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A legislação edilícia em Campinas: pelo aformoseamento da cidade

1 De construtores anônimos a arquitetos licenciados: o estabelecimento de um campo de pesquisa

2 A produção dos anônimos: dimensões materiais de suas obras no panorama campineiro da construção civil

2.1 O código de Posturas de 1880 e as primeiras iniciativas de aformoseamento

2.1.1. A legislação edilícia em Campinas: pelo aformoseamento da cidade

Até o início da década de oitenta do século XIX Campinas ainda esteve sujeita a uma concepção geometrizada e ortogonal de seu espaço urbano (Fig. 10), porém, a partir de então, com a expansão da cidade em ritmo diferenciado, o reconhecimento de suas novas funcionalidades e a imperiosa fluidez delas decorrente, foi necessário impor ao tecido retificado e a suas construções novas e significativas alterações. Nas palavras de José Roberto do Amaral Lapa, em clássico estudo que retrata Campinas durante a passagem do século XIX para o XX,35 essas mudanças eram

[...] agora tendentes a uma plasticidade que foge da rigidez do tecido grelhado, buscando formas perimetrais, canais de circulação, praças amplas e com objetivos definidos, respeitando e acariciando a topografia acidentada, ditados por uma visão moderna do viver urbano em Campinas, que se inicia na década de 70 e se explicita de maneira mais intensa [...] na passagem do século. Assim, o novo regime político parece de alguma maneira influir com o seu imaginário de modernização urbana (Lapa, 1996, p. 47).

Os Códigos de Posturas promulgados em Campinas na segunda metade do século XIX36 constituem-se como fontes primárias de importância basilar para a investigação de tais mudanças, seja no tocante à história da cidade, de modo mais abrangente, ou à história do urbanismo e, ainda, da arquitetura. Tratava-se de instrumentos reguladores da vida urbana, que normatizavam a ordem pública a ser cumprida pelos munícipes, e cuja característica fundamental era a diversidade dos temas abordados: de edificações, saúde

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Há vários outros autores cujas obras relacionam-se à história de Campinas, com destaque para Brito (1956-1969), Mariano (1970) e Pupo (1969; 1983). Após termo-nos debruçado sobre esses e outros mais, no entanto, verificamos que grande parte da bibliografia sobre Campinas caracteriza-se por certo tom memorialista, voltando-se a episódios, personagens ou famílias de renome na cidade. Optamos, assim, por adotar as considerações do historiador José Roberto do Amaral Lapa, mais adequadas aos objetivos desse trabalho.

36 São os Códigos de Posturas, respectivamente, dos anos de: 1858, 1864, 1866, 1880. Encontram-se dispersos nos manuscritos dos Livros de correspondencias, pertencentes ao Arquivo da Câmara Municipal de Campinas.

49 pública e higiene à regulamentação dos jogos de azar; do fabrico e uso de materiais inflamáveis ao procedimento para funerais.

Fig. 10 – Planta da cidade de Campinas em 1878. Notar a ortogonalidade do traçado e também a equidade na largura das ruas, denotando que não havia, ainda, a preocupação com o escalonamento do sistema viário. A hipótese de Lapa (1996, p. 55) para os códigos é que estes foram sempre efetivados em momentos em que “supostamente a mudança e a evolução da

sociedade exigiam respostas, alterações, correções e novas formas do viver na cidade”. Sua

50 promulgação dos códigos e o fato de que, não raro, cada um deles apenas repetia e legitimava a maior parte das regras anteriormente estabelecidas, modificando-as ou criando novas normas apenas para a demanda específica que lhe justificava uma nova publicação, revelando estreita ligação entre essa legislação e a dinâmica urbana, os modos e costumes dos moradores de Campinas.

Nesse sentido, o Código de Posturas de 1880 nos interessa em especial pois explicita, pela primeira vez, a atenção à estética da cidade. Anteriormente essas preocupações também podiam ser encontradas, ainda que incipientemente,37 mas agora ocupam o primeiro título do código: “Edificação e aformoseamento”.

Os primeiros artigos tratam das vias da cidade e permeia-se em seu conteúdo a intenção de alterar a aparência notada na Fig. 10. O código aumenta para quinze metros a largura mínima para a abertura de novas ruas, travessas ou avenidas – termo que aparece pela primeira vez na legislação urbanística campineira, denotando já um outro entendimento de sistema viário. O título também autoriza pela primeira vez modificações no reticulado original, pois, apesar de determinar o alinhamento das vias “com

toda regularidade”, e que praças e largos fossem quadrados, abre a exceção

para, “por necessidade ou por aformoseamento”, alterar essa forma (Art. 1º).

