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1.3 Vasari e sua época:escolasticismo das regras e banalização da arquitetura.

1.6.1 A Introdução às três artes do Desenho O primado da arquitetura

Como vimos, na síntese da questão da Disputa proposta pelo autor no Proemio das Vidas, Vasari liquida a questão da arquitetura – a qual ele continua a atribuir o primado entre as artes –

derivados de tais linhas (riscado), não é diferente da obra de marceneiros e pedreiros.; tb. V.Borghini, Selva di

Notizie. 85

Fossi M., La Basílica di Pistoia... in: Vasari Storiografo e Artista, op. cit. p. 127. Segundo os documentos o projeto era de Giuliano da Sangallo que deixou a direção das obras a seu irmão Antonio. Ventura teria realizado a maquete e mais ficado com a direção do canteiro.

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S.Serlio, Trattato di Architettura, Venezia, 1566, libro IV 87

sem se dar ao trabalho de expor suas razões. Uma vez que esta havia sido “deixada de lado...” – justifica-se. Antes do Vasari, já Benedetto Varchi havia evitado uma teorização mais completa, alegando terem os leitores já a disposição os tratados de Vitruvio e Leon Battista Alberti.

Efetivamente, a Disputa envolvia a pintura e a escultura em primeiro lugar. Mas isto não significava exatamente “deixar a arquitetura de lado”. Benedetto Varchi nas Lições proferidas na Academia Florentina sobre a qual falamos nas paginas anteriores, assumiu posição clara sobre a questão da superioridade da arquitetura, estabelecendo uma classificação precisa - baseada em argumentação sistemática sobre a nobreza da finalidade e do objeto específicos a cada arte -, justificada também através da autoridade dos pensadores antigos. Para concluir como segue:

“se non ne fusse favellato lungamente prima Vitruvio, nel suo dotissimo e bellissimo proemio posto innanzi a’ suoi libri dell’architettura – nel quale però, secondo il poco giudizio nostro, le attribuisce troppo -, e poi pure, nel suo bellissimo e dotissimo proemio innanzi a’ suoi libri dell’architettura, M. Leonbattista Alberti, nobile fiorentino et in molte così arti come scienze esercitatissimo, ne potremmo trattare diffusamente. Ma rimetendoci all’autorità loro, diremmo solamente che l’architettura è nobilissima di tutte l’altri arti dopo la medicina, non solo per la regola del fine data di sopra da noi, la quale è infallibile, e così del subbietto, ma ancora per l’utilità e moltissime cognizioni che d’essa si cavano e in essa si ricercano”

(“se não tivesse cogitado longamente antes Vitruvio no doutissimo e belíssimo proemio dos seus livros de arquitetura – o qual entretanto na nossa opinião atribui-lhe [predicados] demais -, e depois também Leon Battista Alberti, nobre florentino exercitadissimo em muitas artes e ciências, no belíssimo e doutissimo proemio dos seus livros de arquitetura, poderíamos tratar difusamente. Mas remetendo- nos a autoridade destes, diremos somente que a arquitetura é nobilíssima entre todas as artes depois da medicina, não só pela regra do fim por nos estabelecida acima, a qual é infalível, assim como a do sujeito, mas ainda pela utilidade e pelos muitíssimos conhecimentos que desta se cavam e nela se buscam”)

Mas antes de tal afirmação, Varchi se estende sobre as razões da superioridade da arquitetura. Entre estas, elenca a superioridade desta na relação com a natureza: a arquitetura vence a natureza enquanto as outras artes, na melhor das hipóteses, a igualam.

Malgrado se entreveja nas entrelinhas do discurso vasariano uma consideração menos prestigiosa da arquitetura, formalmente ele se atém a classificação do Varchi. Por exemplo, quando nomeia as artes em uma seqüência, a arquitetura virá sempre em primeiro lugar: arquitetura, pintura, escultura, e analogamente, arquitetos, pintores, escultores. Um habito que ele não mudará nem mesmo quando muda o titulo na edição de 156888. A única exceção, creio

