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A lírica transcendental de José Raulino Sampaio

4 VOZES DRUMMONIANAS: O LEGADO DE UMA GERAÇÃO

4.2 A lírica transcendental de José Raulino Sampaio

A casa número 927, da Marechal Deodoro, está de luto. Nela, morava o poeta José Raulino Sampaio, nascido em São Desidério, Barreiras, na Bahia, mas, há muitos anos, instalado em Petrolina [...] Morreu fazendo poesia. Por ela, viveu. Por ela, sacrificava os interesses pessoais. E com ela, foi cúmplice de cada detalhe que a vida demonstrou, que a vida negou e que a vida revelou. Esteve presente na chegada da nova Petrolina, com seus prédios suntuosos e com suas indústrias. Com sua gente e com seu espírito cosmopolita. Ele viveu as decisões históricas da cidade. Apaixonado por leitura, ele não distanciou-se da Imprensa e durante muito tempo, escreveu para este jornal. Alimentou multidões de corações com sua poesia que falava sempre do homem e seus vícios, o homem e sua ansiedade. [...] Sua morte foi uma semente para novos caminhos de uma poesia que continua nas calçadas à procura de gente, à procura de amantes. (JOSÉ, 1989, p. 2.) Com essas saudosas palavras, o jornal O Farol despedia-se, em 27 de janeiro de 1989, daquele que havia sido um dos seus mais assíduos colaboradores. Dias antes, a 13 de janeiro, falecera o poeta José Raulino Sampaio, um dos intelectuais mais admirados na cidade e um dos fundadores do Clube Drummoniano de Poesia de Petrolina – que, a essa altura, já havia

40 Radicado no Recife desde 1994, onde cursou o mestrado em Teoria da Literatura na Universidade Federal de Pernambuco

(UFPE), Apolinário tem se dedicado principalmente à docência e à pesquisa literária, atuando no momento como professor do curso de Letras da Universidade de Pernambuco (UPE), em Nazaré da Mata-PE (campus Mata Norte). Embora não tenha publicado outras obras após Hipótese do Humano, revela que ainda hoje dedica-se à criação literária, tendo escrito “um número considerável de poemas” desde então. Sua intenção, conforme revela em entrevista, é publicar três novos livrosde poesia após aposentar-se da função de professor universitário, que vem exercendo ininterruptamente nas últimas décadas.

sido extinto. Embora tenhamos omitido aqui o título da reportagem, nele, o seu nome aparecia acompanhado do aposto “uma vida com poesia”, evidenciando o lugar que a literatura teria ocupado no decorrer da sua existência. À parte o tom de despedida predominante no texto, a homenagem tinha sua razão de ser: embora não tivesse deixado uma obra extensa, no mesmo jornal Sampaio havia publicado parte considerável dos seus escritos, como é possível constatar por meio da leitura de exemplares anteriores de O Farol. Na “Coluna Drummoniana”, por exemplo, não era raro ver o seu nome acompanhado de textos em verso ou em prosa, a exemplo do poema “A Palavra”, publicado na edição de 2 de fevereiro de 1984:

A palavra que ontem foi escrita ou dita

não é a mesma de hoje? – Aguça teu sentimento,

perdoa a história e as variações. Foi uma questão de formas e costumes. A palavra de ontem fugiu,

escondeu-se nos alfarrábios, mas fica gritando nos velhos livros, brilha nos velhos pergaminhos.

A palavra voa do imo,

verte no pensamento, deborda-se na terra, fecunda as multidões,

cresce, canta, sobe e infinita-se. Verba volant! A palavra voa, sim, mas não se perde. Enunciada ou pensada ela atinge todos os acidentes e escarpa a imensidão

como espuma alvinitente na crista das ondas,

evola e se transforma no diamante da poesia,

brilhando para todos os tempos. (SAMPAIO, 1984a, p. 2.)

Nesses versos, o autor não somente deixa transparecer todo o seu fascínio pela palavra, como também nos revela alguns aspectos bastante recorrentes na sua dispersa obra poética. Escrito à semelhança de um monólogo dramático, o texto sugere uma concepção essencialmente mística da criação literária, numa espécie de ode à palavra e aos seus poderes

fantásticos. Para Sampaio, a poesia não apenas representava a mais pura e perfeita forma de expressão artística: seria também o espaço do segredo, do interdito e do silêncio, na confluência entre o tangível e o imponderável, o real e o simbólico. Dito de outro modo, é como se, em cada poema, houvesse uma centelha da “verdade universal”, a qual somente pode adquirir alguma feição por meio do trato cuidadoso do poeta com as palavras.

