• Nenhum resultado encontrado

A judicialização implica na proteção e na valorização da Constituição?

Capítulo 1 | Das estratégias de acionamento do STF à luta por direitos

1.3 A judicialização implica na proteção e na valorização da Constituição?

Uma outra questão a ser pensada é se a judicialização é um fenômeno que afirma o sentido da Constituição de 1988, protegendo seu conteúdo (garantindo-o) e fazendo-o se realizar, ou se pode alterá-la. Dentre os autores críticos à judicialização da política, Koerner (2013) discorre que a judicialização em excesso desvia a ordem política e social de um caminho mais acentuado em práticas de consenso discursivo e deliberativo para um jogo de juridificação que, oposto ao diálogo, aumenta os níveis de complexividade da burocracia pública e da vida coletiva.

Em sua contramão, Vianna (1999; 2007) argumenta que a judicialização potencializa o sistema político, pois garante maior acesso à justiça e cidadania, tratando-se de “uma judicialização da política cuja origem está na descoberta, por parte da sociedade civil, da obra do legislador constituinte de 1988, e não nos aparelhos institucionais do Poder Judiciário” (VIANNA, 1999, p. 43).

A Contituição gerada pela Assembleia Nacional Constituinte (ANC) possibilitou, na visão desse autor, a conexão dos princípios de democracia representativa e participativa da população, expandindo os canais de acesso à justiça, com a criação de instâncias especiais cíveis e criminais e ampliando os mecanismos de acesso ao controle de constitucionalidade das leis – associando alguns atores políticos e sociais como legítimos para o questionamento no STF. Em linhas gerais, foi o legislador constituinte quem fortaleceu e expandiu o Poder Judiciário e garantiu mecanismos de acesso à justiça para toda a população.

A invasão do direito na vida social coletiva, isto é, a judicialização das relações sociais ganha expressividade no Brasil com a retomada democrática, em 1985, e consecutivo arranjo constitucional, instituído em 1988, que ampliou significativamente os direitos sociais, civis e políticos, inclusive garantindo efeito de cláusulas pétreas para as questões de direitos humanos (VIANNA, 1999; ADORNO, 2008; CARVALHO, 2004; MACHADO, 2013). Contudo, essa expansão dos direitos inscritos na CF/88 não recebeu completa atenção dos

legisladores ordinários como medida específica e concreta no plano prático e cotidiano da Nação. Segundo Machado (2013):

[A Constituição brasileira] não é uma constituição que regula apenas a organização do Estado. Tampouco, é uma constituição liberta de valores substantivos, recheada apenas de prescrições procedimentais. Da mesma maneira, não se trata de uma constituição garantia que busca apenas proteger os direitos individuais nela prescritos. Trata-se, na verdade, de uma constituição dirigente, que, muito além de assegurar direitos, preceitua um programa de desenvolvimento social e político a ser cumprido. Sendo assim, se a Constituição goza de status superior na hierarquia das normas jurídicas do país, ela precisa de proteção especial, que não lhe garanta apenas a defesa, mas também a efetividade. (MACHADO, 2013, p. 54, grifo nosso).

A Constituição de 1988 é proveniente de um contexto histórico de regime de excessão de direitos e garantias, em especial, daqueles grupos opositores ao governo militar (de 1964 a 1985) ou dos mais pobres – deixados à margem da vida política, social e econômica (CARVALHO, 2011). Nesse sentido, ela afirma o liberalismo político enfatizando os direitos civis da cidadania e estabelecendo diversos mecanismos de controle e participação democrática e popular, gerando mecanismos de gestão pública representativa e direta – como caso de conselhos, referendos, etc. Estabelece-se a partir dela uma nova identidade democrática que, para além da gestão representativa, amplia a gestão política à ação popular:

