise do enunciado legal demonstra que, ao contrário do esperado168, a

descrição típica não é capaz de transmitir os aspectos do comportamento de disparo que o tornam relevante para o Direito penal e, portanto, que servirão para orientar o juízo legítimo de tipicidade da conduta concreta169. Em outras palavras, tal deficiência expressiva impede o

tipo penal de vincular o aplicador à opção político-criminal de intervenção mínima, já que os termos legais da descrição típica não oferecem ao operador indicativos que apontem para a necessidade de identificar a ofensa ao bem jurídico tutelado e a gravidade com que a conduta o afeta (aniquilando? Pondo em perigo?).

Portanto, a constatação de que o enunciado do art. 15 da Lei. 10.826/03 não expressa o conteúdo material do delito de disparo com a devida clareza, faz surgir uma desconfiança sobre a idoneidade da descrição legal em assegurar a interpretação dos elementos típicos e a conseqüente aplicação da pena, conforme os parâmetros político-criminais de legitimação do delito de disparo.

164 O injusto penal é composto, em todo caso e sem exceções, da existência de uma ação desvaliosa, no que tange

a sua finalidade, e de um resultado juridicamente desaprovado, em razão da causação de ofensa ao bem jurídico tutelado (ROXIN, 1997, §10, nm. 88, p. 320).

165 Nesse sentido, indique-se acórdão da Sexta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande

do Sul (Ap. Crim. n. 70.014.854.657, Rel. Des. Aymoré Roque Pottes de Mello – DJ 20.09.06, (RIO GRANDE DO SUL, on-line). O mesmo entendimento é identificado em acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Ap. Crim. n.993.07.097070-7, Des. Rel. Cláudio Caldeira – DJ 5.03.09. (SÃO PAULO, on-line); Ap. Crim. n. 990.08110633-7, Rel. Des. Wilson Barreira – DJ 29.01.09, (SÃO PAULO, on-line).

166 Indique-se acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Ap. Crim. n. 998318.3/6-0000-000, Rel.

Des. Mariano Siqueira – DJ 23.04.07, (SÃO PAULO, on-line).

167 Trecho do acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (Ap. Crim. n. 1.0177.05.002048-2/001,

Rel. Des. Sérgio Resende – DJ 8.05.07, (MINAS GERAIS, on-line).

168 Segundo Silva Sánchez (2002a, p. 312), as normas jurídico-penais são o sentido, a mensagem prescritiva que

se depreende dos enunciados legais, entendidos estes como um conjunto de signos lingüísticos.

169 Considerado um “conjunto de normas”, o Direito penal tem nas normas jurídico-penais o “[...] instrumento

essencial de que se serve [...] para o cumprimento dos fins preventivos e garantísticos que justificam sua intervenção (como intervenção mínima) na sociedade.” (SILVA SÁNCHEZ, 2002a, p. 311, 373).