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A história do saber médico científico dividido em especialidades foi construída predominantemente sobre os pilares da lógica empírico-positivista. Segundo Jerusalinsky (2006), as disciplinas oriundas dos estudos neurofuncionais como a fisioterapia e a fonoaudiologia bem como as advindas dos estudos neuropsicológicos como a psicologia das habilidades e do comportamento em seu sentido maturativo, responderam em menor ou maior grau ao princípio empírico-positivista. Isso significou entre outras coisas, conceber sujeito e objeto de maneira separada sendo a clínica também vista nesse molde que “isolava” o fenômeno do sujeito resultando em operações clínicas orientadas pelo espírito pragmático. Não se pode negar que se obtém até os dias de hoje alguns resultados práticos desse formato clínico focado no tratamento das enfermidades – entendidas enquanto partes anatômicas do corpo – entretanto, também é correto afirmar que os efeitos subjetivos dessa abordagem clínica mostravam-se completamente incertos.

Dentro dessa lógica, segundo Jerusalinsky (2006), nos anos 60 e 70 não era raro encontrar crianças recebendo simultaneamente vários tipos de tratamentos de diferentes áreas com diferentes profissionais. Na lógica onde “cada um faz a sua parte”, a criança era vista por partes a fim de melhor tratar cada aspecto. Essa abordagem multiprofissional fragmentada deixava consequências simbólicas para a criança que se via perdida em meio a tantos sistemas de significações. Além disso, as abordagens múltiplas e separadas contribuíam para desautorizar o saber dos pais a respeito do próprio filho, uma vez que pouco ou nada participavam do tratamento. Além disso, a tecnificação da língua de referência para a criança contribuía para o sentimento de exclusão parental.

Com uma proposta de atenção integral ao desenvolvimento infantil, visto de uma maneira a aliar organismo e psiquismo, a intervenção precoce junto a bebês vem propondo pensar a clínica a partir de diferentes áreas da saúde, num diálogo entre as disciplinas, entretanto, com o mínimo de rotatividade de profissionais de referência para o bebê e seus cuidadores. Cabe destacar que essa discussão sobre intervenção precoce é bastante atual no Brasil, uma vez que a construção histórica da intervenção no desenvolvimento infantil se constituiu enquanto uma prática compensatória e higienista, datada nos anos 60. Trazida para os dias atuais, a intervenção precoce teria como proposta minimizar fatores de risco que possam acarretar em déficits ou problemas de desenvolvimento, objetivando que a criança possa desenvolver todo o seu potencial e constituir-se enquanto sujeito psíquico. ( CUNHA, BENEVIDES, 2012)

Segundo Peruzzolo (2016), intervenção precoce seria um atendimento clínico especializado no desenvolvimento infantil que aconteceria nos primeiros três a quatro anos de vida do bebê. Esse atendimento englobaria uma compreensão dos processos de amadurecimento neurológico, processo de constituição psíquica, cognitiva e linguística além das construções motoras e sensoriais. Nesse sentido, Franco (2015) enfatiza que a janela de tempo para a intervenção difere conforme a legislação, sendo que em alguns lugares considera-se intervenção precoce até os 6 anos, outros até os 5 e no Brasil até os 3 anos de idade lembrando que o limite de intervenção está ligado à plasticidade cerebral, na lógica do “quanto antes, melhor”. Dentro dessa proposta, o terapeuta atuante na clínica de intervenção precoce deveria ter uma formação diferenciada, com conhecimentos acerca do desenvolvimento do bebê em seus diferentes aspectos, além de dominar questões que envolvessem a maternidade e a paternidade neste período, a fim de compreender as dinâmicas familiares presentes na cena do bebê. Como diz Vaccaro (2003) assim como os bebês costumam deslocar suas mães de seus lugares pré- estabelecidos, a clínica também implica em novas articulações com outras disciplinas para que a prática seja terapeuticamente possível. Essa clínica que articula diferentes saberes, indo além dos saberes especializados para a produção de um conhecimento de mundo menos fragmentado, ou seja, um saber transdisciplinar, é o que se espera produzir na equipe de intervenção precoce (FRANCO, 2015).

Pensando dentro das políticas de saúde no Brasil, é correto afirmar que a intervenção precoce está prevista dentro do Plano Nacional de Humanização (PNH) aparecendo principalmente nas linhas de cuidado para gestantes e recem nascidos, incentivo ao aleitamento materno, acompanhamento do desenvolvimento, atenção à saúde mental, ao programa mãe-canguru, à estratégia de acolhimento mãe-bebê na unidade básica após a alta da maternidade e atenção à criança portadora de deficiência. (CUNHA, BENEVIDES, 2012)

A Psicologia, por sua vez, também comparece na intervenção precoce de diferentes maneiras, aparecendo principalmente dentro das linhas de cuidado materno infantil (SETUBAL, 2009; BALTAZAR, GOMES, CARDOSO, 2010; LOSS, CAPRINI et al 2015) Nesse cenário, são citadas como principais contribuições da Psicologia a promoção e ampliação do pensar na equipe, motivação da humanização do atendimento e a prevenção em saúde mental e sugerir ações específicas para potencializar os efeitos

do cuidado altamente especializado (como os realizados em UTIs neonatais, por exemplo).

Nesse cenário, a atuação do profissional psi em uma equipe de detecção e intervenção precoce precisa ser também pensada e articulada na singularidade de cada caso, estando às vezes como profissional de referência outras como ator coadjuvante da equipe em que outro profissional esteja referenciado à família e ao bebê.

