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CAPÍTULO 3 -TRADUZINDO UMA HISTÓRIA DE TRANSFORMAÇÃO E

3.2 A LINGUAGEM CÊNICA COMO ESTRATÉGIA DE ARTE-EDUCAÇÃO

Na busca pelo tipo de arte que atendesse, então, aos nossos objetivos, encontramos Slade (1978) defendendo os jogos dramáticos como estratégia de educação apropriada às pessoas com deficiência intelectual, por oferecerem situações securitizantes e estimulantes à descoberta e manifestação de habilidades latentes. Cunha e Castro (1983) afirmam ser a dramatização um meio propício para o desenvolvimento social e emocional, na medida em que possibilita a expansão das emoções, sentimentos e necessidades, deste modo favorecendo também a compreensão aceitação de si mesmo. Além disso, apontam Guarita, Sponton e Teixeira (2000), os jogos teatrais permitem abordar aspectos de identidade, de sociabilidade, de emoções e de alteridade, oportunizando a cada um manifestar e, se for o caso, modificar a sua visão de mundo. Empregar o teatro como instrumento de expressão e resgate de vida não é privilégio de atores, teatrólogos, educadores e psicólogos. Também Sacks (1997), um conceituado neurologista do Albert Einstein College of Medicine, em Nova York, discorre sobre os benefícios da linguagem cênica para aqueles que têm deficiência intelectual, por ser um meio de encontrarem o significado de si como pessoas, tornarem-se mais completas, equilibradas, fluentes e com estilo próprio de ser.

Responsáveis pelo pioneiro trabalho de atores com deficiência intelectual em nosso país, Gripp e Vasconcellos (199-) consideram a arte importante em qualquer processo educacional e de reabilitação. No caso dessas pessoas, discriminadas ou classificadas por áreas que não funcionam, os autores afirmam que o teatro representa a possibilidade para expressarem o que existe dentro de si e para vivenciarem o reconhecimento (o elogio) por algo de bom que conseguem assim produzir. Conforme Roubine (2003), o teatro é um

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propício recurso para o esfacelamento de aparências (o que pretendíamos fazer no caso da deficiência intelectual), ao incitar os espectadores a descobrirem uma realidade mais completa do que aquela imaginada antes da encenação.

Assim, gradualmente fomos acatando o teatro como o espaço e a estratégia que procurávamos para trabalho que pretendíamos realizar com contribuições dos campos das Artes, Educação e Psicologia. Cada dia mais íamos fortalecendo a idéia de que o mesmo seria uma oportunidade catalisadora para o espectador melhor compreender o outro - a pessoa com a deficiência intelectual-, diante de si e a si mesmo frente a ele; um outro que assume seus próprios limites e potencialidades, que lida com as vicissitudes de viver e ser como qualquer pessoa. Sob tal perspectiva, nosso teatro se faria conforme aquele proposto por Grotowski (1975), no qual não há a pretensão de dar ao ator uma bagagem de artifícios, mas de ensiná-lo a eliminar suas resistências. Um teatro deste modo idealizado poderia, então, existir sem maquiagem, figurinos, cenografias, iluminação e sons especiais; só não poderia inexistir a relação ator-espectador - uma comunhão de percepção viva e direta entre ambos.

Durante estudo e organização das ideias sobre um teatro para atores especiais, foram decisivas as concepções de importante teatrólogo contemporâneo, há longo tempo radicado no Brasil. Trata-se de Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, propício para trabalhar junto àqueles que vivenciam uma condição de desigualdade social, como é o caso das pessoas com a deficiência intelectual. Para Sawaia (2009), a desigualdade social se caracteriza por ameaça permanente à existência ao cercear a experiência, a mobilidade e a vontade; ao impor diferentes formas de humilhação e bloquear o poder do corpo de afetar e ser afetado, rompendo nexos com a sociedade. Neste sentido, o teatro proposto por Boal objetiva propiciar, àquele despossuído do direito de ser, de estar e de falar, a oportunidade de manifestar o que vai dentro de si, sem um texto prévio, mas construído na medida em que pensamentos, ações e relações vão se desenvolvendo entre as pessoas - no palco e na plateia – envolvidas naquele momento.

