• Nenhum resultado encontrado

A Lei Brasileira de Inclusão, alterações no Código Civil e reflexos no

4 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA

4.2 A Lei Brasileira de Inclusão, alterações no Código Civil e reflexos no

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, abordada anteriormente, traz, em seu art. 12, dispositivo que trata da "capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida" no que se refere à pessoa com deficiência, bem como:

4. Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa.

5. Os Estados Partes, sujeitos ao disposto neste Artigo, tomarão todas as medidas apropriadas e efetivas para assegurar às pessoas com deficiência o igual direito de possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e assegurarão que as pessoas com deficiência não sejam arbitrariamente destituídas de seus bens.

Esse artigo serviu de grande influência para a proposição disposta no Estatuto da Pessoa com Deficiência que altera o regime de capacidades previsto nso arts. 3º e 4º do Código Civil. Este estabelecia anteriormente que eram considerados absolutamente incapazes os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para a prática desses atos, os que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir sua vontade e os menores de dezesseis anos. Com a alteração, considera-se absolutamente incapaz apenas os menores de dezesseis anos. Modificou-se ainda o que se diz dos relativamente incapazes, retirando desse conceito os que por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido e os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo. Por sua vez, incluiu entre os relativamente incapazes aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. Essas alterações desvinculam a ideia de deficiência, seja ela mental ou intelectual, da concepção de incapacidade, considerando-se agora a impossibilidade de manifestação da vontade.

Ressalta-se que, antes dessa modificação, Código Civil e Código Penal convergiam para o mesmo entendimento, isto é, que o inimputável ou incapaz, no Direito Civil, não responderia por seus atos. Como mencionado anteriormente, no primeiro caso, o indivíduo passaria pela absolvição imprópria, oportunidade em que seria aplicada a medida de segurança.

Quanto ao segundo, a verificação da incapacidade poderia gerar consequências como a nulidade absoluta do negócio jurídico. Com a entrada em vigor da LBI, não se fala mais em “nulidade”, mas em “anulabilidade”, condicionando a invalidade do negócio jurídico às circunstâncias fáticas por se tratar, atualmente, de um relativamente incapaz.

Assim, embora tratem-se de esferas distintas, admitir que um indivíduo possui capacidade para celebrar um negócio jurídico, muitas vezes de considerável complexidade, e negar, em contrapartida, que ele possui capacidade de compreender o caráter ilícito de um ato parece contraditório. Não se intenta com isso defender que o “louco” seja responsabilizado nos mesmos moldes de um condenado comum, mas que seja construído um sistema de responsabilidades adequado a sua condição, tal como feito com os adolescentes que cometem atos infracionais.

Diante desse quadro e considerando as relevantes críticas às alterações estabelecidas pela Lei nº 13.156/15, nota-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência vem apresentar um “novo” paradigma, há tempos previsto por alguns penalistas, como já mencionado. Essa perspectiva reconhece a responsabilidade como parte da dignidade, isto é, a possibilidade de decidir sobre seus atos e responder por suas consequências. Ocorre que esse entendimento, mesmo constituindo um grande avanço no que tange à autonomia da pessoa com deficiência, como afirmam os críticos dos novos arts. 3º e 4º do Código Civil, podem acabar por desproteger o sujeito com alguma deficiência mental ou intelectual.

Posto isso, entende-se que o Código Civil não deve retroceder no que propôs a LBI, sendo, entretanto, o exercício dessa autonomia pautado especialmente em princípios como a boa- fé e na proteção da pessoa com deficiência. Do mesmo modo, provoca-se a reflexão quanto a ideia de inimputabilidade no Direito Penal a qual, ao passo que submete o indivíduo a um processo, nega-lhe o direito de voz e de responder por seus atos. Assim destaca Venturini sobre a experiência de Trieste na Itália:

Contudo, em situações particulares – entre elas a experiência do Departamento de Saúde Mental de Trieste – foram instauradas práticas de atendimento alternativas ao Manicômio Judiciário. Baseava-se na recusa, por parte dos peritos psiquiátricos, de considerar “não imputável” a pessoa com transtorno mental em conflito com a lei, atribuindo-lhe, nos casos mais graves, apenas a “parcial” incapacidade de entender e de querer, e oferecendo-lhe, depois, abrigo nos serviços territoriais de saúde mental. [...] Pelo seu valor comunitário, este paradigma valoriza a consciência dos direitos e da pena, assim como a

responsabilidade subjetiva em relação ao crime. 99

Assim, tomando-se em conta os direitos enunciados na Convenção Internacional de Direitos das Pessoas com Deficiência, no Estatuto da Pessoa com Deficiência e demais dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro, discute-se agora a efetividade desses direitos. 4.3 A não delimitação da natureza jurídica da Medida de Segurança e a efetividade dos Direitos Fundamentais das Pessoas com Deficiência

