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A liberdade política e a participação dos cidadãos

Na obra A vida do Espírito (1975), a autora trata da questão do pensar62, do querer e do julgar, a obra restou inacabada devido ao fato da autora ter falecido poucos dias após terminar o segundo volume, o qual trata do querer63. A vontade, para Arendt, é considerada uma faculdade autônoma64 do espírito humano, pois, ela torna o mundo interno, público. Isto é, ela está relacionada à liberdade e à política, assim, é por meio dela que surge o impulso (provocando o movimento, o querer e o poder unidos) de gerar algo ao mundo exterior, por meio da ação. O querer tem como objeto projetos, pois a vontade transforma o desejo em uma intenção, que decide o que será feito.

Nesse contexto, o julgar é a faculdade pela qual se juntam o geral e o particular, por tratarem com particulares: a questão a ser resolvida, a ação a ser feita. Assim sendo, à vontade e o juízo estão mais próximos do mundo das aparências do que o pensar. Segundo Lafer (2003, p. 86):

Existe segundo Arendt, um conflito importante entre as experiências do eu pensante e do eu volitivo. O eu pensante, não tem como escapar do princípio da não contradição. Por isso choca-se com a maior liberdade que o eu volitivo experimenta.

62“O pensar é uma atividade solitária, mas o seu estado não é o da solidão, pois trata-se de uma situação

em que eu me faço companhia”. (LAFER, 2003, p. 83).

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O pensar não esgota a vida da mente, que também abrange o querer (a vontade) e o julgar (o juízo). O querer e o julgar compartilham com o pensar o processo prévio de provisório desligamento do mundo. Dele também dependem porque o pensamento extrai do mundo das aparências os particulares, que são objetos alcançados pela vontade e pelo juízo. (Idem, 2003, p.86).

O tônus do pensar é a serenidade, a “tranquilitas animi” de que falava Leibniz. O tônus do querer provoca a impaciência, a inquietação e preocupação, em síntese a tensão, só superável pela ação.

Para Arendt, a capacidade de distinguir o bem do mal, é possível no espaço público da palavra e da ação, de acordo com a capacidade ou a incapacidade de pensar, conforme apregoa a autora (2011a, I, p.16-17):

Essa relação, não foi possível enxergar na pessoa de Eichmann apesar da monstruosidade sem limites dos atos por ele praticados. A sua característica se configurou no processo como um indivíduo incapaz de pensar. Em termos operacionais, pensar significa desligar-se provisoriamente do mundo das aparências para chegar a uma conclusão sobre os sentidos das coisas, diante de uma dificuldade.

O que mais despertou o interesse na autora ao estudar a questão do pensar foi primeiramente o julgamento de Eichmann e, posteriormente, as questões morais, originando-se nas experiências factuais. Retornando à vontade, ela trata de algo que será externado no mundo público, no futuro, e este por maior que seja a sua probabilidade é sempre incerto, poderá decidir algo respeitando o limite de seu poder, ou seja, daquilo que é realizável. A ação é impulsionada pela vontade e esta não se confunde nem com o desejo nem com a razão, pois aquele surge do mundo externo e esta da vida interna do espírito, como ser pensante. Segundo a autora (ARENDT, 2000, p. 64):

Como fonte de ação, a vontade é um poder para começar espontaneamente uma série de coisas ou estados sucessivos. Em decorrência disso, ela busca antecipar o futuro, em sua tarefa teórica, o contrário, por exemplo, do juízo que normalmente se ocupa do passado.

Desta forma, de acordo com Arendt, o querer fazer algo impulsiona o espírito para agir, buscando o almejado, para fins de que no futuro aquilo que é pretendido seja alcançado. Segundo a autora, existem três dificuldades em relação à vontade. A primeira refere-se a sua existência, pois é possível que se pense ser a vontade apenas um simples fato de consciência. A segunda dificuldade refere-se às relações entre a vontade e a liberdade. O querer, por ser autônomo, tende a ser livre, com isso pressupõe-se que exista uma indeterminabilidade da vontade. Segundo Schio (2012, p. 117),

A indeterminabilidade, porém não deve ser confundida com a indeterminação. A indeterminação decorre da atividade de dissolver todo o conteúdo determinado, isto é, de eliminar toda a orientação da vontade por motivos internos ou externos, por isso ela ocorre na interioridade do espírito, e o limita subjetivamente.

Nesse caso ocorre uma transitoriedade entre o mundo interno do indivíduo, o qual se mantém fechado na sua subjetividade e o mundo externo, e aparentemente não

possui espaço para o querer, apesar da possibilidade de elaborar algo novo, um começo, por meio da ação. A terceira dificuldade trata da contingência, pois é a vontade livre, o que não se confunde, segundo Arendt, com o livre arbítrio, que é a liberdade de escolha. De acordo com Adeodato (1989, p. 166):

O livre arbítrio é uma qualidade do ser humano enquanto tal e configura um problema moral, um problema de razão prática, como em Kant, enquanto a liberdade é uma qualidade do cidadão e, por isso mesmo, pode ser facilmente destruída. A liberdade do pensar, do livre arbítrio ou mesmo do querer, que se pretende absoluta, importa apenas aos ermitãos, aos filósofos, ou àqueles impossibilitados de agir. A liberdade propriamente dita refere-se ao eu posso e não ao eu quero, resume Hannah Arendt.

A acepção de Livre Arbítrio surgiu com Santo Agostinho e conforme Arendt (2000, II, p. 97):

A faculdade de escolha, tão decisiva para o liberum arbitrium, aplica-se aqui não à escolha deliberada de meios para um fim mas primariamente - e, em Agostinho, exclusivamente – à escolha entre velle e nolle, entre querer e recusar. Este nolle nada tem a ver com a vontade-de-não-querer, e não pode ser traduzido como eu-não- quero porque isso sugere uma ausência de vontade. Em cada ato de vontade, estão envolvidos um eu-quero e um eu-recuso.

O ser livre, para arbitrar, decide entre duas coisas igualmente possíveis, e que estão dadas, como meras potencialidades, ao passo que a capacidade de começar algo novo pode não ser precedida por nenhuma potencialidade, que em seguida figuraria como uma das causas do ato realizado.