Trabalhando com as mais diversas populações, entre elas, grupos de pessoas com deficiências, Boal (1996a) afirma que na vida real se vive, mas no teatro se vivencia, portanto o mesmo pode ser um fórum de reflexão sobre a realidade. Ou seja, à medida que são revividas no palco, as cenas vividas na vida real podem ser mais bem compreendidas e as soluções buscadas por meio de improvisações tornam-se um ensaio para uma ação futura. Ser ao mesmo tempo protagonista dos próprios atos e seu principal espectador possibilita ao ator imaginar alternativas, reinventar o passado e inventar o futuro. Por meio do teatro, segundo Boal (1996b), o homem descobre que pode observar a si mesmo e ao ver-se percebe o que é,

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descobre o que não é e imagina o que pode vir a ser; percebe onde está, descobre onde não está e imagina aonde pode ir. A imaginação é uma função psíquica superior que, conforme Araújo (2000), permite pensar o ainda inexistente - conceber em projeto -, “vendo” e “sentindo” o produto final na mente antes de se concretizar no real. Processando as imagens recebidas do mundo exterior, através da sensação-percepção, articulando-as com aquelas registradas pela memória, é possível a cada instante reinventar a vida pela imaginação. Esta, segundo Sawaia (2009), amplia nosso repertório de ações e emoções ao possibilitar-nos a “apropriação” da experiência de outros, associar acontecimentos carentes de vínculos racionais, mudar o passado, antecipar o futuro e, assim, promover transformações. Apoiando- se em Vigotski, Barroco (2007) também afirma que a imaginação é um meio de ampliar a experiência: ao ser capaz de imaginar o que não foi visto e o que não experimentou pessoal e diretamente, o homem não fica encerrado no pequeno círculo de sua existência; ele pode mudar muito dos seus limites assimilando, com a ajuda da imaginação, experiências históricas e sociais alheias.

Com Boal (2001), o teatro assume um compromisso político: ao permitir e valorizar a expressão dos conteúdos individuais, os atores tornam-se porta-vozes de si e construtores de uma realidade mais condizente com as suas expectativas. Assim, o teatro nos pareceu ser um lócus insofismável para trabalhar questões do cotidiano de pessoas vulneráveis de opressão e exclusão social, como é o caso daquelas com deficiência intelectual. Também, para refinar e expressar o seu potencial, aprender a lidar com as próprias dificuldades e limitações, e com os sentimentos ligados ao outro e ao lugar em que vivem e convivem. Deste modo, preparadas mediante um trabalho de teatro, acreditávamos que essas pessoas poderiam inserir-se (voz ativa) e não ser inseridas (voz passiva) na sociedade, expressando-se como um ser pensante e manifestando-se como um agente de transformações.

Segundo Delors (2001), não é suficiente colocar em contato e comunicação membros de diferentes grupos para que uma situação composta de hostilidade e preconceitos seja modificada; é necessário a cada um descobrir progressivamente o outro, a fim de aqueles componentes possam desaparecer e dar lugar à cooperação e ao respeito à alteridade. Sob tal perspectiva, considerávamos que assistir o tipo de teatro que havíamos selecionado para o nosso trabalho oportunizaria à sociedade um contato prazeroso, mais estreito e menos superficial, com as pessoas que possuem a deficiência intelectual. Isso, por sua vez, poderia ensejar uma revisão de suas concepções, percepções, sentimentos, atitudes e condutas a respeito dessa condição deficiente. Esperávamos, a partir daí, que uma nova identidade fosse gradualmente construída para essas pessoas, pela qual pudessem ter o reconhecimento de seu

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potencial, o respeito às suas dificuldades e limitações e, por conseguinte, as oportunidades para ampliar a quantidade e qualidade de seus relacionamentos interpessoais no meio em que se encontram.