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A instrução feminina e os usos alargados da escrita conventual

Levando em conta a pluralidade da produção manuscrita e o fato de que os livros compunham uma pequena fração do que saía das casas impressoras — entre libelos, panfletos, petições, letreiros, formulários, notas, receitas, certificados e muitos outros tipos de "ephemera" e de "trabalhos impressos" —,57 tem-se uma ideia das relações complexas

que os modernos mantinham com a palavra escrita, fosse ela manuscrita ou impressa. Esse modo heterogêneo e centrífugo de encarar a história do livro e da leitura, percebida nas especificidades que construíram seus usos em contextos particulares, é especialmente útil para compreender o mundo da escrita feminina que vicejou dentro dos conventos portugueses. A carta de fr. Acúrsio de São Pedro, que abre a introdução deste trabalho, por exemplo, nos informa que as freiras foram instadas a ler, em Comunidade e a intervalos regulares, as vidas das religiosas descritas no Tratado da antiga e curiosa fundação do Convento de Jesus de Setúbal. Na mesma carta, o frade ainda fazia questão de desaconselhar o empréstimo do livro para alguém de "fora". De partida, temos o exemplo de um livro de fundação que poderia ser objeto de apropriações diversas: aos olhos de fr. Acúrsio, algumas deveriam ser estimuladas; outras, evitadas e mesmo banidas.

Registros de natureza diferente também servem para ilustrar a pluralidade que pautou o uso da escritura dentro dos conventos no Portugal Moderno. Isabel Morujão, ao estudar o catálogo da biblioteca do Convento da Madre de Deus de Lisboa, produzido para atender ao edital da Real Mesa Censória de 1769, chamou atenção para a ausência significativa dos manuscritos produzidos por religiosas que, como sabemos por meio de outras fontes, frequentavam as leituras das freiras. Como a autora explica, parte desse

57 Roger CHARTIER. "The printing revolution – A reappraisal". In: S.A. BARON; E.N. LINDQUIST; E.F. SHEVLIN (eds.), Agent of change: print culture studies after Elizabeth L. Eisenstein, pp.397-408.

38 silêncio pode ser associada ao receio de informar o público exterior de um protagonismo feminino na escrita "que poderia suscitar, dentro e fora do convento, sentimentos e sensibilidades difíceis de gerir".58 Como veremos mais adiante, no quarto capítulo desta

tese, a apreensão que acompanhava a divulgação do que era lido dentro dos conventos pode justificar muitas atitudes, desde a montagem de um catálogo como o de 1769 até a definição do tipo de conteúdo que deveria figurar nas obras escritas pelas próprias religiosas, a depender se estas seriam destinadas a um público mais amplo ou não. E, de fato, a listagem do referido catálogo, que exclui completamente obras manuscritas — produzidas ou não pelas próprias religiosas, vale dizer —, deixa muito a desejar quando damos crédito ao que já se comentou sobre a intensa atividade de escrita e leitura que se desenvolveu naquela comunidade.59

Não são poucos os exemplos de religiosas que fizeram largo uso da escrita no período, tanto no conventos de Jesus de Setúbal e da Madre de Deus de Lisboa quanto na Província dos Algarves ou em todo o Reino, de maneira mais geral. Somente para esta província franciscana, o cronista Jerônimo de Belém cita pelo menos treze religiosas que deixaram no mínimo uma obra manuscrita ou impressa ao longo dos séculos XVI e XVII. Esse conjunto inclui sóror Leonor de São João, autora do Tratado da antiga e curiosa fundação do Convento de Jesus de Setúbal, bem como as sórores Maria do Sacramento e Joanna da Piedade, a quem ele atribui a autoria de uma obra intitulada Fogueiras, que