Compreender a natureza jurídica da medida de segurança é primordial para a efetiva realização dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência que a ela estão submetidas. Não se trata de limitá-la a apenas uma área do conhecimento humano, pelo contrário, defende-se que a perspectiva multidisciplinar enriquece o entendimento sobre a inimputabilidade. Assim, ainda que se entenda o instituto como um híbrido, sanção penal e tratamento, faz-se necessário que isso seja feito de forma clara e especificamente pensada para “o louco infrator”. Em sentido contrário, verificar-se-á o que ocorre atualmente no Brasil, a saber um sistema legal que nega à medida de segurança seu caráter de sanção e junto a isso prerrogativas, direitos e garantias inerentes ao processo penal, mas que aflige o indivíduo por ter incorrido em um tipo penal, cerceando sua liberdade e o colocando em celas. Por outo lado, reconhece-a formalmente como tratamento, mas contraria o entendimento preponderante entre os especialistas da atualidade de que o enclausuramento, muitas vezes, cronifica o transtorno.

Compreendida sua natureza, o sujeito poderá buscar os meios necessários para a reivindicação de seus direitos, tendo em vista que no direito, sobretudo no Brasil, verifica-se uma grande tensão, especialmente no que tange à exigência de uma postura ativa do Estado, entre o conteúdo constitucional e sua efetividade.

Nesse sentido, sobre os direitos e garantias fundamentais, a Constituição Federal prevê que não se tratam de normas simplesmente programáticas, isto é, “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”100. Contudo, sua previsão legal

constitui apenas um passo para um longo processo de luta para a efetivação de direitos.

O problema reside na falta de efetividade das referidas normas, pois nem o Poder

99 VENTURINI, Ernesto; DE MATTOS, Virgílio; OLIVEIRA, Rodrigo Tôrres. O Louco Infrator e o estigma da

periculosidade. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2016. p. 14 e 15.

Público nem a sociedade em geral possuem sensibilidade suficiente para lidar com a realização dos direitos das pessoas com deficiência. Com efeito, a eficácia de uma Constituição depende do modo como ela é cumprida, do grau de introjeção do chamado “sentimento constitucional”.101

Assim, observa-se que a efetivação dos direitos fundamentais de um modo geral enfrenta grandes obstáculos. Essas dificuldades apenas se acentuam quando se trata dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência, e ainda mais quando a deficiência é de natureza mental ou intelectual, sendo, por fim, mais grave quando se trata da pessoa com deficiência mental ou intelectual em conflito com a lei. Como destaca Flávia Piovesan, grande parte das leis que tratam dos direitos das pessoas com deficiência referem-se à deficiência motora102.

Por fim, destaca-se que, por constituir-se o Brasil em um Estado Democrático de Direito103, não deveria ser admissível que o Direito Penal cultuasse a defesa social entendendo a

sociedade como um ente abstrato, mas deveria visar a proteção social considerando seus membros, uma relação inter-humana, caso contrário, estar-se-ia diante de uma legislação penal que não estabeleceria limites à ingerência do jus puniendi estatal.

Este direito penal não procurará a segurança jurídica para a realização de seus integrantes, mas somente atenderá à “realização” deste superente gigantesco, diante do qual o homem seria pouco mais que nada. Estas concepções não têm cabimento em nosso sistema positivo, posto que nem a Constituição nem a ideologia dos Direitos Humanos toleram o submetimento do homem a um ente superior, mas só a limitação do homem por razões de coexistência, o que, por certo, não é o mesmo [...] Assim sendo, esta “defesa” não pode ser outra coisa que uma prevenção tutelar, posto que não é defesa no sentido jurídico da expressão, isto é, no sentido em que a empregamos quando falamos, por exemplo, de “legítima defesa”. Vemos, pois, que essa “defesa” não pode ser mais que uma prevenção, que opera quando se afetou um bem jurídico tutelado.104

Nesses termos, compreendendo a efetividade dos direitos fundamentais como um processo de luta, entende-se que a melhor forma de efetivá-los é munindo a população de ferramentas e informações que as permitam provocar o aparelho estatal de uma forma mais direta.