Apaixonado pela palavra em suas múltiplas manifestações (“escrita ou dita”; “enunciada ou pensada”), Sampaio era definitivamente um homem das letras, embora “sem títulos de cultura, sem anel vermelho ou cor de rosa no dedão”, como é apresentado no relato biográfico feito por Luis Wilson (1978, p. 847) em seu livro Roteiro de Velhos e Grandes

Sertanejos, publicado quando o poeta ainda era vivo.

Membro de uma família numerosa, que havia se instalado no interior da Bahia para fugir da seca no estado do Ceará, Sampaio concluiu formalmente apenas o ensino primário. Ao longo da sua infância, porém, viveu cercado por conversas literárias, pois boa parte da família tinha o hábito de reunir-se para ler poesia, romances e folhetins. Segundo relata, essa atmosfera encantava-o profundamente, despertando nele o interesse pela literatura; ainda garoto, começou a escrever os seus primeiros versos, que eram lidos e comentados pelos presentes com bastante entusiasmo.

Na adolescência, partiu para Porto Nacional (no atual Tocantins) e ingressou em um seminário católico, onde estudou latim, francês e filosofia. A falta de vocação para o sacerdócio, entretanto, motivou o seu retorno à cidade natal, onde se tornou professor de uma escola primária e passou a se dedicar mais à escrita poética. Sua chegada a Petrolina se daria somente em 1923, quando, acometido de malária, procurou refúgio na cidade ribeirinha para se tratar da doença. Desde então, decidiu fixar-se nela e a elegeu como sua “pátria de adoção” (SAMPAIO, 1984b, p. 2). Ao longo de sua trajetória, Sampaio fez parte de uma geração de escritores e intelectuais que marcou época na história do município – além de poeta, foi também jornalista, professor e tabelião, entre tantos outros ofícios que exerceu na cidade que passou a amar no decorrer dos anos.

Definido pelos amigos como “um típico homem à moda antiga” – um verdadeiro

gentleman, “cavalheiro por natureza e ao mesmo tempo muito seguro do que queria”, nas

palavras da amiga Elisabet Moreira (apud PEIXINHO &SOUZA, 2014, p. 100) –, Sampaio era também um amante das ideias e mostrava-se igualmente aberto ao novo. Tanto que, quando foi convidado por Apolinário a fundar o Clube Drummoniano de Poesia, logo abriria as portas da sua casa para acolher os “drummonianos” de primeira hora. Apesar de ser o mais velho do grupo – era o único octogenário, diga-se de passagem –, não pareceu hesitar um só

instante em aceitar a proposta do jovem amigo. Assim, a casa localizada na rua Marechal Deodoro, no centro da cidade, em breve se tornaria o principal ponto de encontro do grupo, que costumava se reunir mensalmente para discutir literatura e arte em geral, conforme a “ordem do dia”.

Como recorda Apolinário (2011, comunicação pessoal), a casa do velho poeta era um ambiente bastante propício para qualquer reunião literária. Curiosamente, na sala de estar havia uma grande mesa usada por Sampaio para guardar dezenas de livros dos mais diversos gêneros, da prosa à poesia. De autores brasileiros a estrangeiros, como Castro Alves, Cruz e Sousa, Luís de Camões, Fernando Pessoa, Baudelaire, Pedro Nava e o próprio Drummond – apenas para citar alguns dos seus preferidos –, era com eles que a sua mesa costumava aparecer posta, fato inusitado que atraía a atenção da maioria dos visitantes.

Com o poeta mineiro, no entanto, a sua relação foi um pouco além da presumida admiração literária. Como já dissemos em páginas anteriores, Sampaio e Drummond passaram a trocar cartas logo após a fundação do Clube (e até telefonemas, segundo relatos de parentes daquele), hábito que mantiveram até 1987, ano da morte do segundo. Dessa aproximação, foi surgindo uma afetuosa relação de amizade, talvez devido à pequena diferença de idades entre eles, já que Sampaio era apenas cinco anos mais velho que Drummond: além da boa experiência proporcionada pelos muitos anos vividos, ambos tinham em comum a paixão pela literatura. Em uma carta de 13 de novembro de 1982, Drummond assim escreve ao amigo de Petrolina:

