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A interrupção: diante de um dilema de Fausto

4. QUARTO ATO: SOMOS CASULOS EM BUSCA DA METAMORFOSE

4.3 A interrupção: diante de um dilema de Fausto

“O que foi, torna a ser. O que é, perde existência.

O palpável é nada. O nada assume essência.”

Fausto – Goethe

Interromper: Fazer parar, ou deixar de fazer, por algum tempo. Fazer cessar. Cortar o discurso. Estorva. Cessar o que vinha fazendo.72

Depois de tanta correria com apresentações – dentro e fora da escola – hoje, finalmente, conseguimos reunir o grupo todo novamente. Percebemos que era o momento de pararmos e refletirmos. Tivemos uma longa conversa; de broncas a elogios.

Os jovens se mantiveram atentos durante todo o tempo; aos novos explicamos a filosofia do grupo. Deixamos claro que não estamos ali em busca de atores, atrizes, bailarinos e bailarinas. Nosso objetivo é formar cidadãos; seres humanos que possam contribuir com a melhoria da sociedade com a qual convivem.

Considerei essa conversa como um debate; o Professor Charlles e eu colocamos nossas dúvidas, anseios e receios e os jovens puderam expor suas opiniões a respeito da discussão. Tentamos refletir acerca das apresentações, pois muita exposição está fazendo mal a alguns alunos; primeiro porque esquecem a unidade do grupo; depois porque alguns pais não estão apoiando as saídas da turma para as exibições; além disso, há também a parceria com a Casa da Cultura de Bertioga que nos tem causado pequenas desavenças já que as pessoas não estão preparadas para entender a filosofia proposta, estão ali apenas para selecionar atores/atrizes e bailarinos/bailarinas. Esse imprevisto todo me faz pensar em algumas passagens do livro A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, em

71 GOETHE. Fausto. São Paulo: Livraria Martins Editora S.A.: 1970.

72FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar: O minidicionário da língua portuguesa. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.398, 2000.

que ele nos mostra que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.”.73 O espetáculo acabou se tornando mais importante que a essência

Sabemos que a unidade é muito importante; nenhuma estrela brilha sozinha no céu. Para tentarmos esclarecer a situação com os pais e com os responsáveis pela Casa da Cultura de Bertioga marcamos uma reunião durante a semana; com diálogo tudo se resolve.

Alguns problemas têm tornado o projeto um pouco tumultuado. No mês de maio foi proposta à escola uma parceria com a Casa da Cultura de Bertioga acreditando-se que seria uma oportunidade benéfica. Infelizmente, os responsáveis por esse elo não respeitaram o andamento das atividades e ignoraram todo o aprendizado anterior do grupo.

Começamos a perceber que em nossos encontros, aos sábados, os alunos apareciam apáticos, desanimados, cansados e sem a mínima motivação.

Deparamo-nos com uma grande dúvida: será que o projeto estava falhando em algo ou os ensaios extras, durante a semana, promovidos pela Casa da Cultura estavam sobrecarregando o grupo? Como fazer para diagnosticar de onde vinha o problema?

O professor Charlles e eu resolvemos conversar para tentarmos encontrar uma solução e as respostas para as nossas indagações. Primeiro, como já foi colocado anteriormente, fizemos uma reunião com o grupo sobre o que estariam sentindo com relação às atividades realizadas aos sábados e às apresentações organizadas pela Casa da Cultura. A discussão realmente nos surpreendeu, pois os jovens se encontravam extremamente ansiosos; alguns se queixavam de demasiado cansaço; outros que preferiam as apresentações às atividades do grupo, porque estavam ali apenas para as exibições.

73DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, p.13, 1997.

Quero frisar, novamente, que o objetivo do projeto não é a exposição e sim o autoconhecimento; os alunos não são forçados a concordarem com as propostas e aqueles que frequentam os trabalhos aos sábados participam para crescerem como cidadãos, atuando de uma forma mais consciente, não no palco, mas na vida, na sociedade como um todo. Isto me faz pensar na epígrafe de Debord ao início da Sociedade do Espetáculo que gostaria de citar aqui:

E sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... Ele considera que a ilusão é sagrada, a verdade é profana. E mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado. (FEUERBACH In: DEBORD, 1997, P.13).

Outro fator problema foi como os pais dos alunos passaram a receber toda essa sobrecarga de atividade de seus filhos. Muitos jovens foram proibidos de participar das atividades devido à superexposição. Eles reclamaram que as notas dos filhos estavam baixas e o comportamento deles modificado.

Para esclarecer todas as dúvidas dos pais marcamos uma reunião com eles a fim de ouvi-los; as queixas foram inúmeras: baixa no rendimento escolar; indisciplina tanto em casa como na escola. Ao dialogarmos com pais e alunos conseguimos detectar que o problema não estava no projeto e sim na superexposição a que o grupo se submetera no último mês. Então, o que fazer? Como proceder? Impor aos alunos uma escolha?

Essa imposição fugiria totalmente da proposta inicial do projeto. A solução que encontramos juntos, diante de tudo isso, foi confiar naquilo que os jovens aprenderam durante todo esse tempo da experiência vivida nos encontros;

resolvemos interromper as atividades por algum tempo, para preservar a saúde física e mental dos alunos, já que a Casa da Cultura ainda tinha com eles o projeto para as Festas Juninas, e deixar que as crianças e adolescentes sentissem, refletissem e tivessem condições de concluir o que o grupo significava na vida deles.

Como já foi dito no início estamos trabalhando com seres humanos, que apesar de fazerem parte da mesma comunidade, possuem vivências distintas;

interromper o projeto é um risco que estamos correndo de que ele não sobreviva, mas isso é necessário nesse momento para que sintamos, também, até onde essa experiência está sendo válida para os alunos e para mim, primeiro, como educadora e depois, como pesquisadora. Estamos diante de um dilema, posso até dizer que nosso dilema se equipara ao da personagem Fausto, do clássico de Goethe, em que o protagonista se depara com o ébrio da glória e da fama e se vê frente a dois caminhos: o do bem e o do mal. Apenas esperamos que o final seja para nós mais feliz do que foi para Fausto, pois ele se perdeu se deixando levar pela tentação.

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