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A interpretação da regra do art. 5º, LXVII, da

1.4 O ART. 5º, LXVII, DA CONSTITUIÇÃO ENQUANTO LIMITE À

1.4.2 A interpretação da regra do art. 5º, LXVII, da

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hierarquia idêntica à dos valores por ela ponderados, é vinculante e não pode deixar de ser observada como parâmetro para a decisão do caso concreto.

1.4.2 A interpretação da regra do art. 5º, LXVII, da Constituição da República

Diante do acima exposto, forçoso reconhecer que a regra do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição, é fruto de uma ponderação abstrata previamente realizada, diante da antecipação hipotética de um conflito.

Como bem observa Marcelo Lima GUERRA, “é fácil compreender que nessa norma já há a realização pelo próprio Constituinte, de uma concordância prática, seja embora num plano muito abstrato, entre bens constitucionais em conflito.

(...) Com efeito, proibindo a prisão civil por dívida, o Constituinte (...) reconheceu (...), portanto, que a tutela da recomposição patrimonial não deve ser buscada com o sacrifício da liberdade pessoal”96.

Nada obstante, o dispositivo em questão vem sendo interpretado de modo muito díspar na doutrina e jurisprudência, não havendo consenso a respeito de seus limites, sequer no âmbito dos doutrinadores ligados mais proximamente ao direito civil e processual civil.

Sem a pretensão de solucionar uma questão que não é

96 GUERRA, M. L. Prisão civil de depositário infiel e princípio da proporcionalidade. In Revista de Processo nº 105, p. 40-41.

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recente, mas apenas a título exemplificativo, verifica-se na doutrina haver quem entenda que o dispositivo acima veda apenas a prisão civil por dívida pecuniária, mas não toda e qualquer prisão civil, razão pela qual estaria permitida a prisão civil pelo inadimplemento de outras obrigações que não sejam dívida no seu sentido estrito97.

Há ainda quem, como Eduardo TALAMINI98, na esteira das palavras de Ovídio Baptista da SILVA99, sustente que a Constituição proíbe toda e qualquer prisão civil – exceto as hipóteses expressamente excepcionadas - já que, dentre as exceções permitidas, há uma (por inadimplemento de obrigação alimentar), que se configuraria em prisão por dívida e outra (infidelidade do depositário) que não tem essa característica100. Dessa forma, não faria qualquer sentido a Constituição excepcionar a possibilidade de prisão civil por infidelidade do depositário se só estivesse proibida a prisão

97 PONTES DE MIRANDA, F. C. Comentários à constituição de 1967. Tomo V. 2.

ed. São Paulo : RT, 1971, p. 266.

98 TALAMINI, E. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. 2. ed.

São Paulo : RT, 2003, p. 302.

99 Segundo Ovídio Baptista da SILVA “é verdade que a Constituição se refere à ‘prisão por dívidas´, mas ao mencionar as exceções que abre ao princípio, alude a um caso de dívida monetária, ou comumente monetária, que é a obrigação alimentar; e a outro que absolutamente não se confunde de essa espécie de obrigação, que é a prisão do depositário infiel. Se a prisão por dívidas que não fossem monetárias, estivesse sempre autorizada, não faria sentido a exceção constante do texto constitucional para o caso de depositário infiel” (SILVA, O. A. B. Comentários ao código de processo civil. v. 11. 2. ed. Porto Alegre : LEJUR, 1986, p. 663).

100 SOUZA, G. A. Prisão civil por dívida na constituição de 1988. In Revista Jurídica nº 195, p. 42.

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por dívida101.

