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III. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA

3.2 A lingüística e a linguagem para Culioli

A linguagem nunca foi uma área exclusiva da Lingüística. Muitas outras disciplinas (entre elas a psicologia, a sociologia, as neurociências, a literatura, a lógica) a tem como área de interesse, dada sua importância e por desempenhar um papel fundamental tanto na organização do pensamento quanto no desenvolvimento do ser humano. De acordo com Borba (2003), é por meio da linguagem que o homem se constitui como sujeito. No entanto, cada uma das disciplinas que põe em foco a linguagem, aborda-a sob diferentes prismas.

Foi Saussure, no início do século XX, quem concedeu à Lingüística seu estatuto científico, delimitando seu objeto de estudo: a língua (langue), excluindo do campo da lingüística a fala (parole). Assim, o autor pretendia focar-se na sistematicidade (estabilidade) da língua e não na variabilidade da fala, cujas manifestações seriam individuais e momentâneas.

A oposição langue/parole proposta por Saussure, com a exclusão da fala do campo da lingüística, acabou por excluir o sujeito do cerne dos estudos lingüísticos.

Após muita contestação e inquietações, em meio a outras tendências de estudo, surgem as lingüísticas enunciativas, que tem como ponto em comum uma crítica à lingüística da língua e a inserção do sujeito no âmago de suas reflexões27.

A Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas de Antoine Culioli opõe a linguagem, como atividade, às línguas, como sistemas de funcionamento. Dessa forma, Culioli rejeita a oposição saussuriana langue/parole e reabilita o sujeito como uma entidade capaz de se constituir em origem do discurso (GAUTHIER, 1995).

A hipótese de base de toda teoria enunciativa é a inserção do sujeito no próprio âmago do sistema lingüístico, o que torna impossível referir-se à língua como um sistema totalmente distinto de seu utilizador e de suas condições de utilização. Tal posicionamento leva à substituição das abordagens instrumentais da linguagem por uma abordagem que procura trabalhar precisamente no executar-se das operações construtoras da significação. (FUCHS, 1984).

A construção da significação, isto é, a própria linguagem, é sustentada pelas capacidades que todo indivíduo tem de representar, referenciar e regular, e são essas capacidades que vão lhe permitir construir e reconhecer formas por meio dos agenciamentos de marcadores em sua língua.

Os conceitos de produção e reconhecimento de formas estão inseridos na situação de enunciação e não são simétricos. Os papéis de emissor e de receptor são ambos assumidos simultaneamente pelos dois interlocutores, isto é, no ato de interlocução, cada um constrói ao mesmo tempo a produção e a recepção do outro, e por isso a preferência de Culioli pelos termos co-enunciadores e co-enunciação (FUCHS, 1984, p.80).28 Desse modo, Culioli rejeita um modelo de comunicação linear, em que exista um “universo pré-recortado, sem modulação, nem qualquer adaptação” 29 (1999a, p. 11), isto é, ele marca sua posição contrária à assimilação da linguagem a um código externo aos sujeitos, o que lhes permitiria uma

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Atribui-se a Émile Benveniste a origem da teoria da enunciação e é de sua autoria a definição canônica de enunciação: “a enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 1989, p.82). Essa “colocação em funcionamento da língua” traz marcas de subjetividade e essas marcas (os interlocutores, o lugar e o momento da interlocução – marcas dêiticas – e as modalidades – marcas não-dêiticas) caracterizam o que Benveniste chama de “aparelho formal da enunciação”, que comporta, nas produções verbais, a subjetividade dos locutores. Outros nomes importantes relacionados às lingüísticas enunciativas são: Bakhtin, Ducrot, Maingueneau, entre outros.

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O “receptor” não precisa necessariamente ser uma pessoa física: pode ser imaginada, virtual, pode ser o próprio sujeito que enuncia para equilibrar-se.

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Tradução nossa, no original: “un univers pré-découpé, sans modulation, ni adaptabilité aucune” (CULIOLI, 1999a, p. 11).

comunicação optimal. Muito pelo contrário, a comunicação supõe ajustamento, regulação, e muitas vezes, não se tem êxito, isto é, há mal-entendido. Assim, na TOPE, os mal-entendidos, os desvios, os “ruídos” são considerados características da atividade de linguagem, e não exceções: a ambigüidade e a heterogeneidade são, nessa perspectiva, constitutivas da linguagem.

No nosso dia-a-dia estamos sempre produzindo e reconhecendo enunciados, dentro das possibilidades permitidas pela nossa língua, a fim de contornar os constantes mal-entendidos na busca da compreensão. Estamos sempre montando e desmontando marcas, arranjos, relações, e conseqüentemente, construindo e reconstruindo significados e valores. Para isto, utilizamos o processo de parafrasagem, que seria a atividade epilingüística, interna e invisível, que colocamos em prática a todo instante, que tanto pode ampliar e proliferar o significado, gerando ambigüidades, como pode desambigüizá-lo, fechá-lo e determiná-lo.

3.2.1 Atividade Epilingüística: produção e reconhecimento de formas

No momento da enunciação, há uma interação verbal externa, perceptível por meio das trocas lingüísticas permitidas pela fala e pela escuta, que, no entanto, é constituída internamente, ou seja, em cada sujeito há um diálogo inconsciente, chamado por Culioli de atividade epilingüística, que se resume na produção e reconhecimento de formas (apud AUROUX, 1989).

A produção ou construção de formas tem início quando um sujeito marca lingüisticamente suas representações por meio do léxico e da sintaxe de uma determinada língua em concordância com sua experiência individual. Já o reconhecimento ou interpretação de formas dá-se quando um sujeito depara-se com formas textuais, sejam elas orais ou escritas, e as investe de significado. O material (gráfico ou sonoro) que representa a interação externa não tem significado por si só, o sujeito é que deve investir este material de significação para falar e ouvir, ler e escrever.

No aprendizado de uma língua, assim como no momento de tradução, há a ativação desse saber epilingüístico, que seria o caminho interno que cada indivíduo

faz para chegar a seu significado particular, ou ainda, “uma atividade metalingüística da qual não se tem consciência” 30 (CULIOLI, 1976, p.18). Essa atividade epilingüística funciona, basicamente, pela elaboração de famílias parafrásticas31, isto é, de enunciados aparentados, cujo parentesco é sustentado por um esquema chamado léxis.

Assim, todo enunciado faz parte de uma família parafrástica, e cabe ao co- enunciador (seja ele escritor, leitor, ouvinte, aprendiz de uma língua) escolher um dentre os enunciados equivalentes. Por ser a escolha individual, esta pode acarretar tanto diferenças superficiais como oscilações importantes. Isto significa que um mesmo enunciado pode suportar uma pluralidade de interpretações.

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