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CAPÍTULO III – FICÇÃO E CONHECIMENTO MORAL

3. A influência moral enquanto reminiscência

Uma última possibilidade de influência moral da ficção é aquela que toma a interpretação como uma recordação. Analisaria esta possibilidade tomando como ponto de reflexão o diálogo Ménon. Na medida em que aquilo que é objeto de reminiscência possui um conteúdo cognitivo-moral e também estético, seria produtivo pensar esta reminiscência como algo que se vê, mas não é passível de ser reduzida ao discurso. É a essa conclusão que procurarei chegar, partindo sobretudo da análise que Iris Murdoch faz da filosofia de Platão em “The Fire and the Sun: Why Plato banish the Artists”.

Esta última parte seria, pois, dedicada a analisar a relação do leitor com o conteúdo cognitivo que encontra na ficção. Este conteúdo é aquilo que o leitor espera retirar do texto, sendo impossível inferir que necessariamente se recolha daí algum tipo de influência moral. Na medida, no entanto, em que se toma como modelo de análise a filosofia de Platão, a valorização da dimensão emotiva da cognição, que anteriormente se encontrou em Aristóteles, será substituída por interpretação da arte em que beleza e virtude se equivalem. É também possível admitir que as conclusões éticas do romance sejam relativamente intuitivas, não sendo improvável que a leitura se venha a revelar um exercício inútil, apenas transmitindo aquilo que já sabíamos. Curiosamente, ao pretender atacar a interpretação cognitivista da ficção, Joshua Landy constrói, em How to Do Things with Fiction, uma linha de argumentação bastante semelhante a esta, afirmando:

Yes, there is an argument against murder in Crime and Punishment, but surely it is implausible to think that it requires a novel as elaborate as Dostoyevsky’s to teach it, and even if Dostoyevsky designed the novel as a teaching aid, did anyone really learn that murder is wrong from it? . . . In fact, it is probably a precondition of actually comprehending Crime and Punishment that the readers already grasp the moral percepts that motivate the narrative. (2012: 159)

Embora claramente anti-cognitivista, a argumentação de Landy estabelece uma associação involuntária entre virtude e recordação que não é despicienda no contexto da

obra de Platão. É com esse problema que Sócrates se defronta em Ménon. Em face da inexistência de professores de virtude, a solução não se irá dar sem o recurso à reminiscência, relevando da importância desta na aquisição de conhecimento.

A primeira pergunta com a qual Sócrates se depara no Ménon é introduzida logo no início do diálogo: “a virtude tem possibilidade de ser ensinada?” (Ménon, 70 a) Partindo do pressuposto de que só existe ciência daquilo que puder ser ensinado, e admitindo que não existem professores de virtude, Sócrates conclui que a virtude não é saber nem pode ser ensinada. E é isso que o levará a concluir que “se a virtude for saber ensina-se, se não for, não se ensina”.

O raciocínio subjacente a esta tese foi designado pelos críticos como “craft analogy” (“analogia com posse de técnicas artesanais”). Toda a arte está associada a um saber e à possibilidade deste poder ser ensinado. A arte do sapateiro adquire-se na casa do sapateiro, do mesmo modo que a medicina se adquire junto do médico. Uma vez que não se conhecem professores de virtude, e uma vez também que, tal como Sócrates sugere a Ágaton no diálogo O Banquete, esta não pode ser adquirida por osmose, é possível concluir que a virtude é insuscetível de ser ensinada65.

Embora correto, o argumento permitirá que, subsequentemente, Ménon conclua pela inexistência do saber. O saber deverá conduzir ao contacto com o objeto daquilo que se estuda. No entanto, se não soubermos o que é, não poderemos encontrá-lo e, por outro lado, se por acaso o encontrarmos, não saberemos identificá-lo como objeto do nosso saber, uma vez que antes afirmámos desconhecer aquilo que era. Este problema ficou conhecido como paradoxo do investigador, e é apresentado a Sócrates da seguinte forma:

. . . mas, de que maneira vais tu investigar, Sócrates, aquilo que de todo em todo ignoras o que seja? Efetivamente, se te propuseres essa tarefa, qual das coisas que não sabes vais estudar? Ou, então, se te encontrares, por acaso, com essa coisa precisamente, como irás reconhecer que era aquilo que ignoravas? (Ménon 80 d)

65 No diálogo O Banquete, Sócrates diz a dada altura a Ágaton: “Bom era, Ágaton, que a sabedoria fosse uma

coisa assim, capaz de deslizar do mais cheio para o mais vazio quando estamos em contacto uns com os outros – tal como nas taças a água desliza, através de fiozinhos de lã, da mais cheia para a mais vazia.” Platão, O Banquete, 175 d, e.

Esta abordagem retoma o anterior problema da semântica e epistemologia dos valores, o qual procura definir a relação entre linguagem e realidade ética. Tal como Tappolet também destacou, na utilização comum da linguagem a simples nomeação dum termo traz consigo a convicção implícita de que este existe. Ao contrariar a tese anti-realista, segundo a qual a moral corresponde apenas a uma expressão emotiva e puramente psicológica, pressupõe-se igualmente que a virtude que Sócrates nomeia em Ménon é apenas parcialmente conhecida, por questões que se ficam a dever à ideia de opacidade da realidade, sobre a qual já antes falei.

Contrariamente ao que acontece quando nos mantemos no domínio da opinião, o contacto com a ideia de virtude poderá, no entanto, ultrapassar o conhecimento parcial. O carácter não-ensinável da virtude parece à primeira vista sugerir que deste saber poderemos apenas captar uma opinião verdadeira, que parcialmente participa do conceito abstrato de virtude. Segundo a maioria dos críticos, a ideia de reminiscência apresenta-se como solução perfeita para o problema do contacto com as ideias e as formas, permitindo uma evolução ascensional da opinião para o saber, e da filosofia, na sua aceção etimológica, para a verdadeira sabedoria.

Assim, se quisermos retomar a expressão de Parménides no diálogo homónimo, Sócrates seria “o amigo das formas”, às quais consegue chegar percorrendo a via da reminiscência. No estudo introdutório da tradução portuguesa de Ménon, José Trindade dos Santos destaca precisamente esse ponto, afirmando: “O Ménon não se limita a afirmar implicitamente que só há saber das formas. Avança pela via mais difícil e tenta mostrar-nos como podemos atingir esse saber: através da reminiscência.” (1993: 23)

A solução para o paradoxo do investigador parece assim ter sido encontrada, servindo também de resposta para a crítica formulada por Joshua Landy. A leitura da ficção não corresponderá necessariamente à transmissão dum conhecimento novo, mas antes à formulação duma dúvida para o problema de que já se conhece a resposta, e que a leitura apresentará sob a forma da recordação. Ao ler no romance sobre uma personagem na qual será fácil fazer o reconhecimento de si mesmo, o leitor reencontra também um sistema de valores que já conhecia, mas que ali aparece descrito a uma outra luz. As ações da personagem, suscetíveis de suscitar identificação, participam duma ideia abstrata de bem, à qual o leitor acede por via da recordação e evoluindo ascensionalmente do particular para o

geral. Ultrapassando as objeções que apontam a impossibilidade de cognição moral, o leitor encontra-se numa situação semelhante à do escravo de Ménon: “. . . sem ninguém o ensinar, mas sim interrogando-o, ele adquirirá conhecimentos, readquirindo ele próprio o saber de si próprio.” (Ménon, 85 d)