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5.5 Apropriação da terminologia na legislação

5.5.2 A legislação no Brasil

A legislação presente, coerente com os pressupostos do modelo social de deficiência, atualiza a nomenclatura do Regimento Interno do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE), seguindo a Resolução nº 01, de 15 de outubro de 2010, do CONADE, que altera dispositivos da Resolução nº 35, de 06 de julho de 2005, e afirma que o termo adequado a ser utilizado no Brasil atualmente é “pessoa com deficiência”: “I - Onde se lê ‘Pessoas Portadoras de Deficiência’, leia-se ‘Pessoas com Deficiência’” (BRASIL, 2010, p. 1). Conforme Carvalho-Freitas et al. (2018), a

utilização da nomenclatura “pessoas com deficiência” se deve, entre outras razões, ao uso corrente desse termo pelos organismos internacionais (UNESCO, 1994b; UN, 2006; WHO, 2011), à luta histórica das pessoas com deficiência no Brasil, à adoção do termo pelas políticas públicas e às pesquisas de uma forma geral. Barbosa Júnior (2018) ressalta que o termo “Pessoas com Deficiência” foi usado pela primeira vez em um documento da American Association on Intelectual and Developmental Disabilities (AAIDD) em 1992.

Essa terminologia “pessoa com deficiência” tornou-se objeto de lei pelo Decreto n° 6.949, de 25 de agosto de 2009 (BRASIL, 2009), como ratificação, no Brasil, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, publicada pela ONU em 2006. O título dessa Convenção, em inglês, é Convention on the Rights of Persons with

Disabilities (CRPD) (UN, 2006). Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas

Educacionais Anísio Teixeira (INEP) (2016), o Brasil passa a empregar as terminologias utilizadas nesse documento. Importa destacar que o documento “A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência comentada” (BRASIL, 2008b) afirma:

É importante salientar que não devemos colocar a deficiência dentro de uma concepção puramente médica, ficando associada exclusivamente à doença. Se bem que a deficiência possa ser causada por uma doença, ela não se caracteriza como doença, não devendo, portanto, ser confundida com uma das causas que a podem gerar, e que não a constitui de fato. Muito mais atual e dinâmica é a compreensão da deficiência como parte da área de desenvolvimento social e de direitos humanos, conferindo-lhe uma dimensão mais personalizada e social. (BRASIL, 2008b, p. 28).

Esse documento possui influência do modelo social, tendo como pressuposto a concepção da deficiência como um aspecto social. Compreender a deficiência como um aspecto de direitos humanos permite que políticas públicas sejam elaboradas para ampliar a inclusão das pessoas com deficiência.

A Lei n.13146/15, denominada Lei Brasileira da Inclusão (LBI), também teve como base a Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, defendendo o lema “Nada sobre nós sem nós”. Este lema, influenciado pelos estudos sobre deficiência e pelo modelo social, é a tradução do slogan adotado pelos precursores:

nothing about us without us (BARTON, 2005). A LBI endossa esse lema, o que pode ser

visto em Brasil (2015, p. 8). Da mesma forma, segundo Kayess e French (2008), a formulação dessa Convenção foi estruturada a partir de uma negociação entre agentes governamentais e não-governamentais, partindo desse mesmo princípio.

A Lei Brasileira de Inclusão (BRASIL, 2015) abarca a diversidade humana e busca favorecer a autonomia das pessoas com deficiência na solicitação de mudanças e alterações no projeto, permitindo que tenham voz e autonomia:

Sob o lema ‘Nada sobre nós sem nós’, o projeto foi disponibilizado de forma a contemplar toda a diversidade humana. No portal e-democracia, o texto foi publicado em uma plataforma acessível para que pessoas com deficiência visual, com autonomia, pudessem sugerir modificações e fazer alterações diretas à redação do texto. (BRASIL, 2015, p. 8, negrito nosso).

Figura 2 - Trajetória da Lei Brasileira de Inclusão - LBI. Fonte: (BRASIL, 2015).

A Figura 2, retirada do documento (BRASIL, 2015) apresenta como o conteúdo da Lei de Inclusão foi pensado e, como ocorreu essa trajetória da Lei. Como pode ser observado na Figura 2, a trajetória da LBI levou 15 anos, entre a sua apresentação pelo então deputado Paulo Paim, em 2000, até sua sanção pela presidente Dilma Rousseff, em 2015. Em 2013, o texto foi colocado para consulta pública, de modo que entre 2013 e 2014 audiências públicas foram realizadas em diversas regiões do Brasil para recolher sugestões de qualquer cidadão. Esse texto foi publicado em uma plataforma acessível para pessoas com baixa acuidade visual. Além disso, o projeto foi convertido em vídeo com

tradução em Libras, permitindo que a população surda também participasse formulação dessa lei. Esse cuidado no envolvimento da população com deficiência reforça a tese de que a LBI procurou seguir o lema “Nada sobre nós sem nós”.

No Brasil, esse slogan também tem sido reconhecido como norte dos marcos legais (FONSECA, 2012). Mas, apesar dessa influência de ideias, no Estatuto da Lei Brasileira de Inclusão (BRASIL, 2015) o termo adotado é o que se encontra no Art. 2º da LBI:

Pessoa com deficiência: É aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (BRASIL, 2015, p. 14, negrito nosso).