Defendendo a possibilidade de aplicação da prisão civil em caso de descumprimento de decisões judiciais, Sérgio Cruz ARENHART102, mesmo levando em consideração as razões acima expostas, desenvolve instigante raciocínio ao propugnar que a expressão “dívidas”, causa impeditiva da decretação da prisão civil (“não haverá prisão civil por dívidas”) na verdade significa “vínculo obrigacional”, o que abarcaria a infidelidade do depositário. Assim, careceria de razão o raciocínio segundo o qual não haveria sentido em excepcionar a possibilidade de prisão do depositário infiel se a Constituição não tivesse proibido toda e qualquer modalidade de prisão civil.

Sustenta, então, que se assim não se considerar a questão, restaria esvaziada a expressão “por dívida” – sendo certo que a Constituição não traria palavras soltas ou vãs -, já que bastaria ao constituinte ter descrito o dispositivo proibindo a prisão civil, salvo nas hipóteses excepcionais expressas.

Trazendo a questão novamente para a seara do direito penal, há diversos autores que procuram extrair um sentido do art. 5º, LXVII, da Constituição por meio de raciocínios similares àqueles acima expostos, ou seja, mediante raciocínios lógicos formulados sobre a literalidade do

101 LACERDA, G & OLIVEIRA, C. A. A. Comentários ao código de processo civil. v. 3. Tomo II. 2. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1991, p. 360.

102 ARENHART, S. C. A tutela inibitória da vida privada. São Paulo : RT, 2000, p. 206-213.

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dispositivo.

José CRETELLA JÚNIOR, por exemplo, desenvolve raciocínio por meio do qual conclui, sem grifos no original, que “tanto na hipótese de dívida, em caso de prestação alimentícia, como na hipótese de depositário infiel, (...) a decretação da prisão civil é meio coativo, que incide sobre os recalcitrantes. Dívida, entretanto, estrito senso, não é ilícito civil, nem crime, ficando, assim, fora da incidência da regra jurídica constitucional”103.

Raciocínio semelhante é desenvolvido por uma parcela substancial da doutrina, em defesa da constitucionalidade dos tipos penais previstos nos arts. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 e 168-A, do Código Penal. Sustenta-se, então, que, em razão de o dispositivo em questão proibir a prisão civil por dívida, a prisão penal por dívida não estaria proibida, já que são evidentes as diferenças entre prisão penal e prisão civil.

Assim o faz, por exemplo, Pedro Roberto DECOMAIN, para quem “poderia surgir discussão quanto à constitucionalidade desse inciso, diante da proibição da prisão civil por dívidas (...). Ocorre que aqui não se trata de prisão civil por dívida, mas sim da criminalização do não pagamento de uma”104.

103 CRETELLA JÚNIOR, J. Comentários à constituição. v. 1. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1989, p. 561.

104 DECOMAIN, P. R. Crimes contra a ordem tributária. 2. ed. Florianópolis : Obra Jurídica, 1995, p. 94. No mesmo sentido: ANDRADE FILHO, E. O. Direito penal tributário. 3. ed., São Paulo : Atlas, 2001, p. 139; EISELE, A. Apropriação indébita e ilícito penal tributário. São Paulo : Dialética, 2001, p. 148; SILVA, J. G. Elementos de direito penal tributário. São Paulo : Saraiva, 1989, p. 34; e, ainda, embora com argumentos adicionais: BALTAZAR JÚNIOR, J. P. O crime de omissão no recolhimento de contribuições sociais arrecadadas. Porto Alegre : Livraria do

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Os raciocínios acima narrados, que buscam delinear o alcance do disposto no art. 5º, LXVII, da Constituição são, em certa medida, criticáveis, independentemente do resultado a que chegam.

Não se está, nesse primeiro momento, a discordar dos resultados aos quais conduziram os raciocínios acima encetados. Por exemplo, não se discorda, em princípio, do resultado a que chega Pedro Roberto DECOMAIN, para quem não é inconstitucional o art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90105. Ou, ainda, em linha de princípio, não se discorda da conclusão a que chega Sérgio Cruz ARENHART, para quem não seria contrária à regra constitucional acima expressa, a prisão civil de alguém que descumpre uma ordem judicial.