58 I. MORUJÃO, "Livros e leituras na clausura feminina de setecentos", p.165.

59 Outras motivações devem entrar nessa equação, e uma delas guarda semelhanças com a exclusão de obras de autores jesuítas do mesmo catálogo da biblioteca do convento. Isso pode ter sido fruto de um esforço de saneamento da imagem que se queria passar para a Real Mesa Censória, já que os autores da companhia, à altura do lançamento do edital, encontravam-se em descrédito no Reino. É o que acontece, por exemplo, com as obras de Alonso Rodrigues que, como se sabe, frequentavam as leituras das religiosas do Convento da Madre de Deus de Lisboa. Da mesma maneira, a omissão de obras escritas pelas próprias religiosas podia ser um modo simples de evitar qualquer vontade de verificação do seu conteúdo ou do conteúdo das livrarias conventuais. I. MORUJÃO, "Livros e leituras na clausura feminina de setecentos", pp.118, 163-165; Pedro Vilas Boas TAVARES. Beatas, inquisidores e teólogos. Reacção portuguesa a Miguel de Molinos. Porto: C.I.U.H.E., 2005, p.77; Leila Mezan ALGRANTI. Livros de devoção, atos de censura: ensaios de história do

livro e da leitura na América Portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec, 2004, p.54; M. do SACRAMENTO,

Notícia da fundação do Convento da Madre de Deus, fol.94; Maria Thereza de SÃO JOZÉ. Praticas

39 sabemos se tratar da Notícia da fundação do Convento da Madre de Deus e de outros três volumes que compunham sua continuação, escritos no século XVIII.60 Para além das

crônicas,61 Belém atesta também a existência de obras de naturezas diversas,

principalmente textos de caráter religioso (como ofícios para festas de santos e orações), relações sobre a vida e a morte de freiras de virtude conhecida (ou que se queria, com o texto, dar a conhecer), comentários sobre a vida de santos e anotações sobre devoções específicas, como aquela dedicada ao Santíssimo Sacramento e à infância de Cristo, entre outras.62

Obviamente, essas não eram as únicas preocupações temáticas das escritoras portuguesas na Época Moderna. Uma breve busca na Bibliotheca Lusitana de Diogo Barbosa Machado revela uma intensa produção livresca feminina sobre assuntos tão diversos quanto história, arquitetura, aritmética, filosofia, retórica ou matemática. Porém, contabilizadas todas as referências que aparecem na dilatada obra do abade de Sever, continua nítida a predominância de obras com temática religiosa, a maioria delas

60 Sobre a atribuição da autoria da Notícia, bem como de suas continuações no século XVIII, conferir o capítulo 3.

61 Jerónimo de BELÉM. Chronica Serafica da Santa Provincia dos Algarves da Regular Observancia do

nosso serafico padre S. Francisco, em que se trata de sua Origem, progressos, e fundações de seus Conventos. Parte Primeira. Lisboa: por Ignácio Rodrigues, 1750, pp.CCXXVII-CCLXIX. Ao lado das duas

crônicas coletinas, Belém também cita aquelas produzidas por religiosas dos mosteiros das flamengas em Alcântara e da Esperança de Vila Viçosa, além das continuações da Notícia do Convento da Madre de Deus de Lisboa, feitas pela sóror Maria Thereza de São Jozé: Cathalina del SPIRITU SANCTO. Relacion de como se

ha fundado en Alcantara de Portugal junto a Lisboa, el mui devoto Monasterio de N. S. de La Quietacion.

Lisboa: por Pedro Crasbeeck, 1627; A. BAPTISTA. Fundação do mosteiro de N. Senhora da Esperança de

Vila Viçosa. Vila Viçosa, Mss., 1657; M.T. de SÃO JOZÉ, Praticas Espirituaes entre as religiozas na festa e

outavas do Natal, 1723, 1724, 1725.