Pode-se dizer que na Constituição de 1988, o lócus privilegiado da democracia não está na representação majoritária dos parlamentos, mas sim na cidadania capaz de exigir o cumprimento de seus direitos constitucionalmente assegurados. Seja na dimensão do amplo rol de direitos individuais e coletivos constitucionalizados em seu texto, seja nos mecanismos prescritos para sua efetivação, encontram-se marcas indeléveis do constitucionalismo democrático que conseguiu se impor durante o processo constituinte. [...] Para além de um amplo acesso à interpretação constitucional, o programa da carta de 88 exige amplo acesso ao Judiciário em questões ordinárias que se multiplicam pela regulamentação extensiva da vida social contida na Constituição. Tema comum quando se fala de acesso à justiça, a capacidade das instituições jurídicas de chegarem a todas as parcelas da população também se faz presente no texto constitucional. Não é à toa que foram constitucionalizados os juizados especiais e a defensoria pública, como instituições capazes de garantir penetração capilar do direito na sociedade. Num mesmo sentido, o Ministério Público ganhou tratamento especial na carta, surgindo como mais uma instituição jurídica capaz de potencializar o acesso popular à cidadania prometida na extensa lista de direitos individuais e coletivos da Constituição cidadã. (MACHADO, 2013, p. 41 – 42).

Nesse contexto, a norma constitucional amplia e garante mecanismos e direitos de cidadania – entre eles a participação popular direta na política e o direito ao acesso à justiça.

Nos anos que se seguiram ao arranjo e novo pacto foram implementadas diversas políticas públicas de constituição das competências políticas, de regulação burocrática, de comportamento, serviço e consumo e de redistribuição de serviços universais – como a reforma da previdência, por exemplo.

Contudo, a prática de políticas públicas distributivas que estenderam a letra do direito para a prática inclusiva começa a ser notada com maior enfoque da governança política a partir do primeiro governo Lula (2003 – 2006). Antes dele, os avanços dos direitos de cidadania e acesso à justiça se restringiam ao procedimentalismo jurídico:

A invasão do direito na vida social [ocorre por meio da] criação de juizados especiais [...] Nesse sentido, os Juizados representariam o momento em que o Poder Judiciário se torna reflexivo: as consequências decorrentes da ampliação do acesso à justiça que ele pôs em movimento, traduzidas em uma crescente legitimação social do seu papel de “guardião” dos direitos individuais e coletivos consagrados na Constituição de 1988, tiraram a inocência do meio aparentemente neutro com que os magistrados pretendiam atuar sobre sua própria cultura e práticas profissionais. (VIANNA, 1999, p. 155)

O modelo de federalismo e constitucionalismos adotados pelo legislador constituinte (e os formatos e arranjos a esta ordem que se estabeleceram nos anos sucessivos àquela promulgação em 1988) organizaram o arranjo democrático brasileiro em uma gestão centralizadora – na figura do poder Executivo –, com um poder Legislativo sucetível a cooptação do modelo de presidencialismo centralista e dependente de coalizões (VIANNA 2015). É sobre esses aspectos que a letra constitucional relativa à participação direta da sociedade civil e seu engajamento nos mecanismos de controle política são minados pela máquina pública. Vianna & Burgos discorrem que:

Em um cenário assim limitado, as opiniões e o fluxo das opiniões geradas na sociedade civil não encontram caminhos para se traduzirem em vontade na esfera pública, uma vez que a agenda do Legislativo se acha sob domínio do Executivo, o qual impõe nela a supremacia dos seus objetivos estratégicos em matéria econômica. Nesse sentido, a própria política social deixa de refletir as expectativas e interesses da sociedade civil organizada, tornando- se objeto de políticas públicas assistencialistas do Estado e dos seus fins de legitimação, inclusive eleitoral. (VIANNA & BURGOS, 2005, p. 780)

É neste contexto de ausência de participação e capilaridade política no veio social que o Poder Judiciário surge como um espaço alternativo para a interposição de demandas sociais em busca de direitos constitucionalmente estabelecidos (VIANNA, 1999; VIANNA & BURGOS, 2005). Sob esse aspecto, a judicialização não se trata pois de uma usurpação de

poderes. Ao contrário, ela se estabelece como recurso constitucional alternativo (e repressivo) no contexto de vácuos de representação política (VIANNA & BURGOS, op. cit.; TAYLOR, 2007). Segundo Arantes (2007):