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a questão do juízo de valor implícito na ordem de chamada será enfrentada muito mais tarde não sem grande embaraço. A própria questão è proposta a Federico Zuccari pelo erudito Baldo Catanio ao longo da nona sessão da Accademia di San Luca em Roma em 1593: “.. se queste tre professioni… sono una sola scienza divisa in tre

pratiche, e che luna riguarda l’altra e all’una, e tutte tre insieme guidate e alimentate dal Disegno padre genitivo e sostantivo di ciascuna d’esse il Signor Principe nel nominarle dice Pittura, Scultura e Architettura.. tanto più che fin oggi parmi che sia state sempre l’Architettura tenuta la principale e per la più nobile (per cosi dire) poiché tutte le professioni si distinguon in due spetie, in attive e fattive, però l’attive sogliono essere sempre per le più degne e tenute e fattive per le men nobili, ecc…”. cfr. in Tafuri M., L’architettura del Manierismo…op.cit.p.171. A esta

ser justamente o relato do funeral de Michelangelo, incluído na Vida de Michelangelo. Acredito que seja nesta ocasião que a diferente ordem de chamada, com a arquitetura por ultimo, - e respectiva insinuação de alteração da relação entre as artes -, venha à baila.

No texto do livro, no final do citado Proemio de toda a obra, idêntico nas duas edições, Vasari anuncia:

“Comincierommi dunque dall’architettura come da la più universale e più necessaria e utile agli uomini, et al servizio et ornamento della quale sono l’altre due.”

“Começaremos entao pela arquitetura por ser esta a mais universal e mais necessária e util aos homens, a serviço e ornamento da qual estão as outras duas”.

Seguindo a hierarquia que até então era somente nominal, na Introdução as três artes do desenho, que sucede o Proemio, ele começa a exposição das características de cada uma. Primeiramente, Da arquitetura. O que lhe procura imediatamente um pequeno problema no titulo do referido capitulo na segunda edição, e conseqüentemente, a necessidade de precisa-lo: Introdução as três artes do desenho, isto é, Arquitetura, pintura e escultura. E primeiro, da arquitetura.

Mesmo se lhe concede a precedência, pois “a serviço e ornamento [da arquitetura] estão estão as outras duas”, o Vasari não tira desta afirmação as devidas conclusões do ponto de vista lógico-demonstrativo. Nem acompanha tal afirmação de superioridade da arquitetura com motivações do tipo estético, social ético ou político.89 Ao contrário, ele próprio não parece ter consciência do diferente significado da própria afirmação no caso exemplar de Michelangelo – quando a arquitetura é colocada no papel de receptáculo a serviço das outras duas -, figura como se sabe sempre muito significativa para o seu pensamento.

Sua abordagem da primogenia da arquitetura pode ser considerada superficial, no mínimo apressada. Ele inicia sua teorização com uma formula quase idêntica a do Varchi - de cuja autoridade ele provavelmente se serve – mas ainda mais breve: Quanto sia grande l’ utile che ne apporta l’architettura non accade a me raccontarlo...” Quanto seja grande a utilidade proporcionada pela arquitetura não cabe a mim contar ..”

Para depois prosseguir:

“…lasciando da una parte le calcine (..) largamente già descritti da Vitruvio e dal nostro Leon Battista Alberti, ragionerò solamente per servizio de’ nostri artefici e di qualunque ama di sapere, come debbano essere universalmente le fabriche, e quanto di proporzioni unite e di corpi Zuccari responde diplomaticamente quanto segue: “.. tre figlie ugualmente nobili in quanto appunto generate dalla

stessa matrice di nobiltà. Solo che fra tali figlie esiste una primogenita che è la Pittura poiché “..non solo è figlia ma è madre stessa del Disegno suo genitore..”p. 171 A inversão da classificação do Varchi sera proposta

explicitamente somente na Idea de’ Pittori scultori ed architetti, publicado em 1606.

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per conseguire quella graziata bellezza che si desidera, brevemente racorrò insieme tutto quello che mi pare necessario a questo proposito (…)

“…deixando de lado as alvenarias (…)já largamente descritas por Vitruvio e pelo nosso Leon Battista Alberti, me estenderei somente a serviço dos nossos artistas e de todos que amam saber como devem ser universalmente as fabricas, e quanto de corpos e de proporções unidas, para obter aquela graciosa beleza que se deseja, brevemente exporei tudo aquilo que me parece necessário a tal propósito …”

A parte a “graziosa beleza” promovida ao papel de manifesto, talvez não baste observar o escasso interesse teórico de Vasari em relação a arquitetura. O espírito pratico do autor toma freqüentemente a dianteira, “intimidado pela memória do Alberti escritor e pela intensa atividade dos tratadistas”, comenta Borsi, Vasari permanece com sua visão utilitarista da arquitetura (..)”90. E’ bem verdade que em coincidência com a edição das Vidas, o mesmo editor Lorenzo Torrentino manda imprimir em 1550 a edição do De re edificatoria do Alberti, traduzido por Cosimo Bartoli, com frontispício desenhado pelo próprio Vasari91. Pouco antes da segunda edição, em 1564, serão publicados os Opusculos Morais.

