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A justiça como faculdade de julgar: o kantianismo de Rawls

2. O Liberalismo Igualitário

2.2. A justiça como faculdade de julgar: o kantianismo de Rawls

a compreensão do Estado Moderno uma vez que o seu contratualismo não se encontra limitado apenas ao político porque é essencialmente moral. Nesta medida impulsiona aquilo que hoje contemplamos como Estado Democrático e de Direito. Desta feita, Bobbio demonstra a ligação e compatibilidade entre Estado Liberal e Estado Democrático,52 escrevendo:

Não só o liberalismo é compatível com a democracia, mas a democracia pode ser considerada como o natural desenvolvimento do Estado Liberal apenas se tomada não pelo lado do seu ideal igualitário, mas pelo lado de sua fórmula política, que é, como se viu, a soberania popular. O único modo de tornar possível o exercício da soberania popular é a atribuição ao maior número de cidadãos o direito de participar direta e indiretamente na tomada de decisões coletivas [...]. Embora muitos escritores liberais tenham contestado a oportunidade de extensão do sufrágio e no momento da formação do Estado liberal a participação fosse consentida apenas aos proprietários, a verdade é que o sufrágio universal não é em linha de princípio contrário nem ao Estado de direito nem ao Estado mínimo. (Bobbio, 2005, p:43).

2.2. A Justiça como faculdade de julgar: O kantianismo de Rawls

Rawls começa por analisar o conteúdo do princípio da igual liberdade para todos, que é derivado da interpretação kantiana de justiça, e o que significa prioridade dos direitos, tal como Kant os define. A interpretação encontra-se baseada na noção kantiana de autonomia, mas sem limitar a discussão à universalização dos princípios morais. A ideia contida em Kant de que a filosofia moral é um estudo da conceção e um resultado de uma decisão racional, em que os princípios morais são objetos de escolha racional, acarreta consequências públicas imediatas. No

52 À medida que os limites do Estado liberal-burguês se circunscrevem apenas ao poder, a simples liberalização das

relações asseguradoras dos direitos naturais torna conveniente o cenário efetivo da democratização das relações sociais costumeiras, alargando, deste modo, os direitos de domínio individual para o domínio social. Contudo, sempre que os limites do Estado liberal-burguês se estenderem para as funções deste Estado, o seguimento de democratização torna- se improdutivo, ocasionando iminentemente a sua extenuação na totalidade e um retrocesso dos direitos sociais para garantir somente os direitos individuais. Considerando este cenário, liberalismo e democracia podem ser assinalados como duas suposições antitéticas, pois a caraterização de um Estado liberal-burguês íntegro subentende a supressão de toda e qualquer viabilidade democrática por outra, um Estado democrático subentende o desgaste de toda a fundação do liberalismo. Desta feita, num Estado liberal-burguês íntegro, a democracia é tão-somente técnico-formal e não possui uma obrigatoriedade, limitando-se simplesmente a um Estado de Direito Mínimo.

momento em que os princípios morais são pensados como sendo a legislação de um campo de objetivos morais aceitáveis por todos tem também um domínio público. Argumenta Rawls:

Kant defende, em minha opinião, que uma pessoa age de modo autónomo quando os princípios que regem a sua ação são por ele escolhidos como a melhor expressão possível da natureza enquanto ser racional livre e igual. [...] Agir com base nos princípios da justiça é agir com base em imperativos categóricos, no sentido em que nos são aplicáveis quaisquer que sejam, em particular, os nossos objetivos.53

Assim, o indivíduo não age com base em princípios adotados segundo a sua posição social ou qualidades naturais nem em consideração com as particularidades da sociedade em que vive, pois o véu de ignorância na posição original priva as pessoas dos conhecimentos que lhes torna possível escolher princípios heterónomos. Isto significa que “as partes efetuam a sua escolha conjuntamente, como pessoas racionais livres e iguais que conhecem apenas as circunstâncias que originam a necessidade dos princípios da justiça”.54 Tal assenta não apenas no sentido do imperativo categórico, o qual Kant entende como um princípio de conduta aplicável a um sujeito em virtude da sua natureza como ser racional livre e igual, mas também no sentido de imperativo hipotético que se baseia na imposição e adoção de certas medidas como meios efetivos de atingir certos fins, quer se trate de um desejo particular quer se trate de algo mais geral.

Na visão de Sidgwick,55 Kant entendia que quer a vida de um virtuoso quer a vida de um vil são igualmente produto de uma escolha livre (eu numénico) e são ambas objetos de leis causais (eu fenomenológico) e que, como tal, a nada conduz. Relativamente a esta questão Rawls argumenta:

A resposta de Kant deve ser a seguinte: embora a ação com base num qualquer conjunto coerente de princípios possa ser resultado de uma decisão por parte do eu numénico, nem toda a ação deste tipo, praticada pelo eu fenomenológico, expressa essa decisão como sendo a de um sujeito racional livre e igual. […] Kant não demonstrou que o agir a partir da lei moral expressa a nossa natureza

53 Rawls 1993, pp. 204-205. 54

Ibid., p. 204.

por formas identificáveis e que o mesmo se não verifica se agirmos com base em princípios contrários. […] Este defeito é corrigido, creio, pela conceção da posição original.56

Rawls entende que os vários dualismos,57 que caraterizam a conceção de Kant, são melhor compreendidos quando estes dualismos são alterados em vez de serem encarados segundo o sentido dado inicialmente por Kant e o seu alcance reformulado no âmbito da prática. O kantianismo de Rawls é, portanto, na sua essência, uma interpretação da teoria da justiça como equidade.

2.3. O ideal de um socialismo liberal

Muitas vezes são questionadas não apenas as circunstâncias do liberalismo político, mas também até que ponto este é possível. Antes de mais, é imprescindível esclarecer que num regime constitucional as relações políticas são pautadas por dois traços peculiares. Primeiro, a relação no interior da estrutura básica da sociedade é constituída pelo nascimento e terminada apenas pela morte, ou seja, não entramos ou saímos dela voluntariamente. Segundo, a prerrogativa da utilização da força e de sanções para assegurar o cumprimento da lei está unicamente assente no poder político entendido como Estado. Rawls deixa claro que percecionar a sociedade através de um ponto de vista limitado a uma “sociedade privada”58 é uma forma errónea de proceder. Numa sociedade privada os sujeitos encontram-se em concorrência e a inter-relação complementar e salutar é eliminada. Os sujeitos têm naturalmente em vista que a sociedade é um empreendimento de cooperação que visa vantagens mútuas e, por isso, está marcada por conflitos e identidades de interesses que podem ser enfrentados de duas maneiras:

i) A ideia escolhida pela teoria da justiça que consiste em formar princípios que sejam satisfatórios a partir das hipóteses menos exigentes, isto é, a argumentação em torno da teoria deve

56 Rawls 1993, p. 206; Rawls 1996, p. 120.

57 A necessidade e a contingência, a forma e o conteúdo, a razão e o desejo, os númenos e os fenómenos.

58 Aquela em que a sua coesão consiste primordialmente em torno de cálculos feitos por cada sujeito ou por um número

elevado de sujeitos, que revela que para se manter o sistema, não pode haver quaisquer alterações, pois tais alterações podem potencialmente repercutir-se na redução das quantidades de meios disponíveis com os quais os sujeitos dão continuidade aos seus objetivos pessoais. O que é totalmente diferente de quando existe uma convicção pública de que o sistema se mantém e é suportado por estruturas básicas que são justas em si mesmas.

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