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A interpretação junguiana da religião

No documento MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 34-37)

Capítulo 1: A Psicologia da Religião: um breve panorama

1.4 A interpretação junguiana da religião

Inicio apontando o ano de 1912 como aquele em que Jung publicou Transformações e

Símbolos da Libido, obra que marcou o rompimento com Freud, ao que este responde com Totem e Tabu (1913). Esse rompimento precoce assinala a existência de um conjunto de

diferenças marcantes pelas quais eles enxergavam, sentiam, experimentavam e tratavam o mundo, o outro e a si próprios. Cito duas importantes diferenças que levarão a grandes desdobramentos no âmbito da análise da temática religiosa.

A primeira diz respeito ao estatuto da razão e da imaginação para esses pensadores. Freud privilegiou a primeira, fazendo dela uma marca epistemológica inegável em sua sucessão, e esse traço será magistralmente ampliado pelos desenvolvimentos de Jaques Lacan ao afirmar que “o inconsciente se estrutura como linguagem” e, mais ainda, ao estabelecer uma rigorosa álgebra e uma geometria própria para ilustrar suas concepções sobre o sujeito dividido.

Já Jung privilegiou a imagem e os dinamismos de sua estruturação simbólica: a psique é imagem (e vice-versa). Essa é sua proposição angular. Descobrir o valor heurístico das imagens surgidas nas narrativas pessoais, coletivas ou culturais foi seu grande desafio. Daí o imprescindível recurso ao estudo dos mitos e sua linguagem, à alquimia, ao estudo comparado das religiões e, na clínica, a persistente indagação criativa frente à produção                                                                                                                

delirante dos esquizofrênicos do Hospital de Burghölzli. Esse olhar ampliado como um cone invertido e aberto para além das descrições freudianas do inconsciente pessoal, levou Jung a propor a noção de inconsciente coletivo como o “fundo sem fundo” onde repousa a alma humana, um grande manancial de possibilidades (os arquétipos) no qual toda experiência psíquica estaria ancorada. Esta seria a segunda importante diferença.

A articulação desses conceitos básicos conduz diretamente ao que Jung definia como religião, em Psicologia e Religião (1937):

Falando de religião, devo deixar claro desde o início que o que eu quero dizer com o termo Religião, como indica o vocábulo latino religio, é a observação cuidadosa e escrupulosa daquilo que Rudolf Otto justamente definiu como o numinosum, um agente dinâmico ou efeito não causado pela vontade ou ato arbitrário.17

Em outra passagem ele indica que a religião designa uma “atitude” peculiar da mente humana que foi transformada pela experiência do numinoso, o qual se apresenta sob a forma de imagens e símbolos arquetípicos. Para ele, a religião é de fato uma “atitude instintiva”, uma função básica. A esse encontro profundo com o inconsciente Jung denominou “processo de individuação”, o qual poderia ser designado como uma forma secularizada de libertação interior. Isso levou Filoramo a concluir que:

A interpretação junguiana da religião desembocava, assim, na fundação de um movimento capaz de testemunhar, embora em chave psicológica, o sentido profundo dos valores contidos no patrimônio religioso da humanidade, revisto à luz da particular experiência que Jung havia vivido em seu confronto com o inconsciente.18

Essas rápidas observações podem dar uma noção das importantes diferenças teóricas entre Freud e Jung e sugerir que as consequências dessas posições marcaram profundamente os diferentes campos de atuação da psicologia em geral e, naturalmente, a psicologia da religião em seus desenvolvimentos futuros.

Podemos observar que o ateísmo de Freud ganhou terreno e aceitação no meio acadêmico e científico. O discurso psicanalítico, em favor do entendimento de que a religião e as experiências religiosas poderiam ser explicadas por sua teoria, tiveram aceitação rápida ao longo ao longo do século XX, a despeito do fato de ser uma teoria que fala francamente de modo reducionista acerca das questões religiosas, tanto no plano individual quanto no plano                                                                                                                

17

JUNG, C.G., Psychology and Religion, § 6.

coletivo. A meu ver isso se deu porque esse reducionismo seria amplamente compensado pela descoberta bastante consistente das “motivações inconscientes”. Daí a popularização do bordão “Freud explica!”. Se não há alguma outra explicação para determinado fenômeno, pode-se ainda recorrer às tais “motivações inconscientes” da teorização freudiana.

Num mundo em desencanto e tão secularizado como o Ocidente judaico-cristão, onde as questões existenciais defendidas pela religião perderam completamente seu prestígio e espaço para as questões propostas pelo existencialismo filosófico, nesse ambiente as ideias de Freud também ganharam espaço rapidamente. O potencial da teorização psicanalítica para descrever em detalhes um intrincado mecanismo de funcionamento da psique humana e suas complexas possibilidades de desenvolvimento, abriu grandes horizontes de pesquisa e aplicação em muitas outras áreas como a literatura, as artes plásticas, o cinema, a moda, a propaganda, a análise institucional, os movimentos sociais, etc. Essa onda chega ao Brasil ainda antes da morte de Freud, e chega em SP juntamente com o movimento modernista, através dos nomes de Franco da Rocha e Durval Marcondes. A Sociedade Brasileira de Psicanálise foi fundada oficialmente em 1927.

Por outro lado, Jung vai, de certa maneira, na contramão desse momento histórico, sobretudo após a separação com Freud, quando retoma a temática religiosa como um dos elementos centrais em suas investigações, já em 1912 com Símbolos de Transformação, como procuraremos demonstrar no terceiro capítulo. Ao contrário de Freud, Jung é tido como um homem religioso, pensa o homem como homo religiosus e escreve pensando no homem

moderno que, como ele, perdeu a fé. Diz ele: “não me dirijo ao felizes possuidores da fé, mas

para aqueles muitos para os quais a luz se apagou, o mistério se desvaneceu, e Deus está morto.”19.

O projeto junguiano não encontrou o mesmo crescimento que a psicanálise e foi por muito tempo visto com preconceitos consideráveis pelo mundo científico-acadêmico. Jung fez um esforço grande para afastar-se da metafísica, não querendo ser visto como filósofo nem como religioso ou profeta, e buscou constantemente afirmar-se como um empirista, como um homem de ciência. A despeito disso, foi apontado como gnóstico, místico, herege ou mesmo agnóstico. No final dos anos 60 e ao longo dos anos 70, suas teorias acerca do inconsciente coletivo, arquétipo, a interpretação aberta dos sonhos, sua maneira de valorizar os símbolos por sua qualidade prospectiva, teleológica e menos sintomática, ganharam a simpatia do movimento hippie e do movimento new age. Também ganharam a simpatia de grupos que                                                                                                                

buscavam uma nova espiritualidade fora das vias confessionais mais tradicionais e que naturalmente não combinavam com a visão psicanalítica, percebida como mais dura e patriarcal. Mas essa popularização de Jung não se refletiu na academia e o ensino de suas teorias nas universidades teve, e tem ainda, um espaço muito reduzido se comparado com o ensino da psicanálise. No Brasil essa situação não é diferente e apenas em 1978 foi fundada em São Paulo a Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.

No documento MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 34-37)

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