Em vigor até 1895 – quando foi promulgada a Lei nº. 43 de 27 de agosto de 1895, que o alterou –, o Código de Posturas de 1880 apontava com riqueza de detalhes as tipologias arquitetônicas pretendidas para Campinas e regulamentava, inclusive, os espaços ainda não construídos, estipulando a obrigatoriedade de se fechar terrenos com muros de tijolos, pedra ou qualquer outro material aceito nas “construções modernas” (Art. 6º, § 1º). Como se depreende, taipa e pau-a-pique não eram mais bem-vindos.

Especificamente em relação às edificações, o código em princípio autorizava que fossem feitas “de acordo com o gosto e a arquitetura das construções

37 Como, por exemplo, na determinação da altura das casas e das medidas de vãos no Código de Posturas de 1858.

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modernas” (Art. 8º), no entanto, não deixava de discriminar quais eram as

prescrições a serem seguidas para tal. A altura mínima dos imóveis foi estabelecida em: 5,00 m para o primeiro térreo; 4,40 m para o pavimento superior e; 3,60 m para os demais pavimentos. As posturas anteriores, de 1858 e 1865, nas quais se encontram artigos com normas semelhantes, além de apresentarem medidas inferiores a estas – 20 palmos ou 4,40 m para o térreo e 36 palmos ou 7,92 m para os sobrados38 – não regulamentavam construções de mais de dois andares. Conforme apontamos anteriormente, os códigos de posturas eram comumente efetivados em resposta a uma situação já colocada na prática, fato que nos faz inferir, então, que já havia em curso, em 1880, um processo de verticalização da cidade.

Outra informação relevante a se trazer consiste no fato de que todas essas medidas de altura foram estabelecidas, no Código de Posturas de 1880, do nível da rua até o forro do beiral do telhado ou até o começo da platibanda. Apesar de ainda permitidas, as restrições feitas às beiras – que não podiam exceder a um décimo da altura das casas – deixam entrever certa predileção pelo segundo tipo de sistema de cobertura. Assim como a taipa e o pau-a- pique, os extensos telhados, que jogavam para longe da alvenaria as águas pluviais, tão característicos da arquitetura colonial paulista, também não eram mais socialmente aceitos. Aliás, também se tornou obrigatório a partir de então o uso de calhas para receber essas águas pluviais e de encanamentos para levá-las além do calçamento, ao nível do chão.

Embora não seja possível apresentar aqui exemplos, visto que são raros os requerimentos de licença para construir anteriores aos anos 1890 existentes no acervo do Arquivo Municipal de Campinas, há ainda outros aspectos do código que são elucidativos dessa tentativa de padronização estética. As aberturas, por exemplo, também têm suas medidas mínimas estipuladas: 2,25m de altura por 1,25m de largura para as portas e 1,40m de altura por 1,20m de largura para as janelas. Outros elementos comuns na arquitetura colonial, como rótulas, postigos ou balcões voltados para o exterior também foram proibidos, evitando qualquer saliência para a rua, já que

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52 havia ainda a obrigatoriedade de se construir no alinhamento dos lotes.39 Para os pavimentos superiores, ficavam autorizados sacadas e peitoris das janelas, feitos “de ferro, mármore ou de qualquer outro metal ou pedra estimados nas

construções modernas, mas nunca de rótulas ou grades de madeira” (Art. 8º, § 4º).

Até mesmo a pintura das edificações foi contemplada pelas normas, que estabeleceram a obrigatoriedade de se pintar ou caiar casas e muros a cada dois ou quatro anos, no caso de, respectivamente, pintura à cal ou pintura a óleo. A única exceção se daria no caso de construções cujas frentes fossem construídas “de mármore, cantaria, tijolos ou qualquer outro material adotado nas

construções modernas” que dispensasse pintura.

Como se vê, o termo construções modernas é recorrente em vários pontos do Código de Posturas de 1880. No entanto, uma situação enfrentada por Campinas no final da década, acabaria por mostrar que essa modernidade era, enfim, mais almejada que propriamente alcançada. Isso porque o desenvolvimento da cidade sofreria uma abrupta ruptura quando em 1889 configurou-se na cidade uma grave epidemia de febre amarela que perdurou até 1897. A crise urbana decorrente, mais do que um problema de saúde pública, apresentou a doença como um problema econômico e de profundas raízes sociais. Ocorrendo durante a transição da monarquia para a república e praticamente um ano após a abolição da escravatura, a febre amarela acometeria Campinas durante o maior fluxo migratório de trabalhadores livres europeus. Sucedeu-se, assim, a uma crise de preços e de mão-de-obra para o café.