A condição de poder político do Judiciário nos tempos modernos decorre de sua capacidade de controlar os atos normativos dos demais poderes, especialmente as leis produzidas pelo parlamento. Essa função conhecida como judicial review ou controle de constitucionalidade das leis, coloca o Judiciário em pé de igualdade com os demais poderes, exatamente naquela dimensão mais importante do sistema político: o processo decisório de estabelecimento de normas [leis e atos executivos capazes de impor comportamentos]. (ARANTES, 2007, p. 84).

Na visão do ministro Luis Roberto Barroso (2008), uma vez provocado a decidir sobre diversos temas, em sede de controle de constitucionalidade das leis, o STF não tem a alternativa de não decidir essas questões quando elas preenchem os requisitos de cabimento (legitimidade ativa do requerente, pertinência temática, etc.).

Esse pronunciamento é garantido constitucionalmente e qualquer prática de inação do STF – quando provocado à ação – é medida juriscêntrica que desfavorece o andamento de nossa democracia constitucional. Nesse sentido, cita o ministro, “judicialização, que de fato existe, não decorreu de uma opção ideológica, filosófica ou metodológica da corte. Limitou-se ela a cumprir, de modo estrito, o seu papel constitucional, em conformidade com o desenho institucional vigente” (BARROSO, 2008).

Não se trata, pois, de uma usurpação de poder. A judicialização das políticas e das relações sociais é elemento que não caminha em sentido oposto aos interesses do legislador constituinte. Ao contrário, apresenta-se como parte constitutiva de nossa formação democrática pós regime militar como forma de atuação do STF garantida na Constituição de 1988. Desse modo, o poder Judiciário, em especial o STF – órgão do judiciário responsável pelo controle concentrado de constitucionaldade das leis – é um ator político relevante e capaz de controlar e fazer avançar legislações, no sentido de garantir que a letra constitucional seja devidamente aplicada pelos legisladores ordinários.

Em linhas gerais, isso significa que o poder Judiciário, na figura do STF, manifesta-se a partir daquilo que é provocado por atores externos com legitimidade para questionar a constitucionalidade de leis nesse tribunal. As demandas oriundas dos atores externos são, por sua vez, das mais diversas e podem caminhar no sentido de (a) questionar diplomas específicos em busca de garantir a aplicação da Constituição ou a expansão de direitos nela estabelecidos para grupos que se encontram descobertos de sua efetiva prática, (b) questionar

diplomas que possibilitem mudanças no status quo de ordem inclusiva, ou ainda, (c) questionar diplomas que visam limitar o acesso aos direitos, conforme tipologia que geramos a partir da análise qualitativa das petições iniciais25.

Nesse aspecto, notamos que a judicialização das políticas públicas tem potência para proteger e valorizar a Constituição – de forma a expandir sua prática a grupos antes postos à margem da ordem de direitos vigentes. Contudo, a judicialização também implica a busca de grupos no sentido inverso: restringir avanços/expansões ou garantias desses direitos e demandas inclusivas para novos grupos e segmentos da sociedade antes descobertos de leis regulatórias. É pensando nesses aspectos que analisamos nesta dissertação os sentidos das petições iniciais.

Assim, lançamos duas hipóteses relativas à pergunta que provoca o debate desta seção: se a judicialização implica na proteção e na valorização da Constituição de 1988. A nossa primeira hipótese é de a judicialização da política implica na proteção da CF/88 na medida em que o STF decide pela improcedência das demandas de restrição de direitos, e procedente às demandas em sentido de contenção de retrocessos aos direitos vigentes. A segunda hipótese é relativa ao aspecto da valorização da Constituição: quanto maior a variabilidade de assuntos centrais das petições iniciais maior a valorização da CF/88.