Meu caro José Raulino:

Agora me sinto mais perto de você, pois ingressei na Ordem dos Oitentões, e posso sentir melhor, mesmo à distância, o prazer da sua companhia. Obrigado, companheiro, pela força que você me dá com a sua amizade e o seu exemplo de constante atividade intelectual. [...] Deixo aqui o melhor abraço para o querido amigo de tão pura e comovedora afetividade. Gratíssimo, o coração do

Carlos Drummond. Ao que parece, a relação de Sampaio com a literatura – e, mais especificamente, com a poesia – envolvia um misto de estranhamento e devoção. Esse sentimento, aliás, aparece nitidamente representado em diversos dos seus escritos, tal como sugere no poema “Fecundação”41

, publicado na primeira edição da Revista do Clube Drummoniano de Poesia

41

Quase dez anos depois, durante o concurso Destaques Poéticos Brasileiros 1987, promovido pela Realce Editora na cidade de Bauru (SP), “Fecundação” obteve a preferência dos jurados e conquistou o primeiro lugar entre mais de nove mil

trabalhos poéticos de todo o país. Em uma entrevista concedida à rádio petrolinense Emissora Rural, em 2 de julho de

(Drummoniana 1):

Segura o poema na aurora do seu nascer

quando ele vier das fontes vivas dos teus sentimentos, das tuas impressões

ou dos teus sonhos.

Segura o poema, avaramente, ao crepitar da primeira labareda, que nasce do atrito mental

em plena função criogênica

para a forma orgânica dos caracteres.

Segura o poema na concha das tuas mãos banhadas na pureza sacramental da lírica

e toma-o como uma prece na taça sedenta e cristalina do pensamento vivo e silente e verte-o no teu sangue

e em teus nervos,

s i l e n c i o s a m e n t e.

E silenciosamente deixa-o gravar-se na tela psicosensorial do Eco. Segura o poema com as cores

e os sons todos da fantasia enquanto eles bailem

nas areias do castelo encantado.

Segura o poema piano do aroma e do mistério com que ele sai da retorta circunvolar

da mente

ou enquanto esvoaça

na redoma sagrada do sonho. Segura o poema na essência deífica

ou na virgindade virtual

como um novo Paracelso; mas, destina-o qual oferenda ao mundo

na ânfora da palavra imortal.

poemas, é um galardão. É um prêmio extraordinário, para um esforço, para um trabalho que a gente teve na mente, que às vezes vem muito espontaneamente também, sem qualquer discurso. Foi como aconteceu com o meu poema Fecundação, que foi escrito em pouco mais de quinze minutos. Foi num momento em que eu estava sentindo qualquer coisa, que estava além dos meus conhecimentos, estava além do meu curso. E que, por felicidade, saiu alguma coisa que agradou a alguém, principalmente aos diretores do concurso de Bauru, em São Paulo. Situação em que me acho um tanto comovido e muito agradecido a todos…” (PEIXINHO & SOUZA, 2014, p. 35.)

Segura o poema, – essa voz da tua vida – no branco escrínio

da celulose impressa, marmórea e eterna,

para a unção da leitura consagradora, como ele foi te gritado

por vozes do Infinito após o eco colorido

nas muralhas irisadas do estro. Segura-o. Segura-o para sempre na forma mais ampla, multicolorida

epoliforme do verbo universal, da pluralidade das vozes que vieram do Éden. (SAMPAIO, 1979, p. 17-18.)

Como numa espécie de invocação, o poema inicia-se com a seguinte dedicatória: “Anseio captar, além da fantasia e da verdade universal, a alma das lições de Maiakovski”. Aqui, a referência ao poeta russo Vladimir Maiakóvski, conhecido por sua concepção ao mesmo tempo abstrata e revolucionária da arte – “sem forma revolucionária não há arte revolucionária” (MAIAKÓVSKI apud NAPOLITANO, 2011, p. 43) –, sinaliza claramente uma aproximação de Sampaio com as inovações estéticas e literárias que se espraiaram ao longo do século XX – ainda que seja uma recepção tardia, considerando que o poema foi escrito e publicado em 1979.

