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A Liberdade: entre o conservadorismo e o desejo de mudança

IV. As mulheres e o Estado Novo

3. O Contexto Histórico

3.3. A Liberdade: entre o conservadorismo e o desejo de mudança

Uma das consequências da democracia é a explosão de manifestações e greves. Contudo, as alterações na vida quotidiana são lentas e a mentalidade da sociedade portuguesa demorará muito mais tempo a adaptar-se e a interiorizar a nova condição democrática. Exemplificativo é o resultado da iniciativa do Movimento de Libertação da Mulher (MLM) com vista a tornar visível alguns dos preconceitos a que as mulheres ainda estavam sujeitas no Portugal acabado de sair da ditadura.

A 13 de Janeiro de 1975, o MLM convoca um ajuntamento a fim de queimar os “símbolos de sujeição feminina", no Parque Eduardo VII, e no qual participa Maria Teresa Horta. A convocatória esclarece que entre os símbolos a destruir figuravam o Código Civil e a legislação do trabalho, revistas pornográficas, objectos de utilização culinária e alguns livros de “autores machistas”, bem como brinquedos sexistas. As participantes iriam vestidas para representar os papéis de noiva, de vamp e de fada do lar.

O Expresso anuncia o evento, a 11 de Janeiro de 1975, com o título “Strip-tease de

contestação organizado pelo MLM”. Na notícia pode ler-se “assistiremos ao «strip- tease» de uma noiva, de uma dona de casa e de uma vamp que darão a flor de laranjeira, o avental e o bikini como pasto às chamas”84. Isto bastou para que alguns homens as fossem receber. Ostentavam cartazes com dizeres tais como “contra a

virgindade”, a multidão grita “vamos a elas” e as participantes foram “apalpadas e perseguidas”. Só a noiva foi poupada. Resquícios do que a mentalidade portuguesa

privilegia. Apesar do pânico, o sentimento dominante das manifestantes foi desilusão. Na imprensa, as palavras de apoio ou de condenação pela contra-manifestação são notórias85. No Século Ilustrado, Maria Antónia Palla coloca a questão: “Dez mulheres

apenas bastaram para pôr o centro da cidade em polvorosa. Que poderão fazer cem mil?”. No Expresso de 18 de Janeiro do mesmo ano, Júlio Henriques exprime o seu

84

“Strip-tease’ de Contestação organizado pelo MLM”. In Expresso, 13 Janeiro de 1975. Artigo não assinado.

85

Comunicação proferida por Madalena Barbosa, no Seminário “O Feminismo em Portugal”, organizado pela UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, em Lisboa, 1998

repúdio pelos acontecimentos no artigo: “a manifestação dos impotentes”86, descrevendo os homens que foram à manifestação como:

“uma multidão de mirones impotentes, atraídos, como as moscas pela merda, pelo que julgavam ser um strip-tease público: esta espontaneidade verificou- se pelo facto de a maioria esmagadora dos que ali acorreram serem homens. Homens, jovens e de meia-idade, que na miséria feminina não vêem senão a miséria, sem ver nela o seu lado subversivo – e muito menos a sua própria miséria de escravos assalariada”.

E continua tecendo considerações acerca da condição feminina no Portugal democrático:

“o grau de liberdade das mulheres é por excelência do grau de liberdade atingido pela sociedade em geral. O facto de o MLM ter acabado por não poder exprimir-se publicamente (o repórter do Diário de Notícias dizia textualmente que «foi a multidão de curiosos que acabou por fazer abortar a manifestação das mulheres» é um indicador muito claro da nossa miséria portuguesa. Duma miséria geral que é mais profunda do que parece”

Esta linguagem só é possível no Portugal pós-25 de Abril. Nas redacções vivem-se momentos intensos – não só na produção de conteúdos, mas também de intensa convulsão no interior das redacções, as quais são frequentemente disputadas por diversos grupos de tendências políticas diferentes.

A instauração de um regime democrático traz algumas alterações imediatas sentidas pelos jornalistas. A abolição da censura obriga jornalistas a uma reaprendizagem da escrita. Alice Vieira recorda como lhe foi difícil adaptar-se à ideia de que não haveria nada a temer. Escrever sem a preocupação pelo lápis azul era um desafio ao processo de interiorização que os jornalistas fizeram ao longo de décadas de censura e também por exigir um novo estilo, mais directo:

86

“Não ser necessário subentendidos, não ser preciso um estilo com muito floreado… foi difícil. Poder escrever, normalmente, sobre tudo, custou-me muito. Estávamos tão habituados aquilo – de repente podíamos escrever o nome de pessoas que antes eram totalmente proibidas, podíamos falar de tudo. Aprender a escrever em liberdade foi muito difícil e demorou muito tempo. Também demorou muito tempo a ser livre, a falar sobre tudo… nos cafés. Essas coisas levaram muito tempo. Custou-me muito a habituar-me à liberdade. Ainda hoje, um telefonema às tantas da manhã me faz acordar sobressaltada e já passaram 30 anos” (Alice Vieira em entrevista)

Francisco Pinto Balsemão refere também, a Fernando Correia e Carla Baptista87, que os

jornalistas do Expresso (do qual era director) “tiveram de aprender a escrever as coisas

directamente, sem ser nas entrelinhas”.

O uso da palavra de forma transparente revela-se um exercício difícil após anos de treino a escrever sob o jugo do lápis azul. Para as mulheres, finalmente, a igualdade formal está conquistada.

Não há no entanto, qualquer evidência, que permita afirmar que logo após a Revolução dos Cravos, as mulheres tenham entrado em grande número para os órgãos de comunicação social. Treze anos após a Revolução dos Cravos, a percentagem de mulheres jornalistas ainda era de 19,8%88. A evolução continuou a fazer-se lentamente,

ao ritmo da sociedade portuguesa.

87

Obra citada, p. 330

88

Dados da Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas Portugueses, citados por Pedro Alcântara Silva, em artigo publicado na JJ – Jornalismo e Jornalistas já citado.