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4. História da Descoberta da Leishmaniose Cutânea no Estado do Ceará

4.6. A Leishmaniose Cutânea na Região Amazônica

Não se sabe, ao certo, quando a leishmaniose cutânea chegou à região amazônica brasileira, mas as evidências disponíveis levam a crer que foi no início do século XIX. Nessa época, a leishmaniose cutânea já era endêmica em algumas áreas da Amazônia. Eduardo Rabello (1925) relata que a única indicação certa da existência da leishmaniose no Brasil foi por ele econtrada em uma citação do livro do ilustre médico Júlio César Tello de 1909: “ Antiguedad de

la syphilis en el Peru”. Rabello acha curioso que Tello, fazendo um estudo bem documentado sobre as orígens da lues no Peru, descrevesse a leishmaniose naquele País. A citação a que Rabello se refere e também mencionada por Altamirano-Enciso e col (2003) é retirada do escrito “Pastoral Religioso-Politico Geographico”, onde é relatada a viagem de um missionário, que percorreu, através do rio Solimões-Amazonas, uma extensão indo da aldeia de Tabatinga, no limite entre o Peru e o Brasil, até o estado do Pará, no Brasil. Infelizmente não se pode determinar a data da viagem, mas sabe-se que a edição citada por Tello é de 1827, parece que, de acordo com a maneira de escrever e de tratar o assunto, deveria ter sido escrito em data bem anterior. Como se observará, as palavras do missionário são muito claras e tornam evidente a presença da leismaniose naquela região do Brasil, faltando apenas a confirmação da data. Diz ele:

... de los mosquitos y otras muchas especies de moscardones y de sus picaduras o mordeduras de estos, salen las llagas asquerosas y muchas de una consecuencia fatal. Es común en todas estas tierras a la par de su fertilidad y húmedades: la lepra y el quedar-se sin narices; si no se vive con precaución ....los mosquitos y demás insectos, son (si no se tiene cuidado) un poderoso fomento de llagas profundas y fétidas en piernas y brazos, hedor de boca e gallico etc.

Nos trechos acima nada falta para classificar as lesões descritas como leishmaniose; úlceras em pernas e braços devidas à picada de mosquitos, e dando como consequências lesões destrutivas do nariz e da boca (RABELLO, 1925; ALTAM IRANO-ENCISO et al., 2003).

Considerando que, no início do século XIX, a leishmaniose era endêmica em áreas da Amazônia brasileira, resta saber, de onde teria vindo? O Peru e a Bolívia são apontados como os países de onde se originou a leishmaniose cutânea no Brasil (RABELLO, 1925, ALTAM IRANO- ENCISO et al., 2003). Com relação ao Peru, existem realmente muitas evidências da existência da leishmaniose na era Inca e pré Inca, isto é, bem antes da chegada dos espanhóis, onde era conhecida por “uta” e “espundia” (GADE, 1979; Le MOINE; RAYMOND, 1987). O termo uta é ainda usado como sinônimo para o vetor e para leishmaniose cutânea em certas áreas montanhosas do Peru.

Tello (1908), em seu trabalho em que tenta provar a existência secular da sifilis no Peru, se baseia, entre outros argumentos, nos relatórios de cronistas dizendo:

“Podemos assegurar que casi no hay viajero que haya internado a la región de los bosques que al habblar de las enfermedades no nos habble de llagas causadas por la picadura de mosquitos que produzem mutilaciones em el rosto”.

Outro aspecto importante é a análise das coleções de cerâmicas em que os Incas costumavam representar seus costumes e doenças. Algumas dessas peças de cerâmicas, denominados huacos, apresentam mutilações faciais compatíveis com leishmaniose de mucosa ou espundia, como era chamada. Aristides Herrer (1956) apresenta comparações entre fotos de huacos (Figuras 4.12) e de pacientes com leishmaniose. Contra a possibilidade de serem representações de lesões sifilíticas, há o argumento de que na sífilis, além das cartilagens do nariz há também destruição da estrutura óssea, enquanto que na leishmaniose, a lesão se limita apenas às partes moles do nariz (RABELLO, 1925).

Figura 4.12: Peças de cerâmicas (Hu acos) d a cultura Inca rep resent ando mutilações que acredita-s e ser de

Considerando que a leishmaniose existia no Peru na época dos Incas, portanto, há várias centenas de anos antes de ser descrita no Brasil. Pergunta-se então porque não teria chegado ao Brasil bem antes do início do século XIX? A resposta provável é porque os Incas não exploraram a floresta amazônica brasileira, assim sem essa relação não houve transmissão da leishmaniose. E porque não exploraram? Le M oine e Raymond (1987), após fazerem uma revisão minuciosa das evidências, chegam à conclusão de que a razão dos Incas não terem explorado a Amazônia brasileira foi por razões de ordem política e econômica, bem como por terem se adaptado às áreas mais verticalizadas e não foi por medo da leishmaniose ou de outras doenças como sugeriu Gade (1979), até mesmo porque já existia leishmaniose no Peru.

Herer e Christensen (1975) apresentam evidências de que a leishmaniose e a bartonelose, doenças transmitidas por flebotomíneos, eram endêmicas no Peru, já no do século XVI. Apresentam o relato de Cosme Bueno discutido em El conocimiento de los Tiempos, escrito em 1764 à cerca da transmissão natural de ambas as doenças, assim segue:

Os vales estreitos são muito inóspitos onde dois tipos de doenças são notadas; estas doenças também estão presentes em outras províncias frias. Uma é verruga [doença de Carrion] que acontece de ser problemática e perigosa se não for acompanhada de erupção cutânea. A outra resulta em úlceras corrosivas, localizada na face, é muito difícil de curar e causa a morte de algumas pessoas. É dito que ambas doenças se originam da picada de um pequeno inseto chamado uta [flebótomo]. Uma peculiaridade epidemiológica da uta e a doença de Carrion é a sua persistência nas mesmas áreas por séculos. Estas doenças permanecem endêmicas até hoje nas regiões onde a doença de Carrion foi descrita por Vadillo em 1630 e ambas foram relatadas por Bueno em 1764 (HERER; CHRISTENSEN, 1975).

Cosme Bueno nasceu na Espanha e chegou ao Peru em 1730 com a idade de 19 anos. Ele estudou em Lima, onde tornou-se reconhecido como médico muito qualificado, matemático e geógrafo. Ele viajou extensivamente em todo o território peruano e em outros países da América do Sul. Muito das informações publicadas em El conocimiento de Los tiempos foram obtidas pelo próprio Cosme Bueno. Seu relato precede outros relatos antigos, de pelo menos um século e meio.

Outro questionamento seria: se doença existia há tanto tempo no Peru, porque somente no século XIX chegou ao Brasil? É possível que as dificuldades de tráfego entre os povoados primitivos, associado ao desinteresse econômico, tenham sido responsáveis por estas doenças ficarem restrita ao Peru por tanto tempo (RABELLO 1925; GADE, 1979; Le MOINE; RAYM OND, 1987).

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