Evidentemente, da época do Alberti aos seus dias, o horizonte se havia restringido. Muito possivelmente, Vasari não pode repetir a argumentação do humanismo racionalista, traduzida na posição revestida pela arquitetura na classificação do Varchi. Mas, sobretudo na segunda edição, dificilmente estas ainda espelhavam as suas idéias.

Não é da mesma opinião o historiador Alessandro Gambuti, que no ensaio sobre Teoria e critica da arquitetura na historiografia vasariana”, assimila as posições do Vasari às do Varchi sem problematiza-las minimamente. Ele afirma que para um como para o outro “secondo il fine è più o meno degno, cosi l’arte è più o meno nobile”92 .

Na sua carta de 1547 em resposta a celebre sondagem, o jovem Vasari seguia as elaborações do Varchi93. Em 1568, mesmo não alterando tais afirmações de principio, isto parece não ocorrer mais. De resto, mesmo que as idéias de Vasari não mais correspondam às convicções de outrora, não fazia parte das suas intenções, nem tanto menos da sua personalidade, polemizar com posições tão difusamente consolidadas.

Mas é justamente o que faz Vincenzo Borghini na sua Selva di Notizie, cujas idéias eram ao nosso certamente muito familiares. O lugar-tenente da Accademia del Disegno escreve a Vasari em agosto de 1564, referindo sobre sua recente leitura das Lições do Varchi. Informação surpreendente, sendo ele quem era, há quinze anos da publicação das mesmas. Mas

90

Borsi F., op.cit.

91

AAVV, Principi Letterati e Artisti... tav. 193 92

Discutiremos mais adiante nossa opinião contraria a expressa pelo historiador Alessandro Gambuti no ensaio

Teoria e Critica dell’Architettura nella storiografia vasariana. In Storiografo e Artista, p. 743.

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Barocchi P., 1960, p.11. Sobre a distinção de mais nobre e mais util, voltaremos a propósito das alterações feitas por ele na Vita del Brunelleschi.

compreensível à luz do novo fôlego adquirido por tal debate no âmbito da preparação do cadafalso de Michelangelo um mês antes, motivo da referida polemica com o Cellini.

Em sua missiva ao amigo Giorgio, assinalada por nos algumas paginas atrás, Borghini comenta sobretudo a ingenuidade das cartas escritas pelos artistas na ocasião da célebre sondagem, publicadas por Varchi junto com as Due Lezioni. Exibindo sua habitual verve, ironiza a filosofia “boschereccia” do Cellini dizendo que com esta se divertiu como se fosse carnaval. Confidencia também ao amigo, ter escrito ao Bronzino aconselhando-o a completar seu depoimento. Sobre a carta do próprio Vasari, às primeiras armas com a escritura em 1546, Don Vincenzo comenta que pode bastar: “non credo voi dobbiate fare altro, avendo scritto nel principio delle Vite o dell’opera abbastanza poi che scrivesti prima quella lettera”94. Ou seja, ainda que a carta de Vasari fosse insuficiente, o conteúdo da mesma havia sido sanado em razão do resumo de tal debate oferecido pelo autor no Proemio de toda a obra.

Dias depois, em outra carta, Borghini anuncia ao Vasari um livro que esta’ escrevendo a partir desta leitura: Ora vi bisognerà rigare più dritto, che io ho studiato Plínio e la lezione del Varchi e quelle belle lettere del Tasso sopra la pittura; tal che io ci son mezzo dottorato (...) quando io non vo dormire, io fo scrivere a Ser Marco che ò con meco, e già sono a più di 130 faccie d’un libro in quarto, sì che mettetevi a ordine d’aver che leggere e che masticare”95.

O livro mencionado foi identificado por Paula Barocchi com a Selva di Notizie, manuscrito transcrito e estudado por ela. Como comenta a estudiosa, a importancia da obra se relaciona não somente a questão da Disputa mas também em razão das diferenças entre as duas redações das Vidas (1550 e 1568) de Giorgio Vasari. Elementos que demonstram a grande ascendência do Prior do Ospedale degli Innocenti sobre as idéias do nosso escritor.

Sobre a influência do texto de Borghini sobre a elaboração da edição Giuntina, Paola Barocchi comenta o evidente distancimento em relação a Michelangelo em favor da aproximação aos venetos e a Rafael.