62 Exemplos pontuais dessa produção conventual seriam as Consideraçoens, e affectos para affervorar as almas em a devoção do Santissimo Sacramento, dispondo-se para o receber em os principaes Domingos, e festas do anno. Tratados breves da Oração para as tres vias, Purgativa, Illuminativa, e Unitiva, e outras advertencias para differentes exercicios de perfeição. Exposição Paraphastica de alguns Psalmos de David em sentido mystico, escrita por sóror Maria Magdalena no mesmo Mosteiro da Madre de Deus, ou uma Oração, com que gratificava a Deos os beneficios, que de sua liberal mão tinha recebido, de sóror Catharina do Salvador, do Mosteiro da Esperança de Vila Viçosa, que saiu impressa por Jorge Cardoso. J. de BELÉM, Chronica Serafica, Parte Primeira, pp. CCXXXVIII e CCLXIV; Jorge CARDOSO. Agiologio Lusitano dos sanctos, e varoens

illustres em virtude do Reino de Portugal, e suas conquistas. Tomo II. Lisboa: Na Oficina de Henrique

40 constituída por orações, orientações para a vida das freiras e/ou de beatas e poesias de cunho devocional. O próprio Barbosa Machado enumera ainda uma quantidade expressiva de professas dos conventos da Província dos Algarves que deixaram trabalhos escritos até meados do XVIII. Uma entre as religiosas citadas é sóror Maria Magdalena, que produziu uma obra intitulada Historia da vida, prerogativas, e louvores do Glorioso S. Ioão Evangelista, publicada em 1628.63 Outra Maria Magdalena, esta de Jesus, de ascendência

nobre e ligada à Corte, entrou no Convento da Madre de Deus de Lisboa em 1642 e deixou uma vasta obra, seguindo a senda das biografias, como Vida de Fr. Christovao da Trindade... confessor da Madre de Deos e Vidas de algumas Religiosas insignes... do mesmo convento. Outros escritos seus, no entanto, ultrapassaram essa inclinação, como Meditações sobre as Antifonas, Comentarios mysticos sobre os Psalmos e Preparação para se receber o Santissimo Sacramento.64 Os textos dessa religiosa indicam que, a par de entabular

discussões de cunho religioso a partir de exemplos edificantes contidos no costume de construir biografias, algumas religiosas comentaram a liturgia católica de maneira mais aberta e direta. Mesmo que seus escritos sobre tais assuntos não tenham vindo à luz através das oficinas tipográficas, a relevância de seu papel, pelo menos em âmbito local, nos é atestada pela redação de pelo menos duas vidas manuscritas a ela dedicadas por outras religiosas professas na mesma casa.65

A associação entre vida claustral feminina e acesso à educação letrada, normalmente concedida apenas aos homens (e só a alguns deles, diga-se de passagem), é recorrente em vários estudos dedicados a compreender o florescimento da literatura conventual moderna. Ao tecer considerações sobre a escrita de María de Ágreda (1602- 1665), por exemplo, Antonio Castillo Gómez afirma que ainda que fosse, a rigor, um

63 D. BARBOSA MACHADO, Bibliotheca Lusitana, Tomo III, p.425; Maria MAGDALENA. Historia da vida,

prerogativas, e louvores do Glorioso S. Ioão Evangelista. Lisboa: por Antonio Alvarez, 1628.

64 D. BARBOSA MACHADO, Bibliotheca Lusitana, Tomo III, p.426.

65 Trata-se das sórores Maria Michaela dos Anjos, que entrou no Convento de Jesus em 1679, e Isabel Auta de São Joze, que fez profissão em 1684. D. BARBOSA MACHADO, Bibliotheca Lusitana, Tomo III, p.428; J. de BELÉM, Chronica Serafica, Parte Primeira, pp.CCLXIV, CCLIX.