Nada obstante, as ressalvas ao caminho percorrido pelos eminentes doutrinadores estão no fato de terem trilhado, precipuamente, para chegarem às suas conclusões, aquele da interpretação enunciativa, valendo-se do argumento “a contrario sensu”.

Com efeito, como observa José de OLIVEIRA ASCENSÃO, no processo de determinação das normas aplicáveis, quem está incumbido dessa tarefa normalmente se vale da interpretação enunciativa, a qual, por sua vez “pressupõe a prévia determinação de uma regra. Muitas vezes, a partir dessa regra

Advogado, 2000, p. 184. Similarmente, Eduardo TALAMINI não vê, no dispositivo em questão, óbice à prisão penal pelo crime de desobediência à ordem judicial, embora não admita a prisão civil para constranger o recalcitrante ao cumprimento.

(TALAMINI, E. Op. cit., p. 304).

105 Mais adiante essa questão específica será abordada detidamente.

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consegue-se chegar até outras que nela estão implícitas, e que suprem assim a falta de expressa previsão das fontes. O que caracteriza a interpretação enunciativa é limitar-se a utilizar processos lógicos para esse fim”106.

Dentre os processos lógicos utilizáveis para extrair de uma norma explícita outra implícita está o argumento jurídico, ou seja, “um raciocínio mediante o qual se intenta provar uma tese ou refutá-la, persuadindo ou convencendo alguém da sua verdade ou validade”107.

Assim, pegue-se o raciocínio acima narrado, realizado por Pedro Roberto DECOMAIN. Sustenta que a prisão penal por dívidas é permitida porque a Constituição proíbe a prisão civil. Seu raciocínio, então, parte da premissa segundo a qual prisão civil e prisão penal são modalidades distintas de prisão.

Pode-se decompor seu raciocínio da seguinte forma: (i) prisão civil é diferente de prisão penal; (ii) a Constituição proíbe prisão civil por dívidas; (iii) prisão penal não é prisão civil; logo (iv) a prisão penal por dívidas não está proibida.

Ou seja, a regra segundo a qual a prisão penal é permitida é determinada com a utilização do argumento “a contrario”, aplicado sobre a regra “a Constituição proíbe

106 ASCENSÃO, J. O. O direito - introdução e teoria geral : uma perspectiva luso-brasileira. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1978, p. 377.

107 FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão, dominação. São Paulo : Atlas, 1990, p. 306.

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prisão civil”.

O mesmo se dá com o raciocínio desenvolvido por Sérgio Cruz ARENHART, o qual poderia ser decomposto da seguinte forma: (i) a Constituição proíbe prisão por dívidas; (ii) prisão por dívida é diferente de prisão por descumprimento de ordem judicial; (iii) prisão por descumprimento de ordem judicial não é prisão por dívida, logo (iv) a prisão por descumprimento de ordem judicial está permitida.

Da mesma forma, a regra segundo a qual a prisão civil por descumprimento de ordem judicial é permitida vem determinada pela utilização do argumento “a contrario”, aplicado sobre a regra “a Constituição proíbe prisão civil por dívida”.

Ainda, Eduardo TALAMINI, com base em Ovídio Batista da SILVA, defende a proibição da prisão civil em qualquer caso que não se enquadre nas exceções expressamente previstas, em raciocínio que pode assim ser decomposto: (i) a Constituição proíbe prisão civil por dívida; (ii) a Constituição permite a prisão civil do depositário, em caráter excepcional; (iii) a prisão do depositário não é prisão por dívida, logo (iv) a Constituição proíbe toda e qualquer prisão civil que não esteja expressamente autorizada e não apenas a prisão civil por dívida.

Também aqui, a regra segundo a qual a Constituição proíbe toda e qualquer prisão civil que não esteja expressamente autorizada advém da aplicação do argumento “a contrario” sob a regra “a Constituição permite, em caráter excepcional, a prisão civil do depositário”.