O resultado dessa primeira grande crise urbana fez-se sentir uma vez mais no reordenamento da organização e ocupação do espaço, da disciplina da circulação, em novas orientações arquitetônicas e até mesmo nos comportamentos:

[...] as epidemias de febre amarela que se abateram sobre a cidade a partir de 1889 e por toda a década de 90, ou, mais precisamente, em 1890, 1892, 1896 e 1897, serão decisivas, não

39 Pelo Código de Posturas de 1880, nenhum edifício poderia ser construído fora do alinhamento das ruas, exceto dentro dos terrenos murados. Acreditamos que, para esse período, a exceção se refira às chácaras, situadas além do perímetro urbano.

53 apenas para interromper o seu processo de modernização como dar em resultado políticas públicas de saneamento, higiene e saúde pública, com mudanças permanentes na vida urbana, que afetarão toda a população e implicarão decisivas intervenções cirúrgicas na estrutura e morfologia de Campinas (LAPA, 1996: 259).

A sequência dos surtos desencadeou um processo de reestruturação urbana de Campinas, no qual comparece, através de políticas públicas voltadas para a saúde, um novo parceiro a investir na recuperação da cidade: o Estado. Essa recuperação acarretou uma modificação da paisagem, com a movimentação de terra, a retificação de córregos que costumavam transbordar, a arborização das ruas, a abertura de valas para assentamento de redes de água e esgoto, a drenagem de pântanos e o calçamento de ruas. Lapa (1996) destaca que foi em termos de rede hídrica – retificação, drenagem e canalização – que se constituiu um projeto cuja exequibilidade, racionalidade técnica e econômica e alcance social exigem especial atenção à sua significação para a modernização da cidade no que se refere ao seu melhoramento, expansão, imagem e estética.

Saturnino de Brito, chefe do distrito de Campinas na Comissão Sanitária do Estado, projeta, em 1896, obras de saneamento que incluíam drenagem, reforços na captação de água, formação de novas represas, instalação de caixa de decantação e um complexo de canais de drenagem a céu aberto em cujas margens previa avenidas arborizadas.40 Além de representarem significativo avanço sanitário para o município, as intervenções mudaram sua fisionomia, viabilizando a notável expansão que se seguiu, conferindo- lhe uma imagem de higiene, amplidão de espaços e beleza urbana. Pode-se dizer que o projeto do engenheiro Saturnino de Brito, guardadas as especificidades da cidade – os estragos causados pela febre amarela e os esforços em conter e prevenir as epidemias –, estava inserido em um quadro maior, em termos nacionais, que o regime republicano empreendia, alterando as formas urbanas que herdara do Império. Nas palavras de Lapa:

É a identificação da cidade burguesa e o seu melhor aproveitamento e preparo para o futuro. Agora, não mais uma cidade de senhores e escravos, mas de patrões e empregados,

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54 que precisavam todos, dentro dos princípios da nova ordem, educar os seus sentidos e exercitar-se para o uso das novas formas de convívio social e doméstico que a cidade passa a oferecer-lhes. À pessoalidade que ainda vigorava, vinda da Campinas colonial e senhorial, sucedia agora a impessoalidade das relações sociais numa aglomeração urbana que se ampliava e diversificava (Lapa, 1996, p. 48).

A lei que veio substituir o Título 1º – “Edificação e aformoseamento” – do Código de Posturas de 1880, promulgada no mesmo período em que Saturnino projeta seu plano de melhoramentos para a cidade, também reflete a nova situação colocada. De início, há que se considerar que a publicação individual – e não mais como parte do conteúdo generalista das posturas – de legislação especificamente voltada à questão da construção civil já é por si só um dado a se apreciar.

A Lei nº. 43, publicada em 27 de agosto de 1895, contava apenas com sete enxutos artigos, visto que já previa que fosse expedido pelo Poder Executivo Municipal um regulamento que estabelecesse “as condições de

higiene, de solidez e aspecto” e que consolidasse, “de acordo com as exigências modernas arquitetônicas”, as disposições “aproveitáveis e convenientes” do código de

1880 (Art. 6º). Ainda assim, já deixava entrever, no único artigo que adiantava algumas especificações, o tom das preocupações então em voga, estipulando a obrigatoriedade de dotar as construções de uma área que pudesse “fornecer luz e ar aos prédios” (Art. 6º).

A garantia da salubridade das edificações era um objetivo a ser perseguido, mas isso não significou, de modo algum, a inexistência de disposições de ordem estética, como veremos a seguir.

2.1.2. O regulamento da Lei nº. 43: um novo padrão de