41 "espaço regido pelos atos de controle que ordenavam" as vidas das professas — submetidas às constrições estabelecidas por seus votos ou por suas convicções particulares, mas também pelo poder masculino personificado nas figuras dos confessores e diretores espirituais —, o claustro não deixou de representar "um dos principais refúgios da escritura feminina".66 Por certo, é lícito crer que, em alguma medida e sem se deixar levar pelo

raciocínio de que a reclusão claustral representava um universo completamente isolado de interferências exteriores,67 os mosteiros de alguma forma isentavam as mulheres de funções

de casamento e de representações negativas de sua sexualidade, liberando-as para que se dedicassem a uma formação intelectual diferenciada.68 Essa formação, por sinal, não estava

limitada apenas ao letramento e à escritura feminina, mas incluía uma série de atividades que estimulou o aparecimento de musicistas, cantoras, pintoras, escultoras. Atividades que, analisadas em seu conjunto, permitem que, por exemplo, os mosteiros femininos da época moderna sejam encarados como "centros de cultura".69

66 Antonio Castillo GÓMEZ. "La pluma de Dios. María de Ágreda y la escritura autorizada". Via Spiritus, n.6 (1999), pp.103-119, p.103.

67 I. MORUJÃO, "Livros e leituras na clausura feminina de setecentos", p.112.

68 Lígia BELLINI. "'Penas, e glorias, pezar, e prazer': espiritualidade e vida monástica feminina em Portugal no Antigo Regime". In: Lígia BELLINI, Evergton Sales SOUZA, Gabriela dos Reis SAMPAIO (Orgs.). Formas de crer.

Ensaios de história religiosa do mundo luso-afro-brasileiro, séculos XIV-XXI. Salvador: Edufba-Corrupio,

2006, pp.81-105, pp.87-88.

69 Silvia EVANGELISTI. Nuns. A history of convent life 1450-1700. Oxford: Oxford University Press, 2007, pp.67-68, 99-173; Gianna POMATA e Gabriella ZARRI (eds.). I monasteri femminili come centri di cultura

fra Rinascimento e Barocco. Atti del Convegno storico internazionale: Bologna, 8-10 dicembre, 2000. Roma:

Edizioni di Storia e Letteratura, 2005; Gabriella ZARRI e Nieves BARANDA. "Presentazione - Presentación". In: G. ZARRI e N. BARANDA (a cura di). Memoria e comunità femminili. Spagna e Italia, secc.XV-XVII. Firenze University Press - Uned: Firenze, 2011, pp.1-11, pp.1-3; K.J.P. LOWE. Nun's Chronicles and Convent

Culture in Renaissance and Counter-Reformation Italy. Cambridge: Cambridge University Press, 2003,

pp.263-394; Charlotte WOODFORD. Nuns as historians in early modern Germany. Oxford: Clarendon Press, 2002, p.32; Sara CABIBBO. "Perspectives pour une histoire institutionnelle et culturelle des espaces religieux féminins dans l'Italie moderne". In: Silvia MOSTACCIO (ed.). Genre et identités aux Pays-Bas méridionaux.

L'éducation religieuse des femmes après le concile de Trente. Louvain-la-Neuve: Academia Bruylant, 2010,

pp.13-27; L.M. ALGRANTI, Livros de devoção, atos de censura, esp. pp.23-74. A ideia de que os conventos

representavam ambientes de maior liberdade para a mulheres, e não só quando esta se referia à possibilidade de desenvolver atividades artísticas ou literárias, é literalmente exposta por Ana Maria do Amor Divino em suas Memórias Históricas do Real Convento de Jesus de Setûbal, ainda que, no caso, esta autora alinhe esta associação com a lassidão que, então, grassaria na casa: "Tal foi hua, que perguntada cá dentro pelo motivo da sua vinda; respondeu = Se não há achar hum homem capaz = Tal foy outra, que a semelhante pergunta disse