Nesse fragmento, a definição da deficiência é vista pela legislação brasileira como uma interação entre os aspectos biológicos, que, por definição, geram restrição social, ou seja, a interação entre o impairment e as barreiras. Essa visão é diferente da dos precursores, que enfoca o social, que desabilita e gera desvantagem. Eles acreditam que, por meio de uma sociedade que promove a adaptação, não existe disability (deficiência), fazendo, desse modo, que lesão (impairment) não seja associado diretamente à desabilitação para algo (UPIAS, 1976; OLIVER, 1996b; BARTON, 2001; OLIVER; BARNES, 2012b).

Na Lei Brasileira da Inclusão (BRASIL, 2015), percebe-se que a tradução, a partir do original do Convention on the Rights of Persons with Disabilities (UN, 2006) – “Persons with disabilities include those who have long-term physical, mental, intellectual or sensory impairments” –, optou por impedimento.31 É evidente, contudo, a maior clareza com que a UPIAS (1976), conforme exposto na Introdução (Seção 1), que traduz

impairment como algum aspecto do corpo que esteja em mal funcionamento, ao invés de

ser traduzido como impedimento. Essa situação somente será uma deficiência ou causará algum impedimento se a sociedade não proporcionar condições adequadas para a inclusão dessa pessoa.

No tocante ao modelo social, o termo impairment, utilizado pelos precursores para referir-se a uma lesão (termo pouco utilizado nas pesquisas brasileiras), tem recebido

31 Trecho da LBI: “Pessoa com deficiência: É aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza

física, mental, intelectual ou sensorial, o qual em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” (BRASIL, 2015, grifo nosso)

sentidos diferentes em traduções de algumas pesquisas brasileiras, como deficiência. Ainda mais merecedor de reflexão é o fato de essa tradução ocorrer em documentos promovidos pelo governo federal, como em “Declaração de Salamanca: recomendações para a construção de uma escola inclusiva”, organizado pelo Ministério da Educação:

A situação com relação às necessidades educacionais especiais varia muito de país para país. Há países, por exemplo, em que há boas escolas especiais para alunos com deficiências específicas. Essas escolas especiais podem representar um valioso recurso para o desenvolvimento de escolas integradoras. Os profissionais destas instituições especiais possuem nível de conhecimento necessário para a pronta identificação de crianças com deficiências. (ARANHA, 2003, p. 22, negrito nosso).

No mesmo trecho, a versão oficial em inglês da Declaração de Salamanca traz: The situation regarding special needs education varies enormously from one country to another. There are, for example countries that have well established systems of special schools for those with specific impairments. Such special schools can rep resent a valuable resource for the development of inclusive schools. The staff of these special institutions possess the expertise needed for early screening and identification of children with disabilities. (UNESCO, 1994b, p. 12, negrito nosso).

Fica evidente a confusão causada pela tradução de impairment como deficiência. A preocupação com a tradução e interpretação da Declaração da Salamanca já foi investigada por Breitenbach et al. (2016), que analisaram os conceitos de educação inclusiva e educação especial. No tocante à tradução de impairment e sua relação com os estudos sobre deficiência, não foi encontrado outro trabalho que tenha feito esse tipo de reflexão. O cuidado com a tradução é expresso por Breitenbach et al. (2016):

As alterações aparentemente despretensiosas na Declaração de Salamanca e a miscelânea de conceitos e definições sobre as pessoas denominadas público- alvo da educação inclusiva e da Educação Especial podem ter causado confusões conceituais e, certamente, conduzido o rumo da história das políticas e pesquisas sobre essas temáticas no Brasil. (BREITENBACH; HONNEF; COSTAS, 2016, p. 359).

Outra tradução da Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994a), também citada por autores na área educacional, apresenta tradução idêntica à apresentada por Aranha (2003), ou seja, traduzem impairment como impedimento. Entretanto, em um documento presente no Portal do Ministério da Educação32, tido como uma tradução posterior a 1994, o mesmo texto é trazido da seguinte forma:

32 Uma tradução presente na página da Câmara dos Deputados também apresenta essa tradução como

A situação com respeito à educação especial varia enormemente de um país a outro. Existem por exemplo, países que possuem sistemas de escolas especiais fortemente estabelecidos para aqueles que possuam impedimentos específicos. Tais escolas especais podem representar um valioso recurso para o desenvolvimento de escolas inclusivas. Os profissionais destas instituições especiais possuem nível de conhecimento necessário à identificação precoce de crianças portadoras de deficiências. (UNESCO, 1994c, p. 5, negrito nosso).

Embora esteja fora do escopo deste trabalho, é relevante analisar, em trabalhos futuros, o impacto dessa opção tradutória da Declaração de Salamanca. Não se sabe se foi uma opção deliberada, seguindo um princípio, como, por exemplo, uma influência das ideias do modelo individual, ou se trata apenas de um equívoco de tradução. A forma como o impairment está colocado nas principais traduções da Declaração de Salamanca pode levar pesquisadores, educadores e pessoas em geral a compreenderem o fenômeno da deficiência de um modo diferente daquele expresso na versão original em inglês.