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Ressaltando uma vez mais não se ter por intento no presente trabalho solucionar as questões com as quais se debate o direito processual civil no manejo da regra constitucional em análise108, não se pode perder de mente que a utilização da interpretação enunciativa, especialmente sob a modalidade do argumento “a contrario sensu”, não pode ser utilizada sem mais cuidados.

Com efeito, como adverte José de Oliveira ASCENSÃO, o uso do argumento “a contrario” tem como pressuposto a demonstração do caráter excepcional do preceito sobre o qual o raciocínio será desenvolvido109 e vem expresso, nas palavras do autor, da seguinte forma: “se, para determinado caso, se estabelece uma disposição excepcional, dele pode-se inferir a regra que funciona para todos os outros casos”110 e, mais adiante, adverte que “o argumento ´a contrario´ só funciona quando deparamos uma regra excepcional” sob pena de se

“proceder de maneira anticientífica”111.

Dentre os processos lógicos acima considerados, apenas

108 A questão é aqui ventilada tão-somente como forma de demonstrar as dificuldades que estão envolvidas na análise do dispositivo constitucional em comento, em torno do qual as controvérsias vão muito além do direito penal tributário.

109 ASCENSÃO, J. O. Op. cit., p. 379

110 Idem, p. 380.

111 Idem, p. 380-381. Karl LARENZ, nesse sentido, explica que “se a regra legal não se entender no sentido de que a consequência jurídica só deve sobrevir nos casos por aquela assinalados, então o argumento pela inversa é já logicamente defeituoso” (LARENZ, K. Metodologia da ciência do direito. Tradução : José Lamego.

2. ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 472). No mesmo sentido:

FERRAZ JÚNIOR, T. S. Op. cit., p. 310.

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os realizados por Eduardo TALAMINI e por Ovídio Batista da SILVA é que determinam a regra “toda prisão civil é proibida, exceto as expressamente permitidas” pelo uso do argumento “a contrario sensu”, partindo de uma regra reconhecidamente excepcional, que é a permissão de prisão do depositário infiel.

Os demais não são construídos, ao menos declaradamente, sob o pressuposto de que a regra da qual extraem suas conclusões com o argumento “a contrario” é excepcional.

Assim, a validade da afirmação segundo a qual a Constituição, porque só proíbe prisão civil por dívida, não proíbe, igualmente, a prisão penal por dívida, teria de ser confirmada com o estabelecimento de que a proibição da prisão civil por dívidas é feita em caráter excepcional.

Da mesma forma, só será válida a conclusão segundo a qual a Constituição não proíbe prisão civil que não seja por dívida se for possível afirmar que a regra proibitiva da prisão civil por dívidas é, de alguma forma, excepcional.

Entretanto, para que se possa afirmar a excepcionalidade da regra que proíbe a prisão civil por dívida, seria necessário afirmar a generalidade da possibilidade da prisão, o que contrasta frontalmente a aceitação da liberdade, e de sua proteção, enquanto direito fundamental.

Dessa forma, do ponto de vista lógico, parece claro que a Constituição, ao proibir a prisão civil por dívida, não está excepcionando uma regra geral permissiva do uso da prisão.

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Antes, está especificando a liberdade enquanto um direito fundamental e impondo limites a sua limitabilidade.

Quanto ao argumento segundo o qual a excepcional permissão à prisão do depositário infiel confirmaria uma regra geral proibitiva de qualquer prisão civil, embora o argumento

“a contrario” não seja criticável pelo seu emprego sobre uma regra não-excepcional, ainda assim, não se pode concordar com o caminho trilhado do uso da interpretação enunciativa.

Primeiro, porque não deixa de haver um salto lógico na conclusão segundo a qual “toda prisão civil está proibida”, a partir da excepcional permissão da prisão civil do depositário infiel.