42 A determinação de como se dava essa formação e de quais trajetórias permitiam que a essas mulheres fossem oferecidas as ferramentas necessárias a sua entrada numa área de atuação predominantemente masculina é uma questão incontornável. Mas, num ambiente carente de instituições que cultivassem o ensino para mulheres, como foi o caso português até a segunda metade do século XVIII,70 os caminhos percorridos em busca da

instrução das meninas parecem realmente ter sido os das soluções particulares, fomentadas nos ambientes familiares permeáveis a esta prática, nos limites do autodidatismo ou nas oportunidades oferecidas pelos conventos em que "havia uma atmosfera cultural suficientemente consolidada" para tanto.71 Ou seja, nos dois polos que delimitavam,

espacial e relacionalmente, o universo das mulheres e das escrituras femininas: "a família e o convento".72

Referências a ambientes familiares favoráveis — ou no mínimo tolerantes — à instrução feminina são recorrentes em textos que contam a vida de religiosas portuguesas. A par de um grande número daquelas que, ainda crianças, demonstraram vocação para as coisas espirituais por meio das leituras que faziam de livros devotos — o que indica que = Eu não gostava; mas a Mana N. (era huma freira, que prezente estava) me dizia, que isto cá dentro era melhor do que se cuida lá fora, por que há mais liberdade que lá fora". A.M. do AMOR DIVINO, Memorias

Historicas do Real Convento de Jesus de Setûbal, tomo I (ANTT, MSLiv 846), fol.110 (grifo meu).

70 Os primeiros estabelecimentos com essa finalidade só surgiriam em Portugal com a chegada de ordens religiosas conhecidamente vocacionadas para a educação de meninas (as visitandinas e as ursulinas, nomeadamente), e sua atuação se concentraria sobretudo com as oriundas de estratos sociais mais elevados. Este é o caso do Colégio das Ursulinas de Vila de Pereira (1748), dos das Chagas de Viana do Castelo (1777) e Braga (1784), e do Mosteiro da Visitação, das visitandinas, em Lisboa (1784). Zulmira C. SANTOS. "Para a história da educação feminina em Portugal no século XVIII: a fundação e os programas pedagógicos das visitandinas". In: F. R. da SILVA, M. A. CRUZ, J. M. RIBEIRO, H. OSSWALD (Orgs.). Estudos em homenagem a

Luís António de Oliveira Ramos. Volume 3. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004,

p.985-1001; Arilda Ines Miranda RIBEIRO. Vestígios da educação feminina no século XVIII em Portugal.

Bela Vista: Arte & Ciência, 2002, pp.51-56.

71 Isabel MORUJÃO. Por trás da grade: Poesia conventual feminina em Portugal (Sécs. XVII-XVIII). 2005. 677f. Tese (Doutorado em Letras, na especialidade de Literatura Portuguesa) – Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, pp.64-67; María del MarGRAÑA CID. "Palabra escrita y experiencia femenina en el siglo XVI". In: Antonio Castillo GÓMEZ (comp.). Escribir y leer en el siglo de Cervantes. Barcelona: Gedisa, 1999,

pp.211-240, p.225.

72 Marina CAFFIERO. "Per una storia delle scritture delle donne". In: Marina CAFFIERO e Manola Ida VENZO (a cura di). Scritture di donne. La memoria restituita. Atti del Convegno. Roma, 23-24 marzo 2004. Roma: Viella, 2007, pp.9-27, p.17.

43 tiveram acesso às letras logo nos primeiros anos de vida, ainda que não costume ficar claro como as pequenas aprenderam a ler —, outros casos dão conta de estímulos que iam além da permissividade paterna com o acesso a obras desse tipo. A d. Margarida de Noronha (mais tarde Margarida de São Paulo no Convento da Anunciada de Lisboa), por exemplo, os pais ofereceram mestres, "de quem aprendeu as letras, línguas e artes liberais". Maria da Circuncisão, por sua vez, foi ensinada pelos irmãos, "que tinham mestre de casa".73 Na falta