Trazendo para uma equipe de detecção e intervenção precoce de risco psíquico em bebês, aatuação do profissional psi precisa ser pensada e articulada na singularidade de cada caso, colocando-se, às vezes, como profissional de referência, outras como auxiliar coadjuvante da equipe em que outro profissional esteja referenciado à família e ao bebê. E nesse novo cenário de atuação profissional em que a técnica está também em construção junto com a teoria, o que mais chama a atenção é o próprio setting terapêutico no qual é preciso incluir todos os atores para melhor planejar e atuar no sentido de promover um bom desenvolvimento do bebê.

Nesse sentido, é importante que o profissional psi esteja aberto para ouvir o saber dos pais a respeito do filho e seu desenvolvimento. Assim podemos destacar duas atuações clínicas, que já ocorrem no grupo de pesquisa do qual este trabalho faz parte: atuação com o bebê e sua família, e atuação com a mãe ou cuidador primordial do bebê (sabendo-se que a mãe não será necessariamente a biológica, senão a figura que ocupa esse papel para o bebê).

Na atuação com a díade família e o bebê, o profissional psi tem um papel clínico de, por meio de seu olhar e participação ativa e lúdica na relação do bebê e seus cuidadores primordiais, bem como na escuta e discussão de situações cotidianas, capazes de permitir um deslizamento simbólico nessa relação. Esse deslizamento simbólico está relacionado com a maneira inconsciente com que a mãe ou cuidador(es) primordial(ais) percebe(m) e compreende(m) o bebê e seus comportamentos. Caberia ao terapeuta por meio de distintas cenas, dando o modelo ou verbalizando indagações e demandas do bebê aos pais, permitir que aquilo que está obstaculizando o desenvolvimento do bebê, ceda. Esse “dizer”, dito a partir de distintos lugares (em silêncio no modelo de brincadeira que libidiniza o corpo do bebê dando-lhe borda e escuta e atende sua demanda, ou na mimetização da fala do bebê endereçando demandas aos pais) poderia criar as condições para que os pais

refletissem e se revissem na relação com seu bebê, o que já implica em alguma predisposição dos pais para receber ajuda.

Essa abordagem é usual em casos nos quais há uma lesão biológica do bebê, pois nesses casos, os pais procuram profissionais para ajudar, em geral da área instrumental, que tentarão do mesmo modo fazer essa escuta e ressignificação. Cabe ressaltar que não se está falando de casos em que já exista um psicodiagnóstico, senão casos que, a partir das avaliações realizadas pelo grupo, demonstraram necessidade de um olhar mais atento da equipe a fim de minimizar as chances de aí se produzirem sintomas que possam vir a anunciar uma estruturação psicopatológica e/ou criem obstáculos para o desenvolvimento do bebê. (PERUZZOLO, 2016).

Na atuação com a mãe, o terapeuta ocuparia um lugar mais tradicional de escuta de demandas a partir do lugar de suposto saber, ou seja, um lugar imaginado pelo paciente no qual o terapeuta tem um saber acerca de suas questões. É comum, na equipe na qual se insere esta pesquisa, que essa seja uma atuação do profissional psi, emergente a partir de desdobramentos de demandas familiares que surgem durante os atendimentos clínicos de intervenção precoce, realizados por fonoaudiólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais.

Em alguns casos, no entanto, foi possível fazer a família perceber que se poderia começar na intervenção precoce por um profissional psi mesmo quando procuram a fonoaudiologia, por exemplo. Restou, no entanto, o desafio de poder derivar bebês em risco psíquico para o profissional psi, ou aos demais com formação para realizar esta abordagem. Isso poderia ser decidido a partir de um saber a ser construído pela equipe acerca do estabelecimento da demanda e da adoção do que Graciela Crespin disse em comunicação oral (CRESPIN, 2016): “Quem sabe a senhora conversa com a Dona Fulana. Ela sabe muito de bebês e poderá lhe escutar e ajudar”. Segundo Graciela a Dona Fulana não precisa ter uma identificação profissional, mas a ela deve ser suposto um saber sobre bebês, o que pode diminuir resistências a buscar o profissional psi já assinaladas por Vaccaro (2003) ao constatar que crianças que não falam são usualmente levadas a Fonoaudiologia, mesmo que claramente haja uma motivação psíquica para o sintoma.

Assim, levando-se em consideração todo percurso teórico detalhado até aqui, e sabendo-se das dificuldades encontradas junto ao grupo de pesquisa que avalia os bebês

para encaminhamento à intervenção em caso de risco, apresenta-se como objetivo deste trabalho, analisar a percepção dos profissionais com relação aos processos de avaliação e encaminhamento para intervenção de bebês através dos protocolos IRDI e sinais PREAUT, bem como discutir elementos para a inserção desses protocolos em uma equipe de saúde.

3. MÉTODO

Na busca por construir uma interpretação da realidade do estabelecimento de demanda em um programa de detecção precoce de risco psíquico, apesar das bases teóricas da psicanálise, assume-se um certo ecletismo metodológico, baseados em Turato (2013, p 244) o qual ressalta que alguma dose de ecletismo é possível: “O ecletismo, isto é, a busca e a aplicação dos elementos que consideramos bons e utilizáveis em cada sistema de pensamento, vejo-o como altamente recomendável a cada estudioso e a cada equipe de pesquisadores.”

Nessa proposta, o pesquisador clínico-qualitativo aparece como um sujeito com ampla consciência dos elementos existenciais humanos, e deixando-se mover por eles para a sua compreensão profunda, acolhendo, assim, as angústias e ansiedades do outro. Turato (2013) deixa claro que estes elementos estão presentes de forma geral no método qualitativo, porém defende que, nesta abordagem clínica, o investigador tem consciência e postura amplas em relação a eles, participando dos pressupostos da pesquisa, objetivos e interpretação dos resultados.

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