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3.1 A “NEGLIGÊNCIA” COM A PROGRESSIVIDADE TRIBUTÁRIA NO BRASIL

3.1.2 A isenção fiscal sobre lucros e dividendos

Um ponto altamente controvertido na tributação brasileira está no fato de os lucros e dividendo serem isentos há quase 23 anos, por força da lei nº 9.249/95. O que perfaz mais uma forma de “negligência” com a progressividade fiscal, já que essa cobrança viria a fazer com que as pessoas com mais rendas – que são, em regra, os beneficiários de lucros e dividendos – contribuíssem mais com as receitas públicas.

Art. 10. Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior. (Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995. Altera a legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas, bem como da contribuição social sobre o lucro líquido, e dá outras providências.)

Essa decisão político-legislativa, eivada de inconstitucionalidades, só reforça a conformação da incidência tributária brasileira à conveniência dos mais ricos. A justificativa para essa isenção era o aumento dos investimentos – sendo que, curiosamente, não houve verificação se de fato isso ocorreu ao longo dessas duas décadas87. Na prática, o que

seguramente ocorreu foi o beneficiamento fiscal das pessoas mais abastadas, já que praticamente todo o rendimento desse grupo é oriundo de aplicações financeiras e lucros de suas empresas, a exemplo de Joesley Batista, dono da empresa JBS:

A janela se abriu em 2014 e 2015 quando a RF começou a divulgar dados detalhados das declarações. Sabíamos que o País era extremamente desigual, mas os dados revelaram que a situação é muito mais dramática. Descobrimos que os ricos não só pagam pouco imposto como pagam menos imposto do que a classe média alta. Por quê? A principal fonte de renda dos muito ricos são lucros e dividendos distribuídos a acionistas, que são isentos. Já os salários, principal renda da classe média alta, são tributados em 27,5%. No Brasil, a estrutura do IR é progressiva para salários e incide em tudo que a pessoa recebe. Verificamos que a carga tributária de quem ganha um, dois e três salários mínimos, cresce e chega, no máximo, à média de 11% para rendas entre R$ 160 mil e R$ 360 mil por ano, faixa da classe média alta. A partir daí, a tributação vai reduzindo até que, no topo, onde está quem ganha

87 Paradoxalmente, um levantamento recente mostra o inverso: “quando havia maior concentração da renda no topo, observava-se uma queda dos investimentos, demonstrando que o aumento deles pode estar associado a uma melhor distribuição de renda, pois foi, inclusive, constatado que, em relação a outros países, os ricos brasileiros investem muito menos”. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/economia/brasil-um-dos-paises-mais- desiguais-do-mundo. Acesso em 29/11/2018.

mais de R$ 2 milhões por ano, a carga, em média, cai a 6% sobre a renda total, podendo ser maior e até menor, que foi o que se descobriu no caso de Joesley Batista. A quebra do sigilo fiscal mostrou que ele recebeu, em 2016, R$ 105 milhões, mas pagou apenas R$ 340 mil de IR, ou seja, 0,3%, tudo porque 95% da renda dele veio de lucros e dividendos distribuídos.

(...)

Mesmo que o dono da JBS gaste R$ 10 milhões em consumo, não chegará à carga que o pobre paga. Descobrimos ainda, ao analisar os números, que um milésimo (0,1%) mais rico do País, que são 140 mil pessoas, ganha mais de R$ 3 milhões por ano e soma 14% da renda nacional, contra a fatia de 12% dos 50% mais pobres - ou 70 milhões de pessoas, um terço da população. Os ricos são muito mais ricos e pagam muito menos imposto do que se imaginava. A concentração de renda no Brasil é uma das maiores do mundo, algo inaceitável para países democráticos.88(Grifos nossos)

Essa incoerente opção tributária de isentar lucros e dividendos, que não ocorre em praticamente nenhum outro país, além de aumentar a concentração de renda, termina por impactar negativamente a arrecadação e produzir ainda mais distorções. É, por tabela, uma sabotagem ao erário.

Pelo lado da arrecadação, fechar uma série de brechas do sistema tributário poderia fortalecer a receita e reduzir as distorções. Por exemplo, além do pagamento de dividendos aos acionistas, as empresas têm uma opção de pagá-los com juros sobre capital próprio, que são tratados como despesa, ou seja, não estão sujeitos à tributação sobre o rendimento das empresas (IRPJ). Para o acionista, isto é tributado à mesma taxa de 15% que é cobrada sobre os dividendos. Isso tem efeitos regressivos sobre a distribuição de renda e reduz também a poupança corporativa. Em vez disso, a aplicação da alíquota padrão IRPJ geraria receitas adicionais de 0.1% do PIB.89

O interesse público é atassalhado por medidas políticas em defesa dos interesses privados dos segmentos mais ricos da população. A consequência disso é que o combate às desigualdades nunca se efetiva, e a eficiência tributária perde espaço para as demandas usurárias dos detentores do capital. Nesse sentido, Piketty pontua:

Até a Primeira Guerra Mundial, não existia na maior parte dos países nenhum imposto sobre as rendas do capital ou sobre os lucros das empresas; nos raros casos em que eles existiam, seus coeficientes eram baixíssimos. Tratava-se, assim, de condições ideais para o acúmulo e a transmissão de fortunas consideráveis, e para se viver da renda produzida por essas riquezas. Ao longo do século XX, surgiram inúmeras formas de tributação de dividendos, juros, lucros e aluguéis, o que mudou radicalmente a distribuição.90

88 Entrevista concedida pelo economista gaúcho Sérgio Wulff Gobetti ao Jornal do Comércio. Disponível em: http://www.reconconsultoria.com.br/novidades/1065/tributacao-brasileira-e-escandalosamente-benefica-aos- muito-ricos',-diz-economista. Acesso em 30/09/2018.

89 OCDE, 2015. Disponível em: http://www.oecd.org/eco/surveys/Brasil-2015-resumo.pdf. Acesso em 03/10/2018.

A respeito desse aspecto, vale ainda pontuar que o principal economista do governo recém-eleito afirmou que pretende inserir a taxa de 20% na tributação da distribuição de lucros e dividendos. Só que, em contrapartida, também estudava eliminar a contribuição patronal para a Previdência, que incide sobre a folha de salário – que possui a mesma alíquota de 20%91. Portanto, tornar a tributação mais justa, equitativa e, consequentemente, aumentar a arrecadação, parece não ser uma opção para o governo que está por vir.