de recursos para contratar um mentor particular para sua filha, a mãe de Antónia da Trindade, que mais tarde professou no Convento de Nossa Senhora da Consolação de Figueiró, foi além, consentindo que ela trocasse "a saya pela loba, a roca pelo livro" e frequentasse a Universidade de Coimbra travestida de homem.74 Nessa mesma instituição e

também disfarçada em trajes de varão, estudou sóror Auta da Madre de Deus, por sua vez com a conivência de seu pai, que lá ensinava Direito Civil. Esses dois últimos casos, se não são exatamente exemplares dos caminhos normalmente trilhados por mulheres em busca de instrução, ilustram bem, pelos seus desfechos, quais alternativas lhes restavam uma vez terminada a farsa. Antónia da Trindade, segundo Damião de Froes Perym, abandonou os "perigos daquella liberdade" depois de avaliar sua situação com "maduro juizo" e decidir-se por deixar os estudos "nas esperanças de melhor estado".75 Já Auta da Madre de Deus, pelo

que nos conta Jerónimo de Belém, não pôde seguir adiante com o segredo que manteve "occulto por tantos anos". Após a morte do pai e revelada sua condição, foi então cooptada pela rainha d. Leonor, que a admitiu entre suas criadas e com quem tinha particular gosto em rezar o Ofício Divino — "preferindo-a ás mais na estimaçaõ, pela sua grande sciencia, e docilidade de genio". Mais tarde, visitando o Convento da Madre de Deus de Lisboa com a

73 I. MORUJÃO, Por trás da grade, p.64-65.

74 Damião de FROES PERYM. Theatro heroino, abcedario historico, e catalogo das mulheres illustres em

armas, letras, acçoens heroicas, e artes liberais. Tomo I. Lisboa Occidental: na oficina da Musica de

Theotonio Antunes Lima, 1736, p.67.

75 Tanto o caso de Auta da Madre de Deus como o de Antónia da Trindade encontram eco na tradição clássica de Agnodice, que, vestida de homem, frequentou aulas de medicina, de que Damião de Froes Perym também trata. Aliás, o Theatro Heroino também inclui um verbete sobre Auta da Madre de Deus, apontando- a, no entanto, como natural de Lisboa. D. de FROES PERYM, Theatro heroino, pp.48-50; 67-68; 123; Gianna POMATA. "Storia particolare e storia universale: in margine ad alcuni manuali di storia delle donne". Quaderni

44 mesma rainha, e "attrahida esta dos bons exemplos das primeiras cultoras daquelle Paraizo da terra, com beneplacito da Magestade, ficou na clausura, onde, desprezando as falliveis esperanças, com que a lisongeava o mundo, recebeo o habito da primeira Regra de Santa Clara".76

Tanto Perym quanto Belém qualificam a assunção do estado religioso como consequência das virtudes dessas duas mulheres. Mas não é insensato pensar que, em conjunção com a vocação religiosa — e não esqueçamos que as duas estudaram Teologia em Coimbra —, os ambientes conventuais teriam exercido alguma atração, para mulheres instruídas, pelas condições favoráveis que podiam oferecer a suas futuras atividades.

É importante ter em mente, no entanto, que se o claustro de fato permitiu essa maior achega das mulheres ao mundo letrado, não foi sem reproduzir, no processo mesmo da construção dessa atividade, as hierarquizações e distinções que pautavam as posições ocupadas por essas mulheres nas diferentes teias de relações que frequentavam. As clarissas, em especial, estavam submetidas diretamente aos frades da Primeira Ordem de São Francisco,77 e é possível ver a interferência destes em suas escritas por meio de

sugestões para que abordassem certos temas, fizessem modificações localizadas em versões preliminares dos escritos ou até mesmo dessem usos específicos a eles, como podemos perceber na carta de fr. Acúrsio de São Pedro à abadessa do Convento de Jesus de Setúbal. Razões como essas indicam que escritos masculinos e femininos devem ser postos em perspectivas distintas, quando estudados. Alguns textos de mulheres, de fato, não possuíam

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