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3 BENJAMIM DA SUPERFÍCIE AO FUNDO

3.3. Tipos de contrato de veridicção

3.3.1. A instância do discurso e a breagem

Por instância do discurso entende-se, como quer Benveniste (BENVENISTE apud FONTANILLE, 2007, p. 97), o discurso em ato, o todo das operações que controlam esse discurso. A instância do discurso surge no momento efetivo da produção

da função semiótica, momento da semiose, no qual duas semióticas se encontram através de um corpo sensível: a semiótica do mundo natural e a semiótica do mundo da linguagem. Numa outra perspectiva, a instância do discurso nasce do encontro do plano de conteúdo com o plano de expressão.

Quando ocorre a semiose, a instância do discurso tem a atribuição de realizar a separação entre o mundo exterior, do qual ela retira os elementos do plano de expressão, e o mundo interior, que lhe fornece os elementos do plano de conteúdo. A essa divisão dá-se o nome de ―tomada de posição‖(FONTANILLE, 2007, p.97).

Entende-se, então, que a tomada de posição da instância do discurso é o primeiro ato da enunciação, o que equivale a dizer que ao enunciar, a instância do discurso enuncia a sua posição de corpo sensível, a sua presença e o seu presente. Essa presença é que servirá de ponto de partida para que outras operações possam ser orientadas, as chamadas operações de breagem: a embreagem e a debreagem.

A tomada de posição inicial, que estabelece a presença da instância do discurso, instaura um eu, um aqui e um agora. Esse é o eu, aqui, agora primordiais a partir dos quais o enunciador ―projeta fora de si categorias semânticas que vão instalar o universo do sentido‖ (BERTRAND, 2003, p. 90). Aqui está o começo da formação do discurso: uma espécie de ejeção das categorias básicas que se rvem de suporte para o enunciado. Essa ejeção inicial é a debreagem inaugural, que estabelece um não-eu,

não-aqui, não-agora, condição propícia para a instauração posterior de um eu, aqui, agora, pelo processo de embreagem. Esse segundo eu, um eu ―projetado‖ não tem nada a ver com o eu da tomada de posição inicial da instância. Para que se tenha um narrador em primeira pessoa, por exemplo, um eu que se apresenta no discurso, foi preciso que antes um ele (não-eu) fosse instituído. Tal operação é fundamental para que a atividade da linguagem seja possível, como destaca Bertrand:

Essa antecedência lógica do ―ele‖ em relação ao ―eu‖ é essencial. A possibilidade de usar ele, lá então, isto é, e abandonar a inerência a si mesmo e de representar sujeitos e coisas sem relação com a situação de fala, como um projeção objetivante, é a característica primordial da linguagem humana. Sob essa luz, os enunciados atribuídos diretamente à própria pessoa, aqueles que, como o grito, acompanham o surgimento dos afetos e das emoções, pouco diferem das linguagens animais. (BERTRAND, 2003, p. 92)

Essas rupturas de isotopia, percebidas como uma oposição entre um eu e um

ele, um aqui e um lá, agora e então, são apenas a parte superficial, textual, de uma

operação complexa de mudança de posição da instância do discurso. Consideradas em forma mais profunda, as operações de breagem representam um afastamento ou uma aproximação do ponto exato da tomada de posição original.

Benjamim é construído, em seu começo, num discurso totalmente debreado:

Zambraia é um ele, num sobrado abandonado, que é um lá, num momento de um passado, que é um então. A debreagem normalmente seria entendida como parte dos recursos que ―permitem fabricar a ilusão de distanciamento, pois a enunciação, de todo modo, está lá, filtrando por seus valores e fins tudo o que é dito no discurso‖ (BARROS, 1999. p. 55). O Capítulo 1, como já visto, assim se inicia: ―O pelotão estava em forma, a voz de comando foi enérgica e a fuzilaria produziu um estrondo. Mas para Benjamim Zambraia soou como um rufo e ele seria capaz de dizer em que ordem haviam disparado as doze armas ali defronte.‖ ( BUARQUE, 1995, p. 9). As isotopias são logo rompidas por uma operação de embreagem parcial. Os tempos verbais passam para o presente e, em conseqüência, a isotopia espacial também se rompe:

Se uma câmera focalizasse Benjamim na hora do almoço, captaria um homem longilíneo, um pouco curvado, com vestígios de atletismo, de cabelos brancos mas bastos, prejudicado por uma barba de sete dias, camisa para fora da calça surrada aparentando desleixo e não penúria, estacionado em frente ao Bar-Restaurante Vasconcelos, tremulando os joelhos como se esperasse alguém. Benjamim entretanto não espera nada, a não ser que ele mesmo resolva o dilema: entrar num bar-restaurante ou voltar para a cama. A questão é embaraçosa porque Benjamim não tem sono, nem sede, nem apetite, nem alternativa para esta tarde. Preso ao chão, as pernas irrequietas, impacienta-se com a própria hesitação, e é nessas conjunturas que lhe costuma voltar a sensação de estar sendo filmado. (BUARQUE, 1995, p. 10)

A narrativa segue com o predomínio dos tempos presentes, embora os pretéritos apareçam sempre que o passado de Zambraia é apresentado. Tem-se, a partir deste

ponto, uma embreagem espaço-temporal, um aqui e um agora. A isotopia actancial, no entanto, não é rompida. O discurso permanece parcialmente debreado: há um ele, aqui e agora. A persistência do ele, embora num aqui-agora, mantém aberta a pluralidade do discurso, já que a debreagem “pluraliza a instância do discurso: o novo universo de discurso, que é assim descortinado, comporta, ao menos virtualmente, uma infinidade (...) de atores” (FONTANILLE, 2007, p.99).

A embreagem, assim como todas as operações de breagem quando vistas sob a ótica da recepção, gera um efeito de sentido. Todo discurso quer persuadir seu destinatário de que é verdadeiro ou de que é falso. Os mecanismos discursivos têm a finalidade de criar essas ilusões. A instância do discurso, ao tentar se reposicionar de volta ao ponto original da presença, no que diz respeito ao tempo e ao espaço, através da embreagem, por exemplo, consegue apenas criar um simulacro dessa aproximação, uma vez que a ―realidade‖ da tomada de posição original nunca mais será de fato recuperada. Tal simulacro tem a intenção de aproximar a enunciação do discurso, criando um efeito de subjetividade, sobretudo numa embreagem actorial que instaura o

eu.

No caso de Benjamim, o discurso abandona a objetividade e o distanciamento pretendidos no início em favor de uma proximidade espaço-temporal: um aqui e um agora. A isotopia actorial, no entanto, permanece debreada. Pode-se associar a embreagem parcial como a tentativa de criar um narrador que discorre sobre ações que se desenrolam num presente em espaços que ele conhece juntamente com o narratário. Uma vez que a embreagem é apenas espaço-temporal, o narrador não irá se denunciar como tal: ele não é um eu, é apenas um aqui e agora de uma terceira pessoa. Esse jogo de breagens limita a ação do narrador e dá força a outra posição enunciativa: o observador.

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