Assim, não é irrelevante dizermos que “Fecundação” aparece logo após o seu conhecido “Poema de Pedra” na mesma edição da revista, não obstante a distância temporal de meio século que havia entre um e outro. Apesar das evidentes diferenças – enquanto “Fecundação” é sobretudo alegórico, o “Poema de Pedra” é essencialmente contemplativo e mais parece uma ode à Catedral de Petrolina42 –, o tom solene é praticamente o mesmo nos dois textos, que compartilham ainda a estrutura de monólogo dramático e certos recursos estilísticos (uso de anáforas, versos brancos e irregulares etc.). Em Sampaio, cosmopolitismo e provincianismo parecem conviver lado a lado sem maiores atritos; daí, portanto, a sua tentativa constante de buscar o novo sem, todavia, jamais romper definitivamente com as manifestações telúricas tão frequentes na poética ribeirinha.

Voltemos agora a nossa atenção para o primeiro poema. À semelhança de uma revelação contida nos evangelhos cristãos, em “Fecundação”, Sampaio nos apresenta o seu testemunho particular da criação poética. Tal como um alquimista em busca da pedra filosofal

42

Conforme registramos anteriormente (ver seção 2.3), “O Poema de Pedra” foi escrito e publicado originalmente em 1929 no jornal O Farol, marcando a inauguração da Catedral de Petrolina.

(“como um novo Paracelso”), o poeta é aquele que segue à procura da “verdade universal”; para ele, a poesia seria a única forma possível de transcender a realidade sensível e imediata, superando as limitações dos sentidos humanos.

Nesse sentido, o poema apresenta-se como uma força viva e amorfa que emerge das profundezas da subjetividade humana para, então, adquirir forma e concretude. Sentimentos, impressões e sonhos são as matérias-primas que o poeta utiliza para dar vida ao poema, mas é necessário um esforço criativo ou “atrito mental” para que ele se configure “ao crepitar da primeira labareda”. No entanto, à semelhança do que sugere o poeta simbolista Cruz e Sousa, em “Cavador do Infinito”, aquele que se arrisca em busca do imponderável corre sempre o risco de perder-se ainda mais: “E quanto mais pelo Infinito cava / Mais o Infinito se transforma em lava / E o cavador se perde nas distâncias…” (SOUSA, 2008, p. 554.)

Não por acaso, as nove estrofes do poema iniciam-se sempre com o mesmo verbo em sua forma imperativa (“Segura o poema”; “Segura-o”), lembrando ao interlocutor “iniciado” que é preciso cautela ao lidar com essa força viva que é a essência da poesia. Esta, por sua vez, equivale a uma substância vital que anima o próprio ser, tal como o sangue que lhe corre nas veias; em outras palavras, poesia e ser são feitos da mesma matéria e por isso compartilham a mesma “essência deífica”.

O poema, portanto, é como uma espécie de segredo sagrado que é revelado “silenciosamente” ao poeta “por vozes do Infinito”. Aparentemente, são as mesmas vozes misteriosas que “vieram do Éden” e ordenaram a criação do primeiro homem e da primeira mulher, tal como no livro bíblico do Gênesis: “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (BÍBLIA, 2007, p. 13). A referência explícita a essa cena bíblica, na última estrofe do poema, é bastante reveladora do que julgamos ser o motivo central utilizado pelo poeta para escrever “Fecundação”: se a principal criação divina é o ser humano, feito à imagem e semelhança de Deus, a poesia é certamente a mais bela e original das criações humanas, verdadeira expressão do “verbo universal” – uma espécie de teogonia em que o princípio criador é representado pela própria linguagem.43

Desejo de transcendência, misticismo, associações sinestésicas e sugestões oníricas são elementos bastante recorrentes na poesia de Sampaio, mas em “Fecundação” tais características tornam-se ainda mais evidentes. Nele, nota-se a presença de um acentuado simbolismo e dualismo – características que o crítico espanhol Luis Beltrán Almería (2008, p. 98, tradução nossa) aponta, em uma de suas reflexões sobre a modernidade estética, como

43 A mesma aura de misticismo, evocada por essa cena bíblica, também pode ser notada nos seguintes versos (já citados

anteriormente em 3.5) do poema “Drummondiando”, escrito por Aloísio Reis Brandão: “[...] e a poesia se fez letras e habitou em Drummond / e Drummond se fez verbo e poesia e habitou entre nós...” (BRANDÃO, 1979, p. 24).

típicas do hermetismo, definindo-o como uma estética que “compreende o cosmo como o cenário de uma grande luta entre o princípio do Bem e o princípio do Mal”. Segundo Beltrán Almería (2008, p. 98, grifos do autor), “o hermetismo é, em primeiro lugar, uma estética

didática radical, com seus aspectos doutrinários, naturalmente, mas que não se pode reduzir a

eles”. Em Sampaio, a estética não raro assume claramente uma dimensão ética que opera nesse sentido; desse modo, a sua poética é frequentemente marcada por uma certa religiosidade impregnada de moral cristã – decerto, devido à sua vinculação com o catolicismo.