Em outras palavras, a constatação, segundo a qual a prisão do depositário infiel – que não é prisão civil por dívida -, é permitida pela Constituição em caráter de excepcionalidade, com o uso do argumento “a contrário”, só é suficiente para concluir que a proibição da prisão civil não se circunscreve apenas às hipóteses de prisão por dívida e não para concluir que todas as hipóteses de prisão civil estejam proibidas.

Por outro lado, não se pode perder de mente que, dentre os processos lógicos que caracterizam a interpretação enunciativa - utilizáveis para a determinação de uma regra que está implícita a partir de outra explícita -, está ainda o argumento “a minori ad maius”.

José de Oliveira ASCENSÃO, por meio de exemplo, procura explicar esse processo lógico, considerando “que a lei que

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proíbe o menos proíbe o mais (argumento a minori ad maius). Se uma lei sobre actividade cambiária proíbe essa actividade aos estrangeiros, podemos inferir que também o comércio bancário lhes é vedado: esta proibição também está logicamente contida na primeira. O intérprete limita-se aqui a desvelar uma nova regra que necessariamente deriva da anterior”112.

Trata-se de um argumento construído com base em juízos de valor e na construção de hierarquias113, o qual pode ser oposto a duas das conclusões acima mencionadas.

Dessa forma, partindo-se do pressuposto segundo o qual a prisão penal é uma intervenção mais grave no direito fundamental à liberdade do que a prisão civil, se a Constituição proíbe a prisão civil, proíbe, com muito mais razão a prisão penal114.

Da mesma forma, sob essa ótica, não parece fazer sentido sustentar que a Constituição proíbe toda e qualquer prisão civil, inclusive em razão do descumprimento de ordem judicial, e sustentar que esse descumprimento pode ensejar a prisão penal em razão da prática do crime de desobediência.

Ora, assentada a premissa de que a Constituição proíbe a prisão civil como meio de tutela à efetividade das decisões jurisdicionais, que é menos grave do que a penal, não haveria

112 ASCENSÃO, J. O. Op. cit., p. 377-378.

113 FERRAZ JÚNIOR, T. S. Op. cit., p. 312.

114 Nesse sentido e com argumentos adicionais: CLÈVE, C. M. Contribuições previdenciárias. não recolhimento. art. 95, d, da Lei 8.212/91.

inconstitucionalidade. In Revista dos Tribunais nº 736, p. 514.

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razão para permitir a prisão penal com o mesmo escopo e pelos mesmos motivos.

Seja como for, o mais relevante em toda essa discussão não é desvelar qual o argumento lógico é mais consentâneo com a pretendida interpretação enunciativa realizada a partir do dispositivo do art. 5º, LXVII, da Constituição, mas sim questionar até que ponto basta à interpretação de dispositivos que se traduzam em normas de direito fundamental, o uso dos métodos tradicionais de hermenêutica.

Por certo, não se pretende desprezar por completo a valia dos métodos tradicionais de interpretação também nesse tema. Ocorre que, como acima acentuado, a regra do art. 5º, LXVII, da Constituição é fruto de uma ponderação abstrata realizada, diante da antecipação hipotética de um conflito que envolve direitos fundamentais.

Nessa seara, entretanto, é reconhecida a insuficiência dos métodos tradicionais de hermenêutica, uma vez que as

“normas constitucionais relativas aos direitos fundamentais não contêm uma regulamentação completa e perfeita. Não têm a mesma certeza de conteúdo, a mesma clareza de sentido, a mesma determinabilidade conceitual”115.

Diferentemente do que ocorre em relação aos dispositivos que se constituem na forma típica de manifestação do direito privado, as normas de direito fundamental, normalmente passíveis de serem classificadas como normas princípio, não trazem a descrição mais ou menos pormenorizada

115 ANDRADE, J. C. Op. cit., p. 119.

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de um fato ou de um conjunto hipotético de fatos, com as conseqüências a eles aplicáveis mais ou menos predeterminadas.

