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5.1 Representações sociais da internação domiciliar

5.1.5 A inversão de papéis e trocas a partir do cuidar

Em algumas situações do processo de cuidar pode haver uma certa mudança de papéis no cuidado, como a esposa ou a filha virar mãe, por exemplo. De certa forma, esse aspecto deixa implícita uma situação de poder sobre o paciente, visto como criança, como inferior:

Tu vê, então, os papéis aqui em casa houve uma inversão, hoje ela é a minha filha, e eu sou a mãe. Então a gente conversa isso, eu falo para ela: a senhora me obedeça! Eu falo sério. E a única que ela obedece, que ainda ela... porque tem horas que tem que falar sério, que nem criança! Tu tem vontade de sentar numa cadeira e fazer ficar, porque ela teima, ela insiste que ela sabe, que ela vai fazer. É.. eu me sinto assim.. eu me sinto hoje em relação a mãe, e o pai também, eu que sou responsável por eles. Eles são meus filhos. [ ...] eu brincava, eu digo ai, eu estou adotando o pai e a mãe, ... e não é que os fatos aconteceram (CF1-F).

Eu nunca tinha cuidado de ninguém, nem de criança! Aí eu já até brinco que eu casei, por causa da casa e ganhei um bebê gigante, porque é um bebê gigante! Ontem mesmo ela fez lavagem, aí tem que colocar fralda e coisa (CF8-F).

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Observa-se nessas falas que essa percepção da inversão de papéis, de tornar o doente uma criança facilita o processo de observação dos sentimentos e comportamentos dele. Esta orientação, conforme o estudo de Menezes (2004) é passada pelos profissionais de saúde da unidade de cuidados paliativos de que os doentes transformam-se e se comportam como crianças, assim, cabendo ao cuidador familiar impor limites aos doentes, como se coloca às crianças.

Por outro lado, essa condição de infantilização do doente pode possibilitar uma melhor maneira de retirar a autonomia do paciente, ou seja, o familiar colocando-se em uma condição de superioridade como mãe ou pai do doente faz com que somente aquele e não o doente decida por suas terapêuticas. Para Costa, Lunardi e Lunardi Filho (2007), nos aspectos diários da vida do doente crônico, a sua autonomia pode ser incentivada pelo cuidador, de modo que a cronicidade não faça com que o paciente torne-se totalmente dependente de alguém. As limitações impostas pela sua doença devem ser respeitadas, mas o poder de autonomia e decisão do paciente deve ser mantido. Sua condição de doente crônico não é justificativa para tirar-lhe a autonomia, o paciente deve participar nas tomadas de decisão sobre seu próprio cuidado e bem-estar. Esse aspecto, conforme Menezes (2004), não é válido somente para o a situação crônica de alguma doença, mas para o processo de terminalidade, pois o cuidador deve estimular para que o paciente viva e faça atividades ao seu alcance, diferentemente de posicioná-lo em uma cama, colocando-o em condição de incapaz de fazer alguma coisa.

Portanto, a capacidade de decisão dos pacientes deve ser valorizada e respeitada, para que os sentimentos de perda e de incapacidade possam ser minimizados. Para profissionais e familiares, o exercício da autonomia dos pacientes deve ser visto como uma ação ética de respeito aos direitos do enfermo. Para tanto, deve-se evitar a tendência que os profissionais de saúde ou cuidadores possuem, a fim de tornar as atividades de cuidado mais ágeis, realizando ações e assumindo decisões que poderiam ser feitas pelos próprios pacientes. Essas atitudes interferem diretamente no poder de escolha do doente sobre si, o que as descaracteriza, portanto, como ações de cuidado (COSTA, ALVEZ e LUNARDI, 2006).

O conhecimento dessas representações sociais, que giram em torno do cuidar do doente terminal, infantilizando-o, pode permitir que enfermeiros e profissionais de saúde abordem melhor algumas questões, como autonomia e atividade do paciente, limitações, entre outras. Nessa direção, a condução das conversas e orientações aos cuidadores familiares pela equipe poderia girar em torno do que é permitido ao paciente fazer, a importância de ele também participar das atividades. Acredita-se que essas representações sociais podem advir do modelo paternalista introduzido pelos próprios profissionais de saúde, pois colocando o

paciente em uma condição inferior, ficaria mais fácil o manejo das ações e do cuidado ao mesmo. Assim, essas representações sociais foram construídas mediante o processo de objetivação, conforme Moscovici (2007), visto que os cuidadores familiares já foram cuidados pelos seus responsáveis, podendo, assim, remetê-los a uma lembrança de posição inferior.

Na fala, a seguir, pôde-se perceber que, a condição de ser cuidado e de cuidar modifica papéis e, até mesmo, comportamentos. As filhas nunca se imaginariam dando banho no próprio pai:

Mas o pai mudou muito o comportamento dele. Antes ele era muito ríspido, muito isso e aquilo. Agora dificilmente ele perde a paciência. Alterou um pouco a personalidade dele. Ficou mais fácil lidar com ele. Ele mesmo aceita as limitações, porque antes ele não aceitava. A dificuldade era que ele não aceitava as limitações dele. [...] Mas nunca nosso pai ia estar imaginando que nós iríamos estar dando banho no pai. É uma coisa bem restrita na idade dele. Agora não. Ele aguenta a gente estar junto (CF 10).

Nesse sentido, o paciente aceitar ser cuidado e, conforme a percepção do cuidador familiar, isto implica em aceitar suas limitações. Por conseguinte, o processo de cuidar e as intervenções, tanto do cuidador familiar como da equipe, ficam mais facilitadas, quando o paciente reconhece sua situação.

O cuidado também parece significar uma troca. Tanto é que o cuidador familiar revela que foi escolhido para cuidar da paciente, pelo fato de ela ter cuidado dele, anteriormente, e uma outra inversão de papéis ocorre:

Me escolheu eu para cuidar ela, porque, até então, ela me cuidou. Eu tive internado (em um outro hospital). Comecei aqui (pela cidade). Eu tive câncer no pulmão e ela me cuidou. Agora eu estou cuidando dela (CF2-M).

Quem cuida também necessita ou necessitará, talvez, em um futuro próximo, de cuidados. E, ao contrário, quem é cuidado por alguém deverá cuidar de alguém no futuro (ROSELLÓ, 2009). Diante disso, valorizar as representações sociais que giram em torno do cuidado no domicílio, no olhar dos cuidadores familiares pode permitir um melhor planejamento das ações e uma melhor aproximação na relação e na comunicação entre a equipe, o paciente e a família, pois muitas vezes a ciência ignora o saber do senso comum. Em suma, conhecendo os desafios, as conquistas, os sentimentos, o preparo, dentre outros aspectos, o cuidado pode ser viabilizado de forma a possibilitar o bem-estar e o conforto ao doente terminal.

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