Esse breve comentário do poema nos sugere a conexão com o hermetismo não somente devido à sua acentuada conotação simbólica, mas principalmente por seu efeito estético e sentido doutrinário (ético). Conforme ressalta, ainda, Beltrán Almería (2008), se o hermetismo moderno é sobretudo estético, é certo que ele reúne tanto características clássicas como aspectos modernos. A simbologia moderna, porém, tende a desfigurar os símbolos clássicos, de modo que um mesmo símbolo possa mudar de significado dentro da mesma obra, rompendo completamente com o convencionalismo daqueles.

Desse modo, sua poesia frequentemente assume uma aura de encantamento e mistério, por vezes voltando-se para si mesma duplamente refletida e refratada pelas lentes do poeta. Além disso, como é frequente no modo lírico, as questões relacionadas ao sentido da existência e do próprio “eu” também se fazem presente de modo sintomático em sua obra, construída a partir de um memorialismo que busca nas evocações da infância algum conforto para as angústias e inquietações típicas da vida adulta (ou mesmo do envelhecer).

Nessa empreitada, sua poesia pode ser considerada como uma tentativa constante – porém quase sempre frustrada – de capturar a essência de um “eu” fragmentado que, não raro, olha “desconfiado o espelho”, pois “a superfície polida só mostra aflição”. Em “Frente ao Espelho”, do qual extraímos apenas as duas primeiras estrofes para uma breve leitura, a imagem que o vidro polido lhe oferece não é mais que uma sombra evanescente, revelando um ser que, embora semelhante a ele, é na verdade “um outro” (tal como decretara Rimbaud em sua Carta do Vidente, ao escrever “je est un autre”):

Olho desconfiado o espelho.

Uma sombra perpassa leve e fugidia no fundo falso do vidro polido. Encaro-o um tanto desanimado e não sou eu a imagem angustiada que surgiu lá na dimensão da luz. Não sou eu que olha o espelho mas aquele que nasce das conjunturas

humanas e dos sentimentos bons visto de esguelho.

A superfície polida só mostra aflição e eu sei que lá atrás acima do mal há muita doçura e amor e ternura no outro indivíduo cujo rosto se oculta e se confunda em outra criatura. Quantos eus se guardam dentro de mim não sei. Sei que amo, anseio, perdoo, acato, afago, respeito, temo,

e não sou feio por dentro como se mostra o meu retrato. [...]

(SAMPAIO, 1986, p. 51.)

A própria forma do poema, com seus versos propositalmente desalinhados da margem lateral da página (artifício utilizado por Sampaio também em outros poemas), reforça esse alheamento que emerge do “eu” para retornar no plano espacial, distanciamento necessário para um indivíduo que hesita em contemplar a própria imagem refletida/refratada na superfície ambígua do espelho. Este, na medida em que revela algo que o sujeito normalmente não pode ver, sua imagem sob o ponto de vista de quem o observa, esconde uma outra dimensão “no fundo falso do vidro polido”, que não passa de uma simples ilusão provocada pela natureza peculiar da luz. Por outro lado, se não fosse a existência dela, de que modo ele poderia enxergar a sua face humana sem experimentar semelhante angústia e desconfiança?

Em seguida, o poeta confessa não saber quantos “eus” cabem dentro dele. Contudo, sabe que todos os seus sentimentos, bons ou ruins, são uma consequência inevitável da própria natureza humana – por isso a sequência de verbos no modo indicativo presentes na terceira estrofe (“amo, anseio, perdoo” etc.). Dividido entre a culpa e a redenção, o seu olhar perscruta a superfície especular em busca de respostas que, todavia, não lhe são dadas, assinalando o seu sentimento de desamparo diante da efemeridade da existência. Ao encarar a imagem do espelho, o que se mostra aos seus olhos não é apenas um retrato de si, mas, sobretudo, a “aflição” experimentada ao confrontar-se com um “outro” paradoxalmente tão familiar e desconhecido – ele mesmo.

A metáfora do espelho, pois, é utilizada como uma possibilidade de autoconhecimento