Em relação às normas de direito fundamental, dado seu caráter de princípio, há uma referência direta a valores116, razão pela qual a abstração e generalidade que são características de todas as normas, nos princípios, aparecem de modo muito mais marcante e evidente.

Há, nessas normas, “um colorido axiológico mais acentuado do que as regras, desvelando mais nitidamente os valores jurídicos e políticos que condensam”117, com a conseqüente utilização de conceitos indeterminados, que demandam do aplicador mais do que uma atividade de interpretação, uma atividade de ponderação dos valores nela contidos.

Assim, “naquelas normas em que o pensamento constitucional pode ser e é completamente expresso, a interpretação faz-se basicamente com o recurso aos métodos tradicionais (...). Onde a Constituição utiliza conceitos gerais e indeterminados, deve admitir-se o recurso a elementos extra-textuais, procurados e avaliados no momento da aplicação”118.

É certo que o dispositivo do art. 5º, LXVII, da

116 GUERRA FILHO, W. S. Processo constitucional e direitos fundamentais. 2.

ed., São Paulo : Celso Bastos, 2001, p. 45.

117 SARMENTO, D. A ponderação de interesses na constituição federal. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2003, p. 42.

118 ANDRADE, J. C. Op. cit., p. 139.

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Constituição, como já referido, se traduz numa regra que resulta de uma ponderação prévia de valores constitucionais feita na própria Constituição.

Isso, entretanto, se por um lado adianta o trabalho do aplicador, por outro lado, não pode ser visto como se todo o trabalho possível de ponderação daqueles valores considerados já estivesse pronto e acabado.

Por exemplo, não parece ser possível vislumbrar no art.

5º, LXVII, da Constituição, uma ponderação que envolva todos os valores constitucionais que eventualmente venham a entrar em conflito com o direito à liberdade, ali protegido pela via da proibição da prisão civil.

Nessa linha, parece não estar ali contida uma ponderação entre a proteção à liberdade, pela via da proibição à prisão civil, e o valor subjacente à proteção da obrigatória observância das decisões judiciais119, o que possibilitaria a realização de uma ponderação legislativa ou mesmo concreta conducente à limitabilidade do direito à liberdade120 em casos

119 Não se olvide, nesse sentido, que o art. 34, VI, da Constituição inclui, dentre as hipóteses autorizadoras da intervenção federal nos Estados membros, o descumprimento de decisão judicial, o que é medida extrema em face da forma federativa de Estado. Isso denota a importância dada pela Constituição ao valor subjacente à exigência do cumprimento das decisões judiciais. Para se ter uma idéia da significação das hipóteses do art. 34, da CR, não se perca de mente que a forma federativa de Estado foi, ela também, erigida à cláusula pétrea pelo o art.

60, § 4º, I, da Constituição.

120 Eis a razão pela qual não se discordou, em linha de princípio, das conclusões de Sérgio Cruz ARENHART quanto à possibilidade, em tese, da aplicação da prisão civil enquanto forma de garantir a eficácia de provimentos judiciais. Isso não significa, entretanto, que se apóie essa possibilidade para todo e qualquer descumprimento de ordem judicial. Tal não seria possível, por exemplo, quando a

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excepcionais de descumprimento de ordem judicial, viabilizando-se, assim, inclusive o uso da prisão civil como forma de garantir eficácia às ordens judiciais.

Afinal, “inúmeras regras constitucionais representam a concretização normativa de princípios, dos quais são materialmente dependentes. É possível que o princípio inspirador de determinada regra constitucional entre em tensão, num caso concreto, com outro princípio constitucional”121.

Seja como for, mesmo sendo a regra do art. 5º, LXVII, da Constituição o resultado de uma ponderação de valores

Seja como for, mesmo sendo a regra do art. 5º, LXVII, da Constituição o resultado de uma ponderação de valores