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Revisão de dois periódicos no período de 1909 a

3.10. A linguagem dos Pesquisadores

Se atualmente artigos científicos são bastante impessoais, esta não era a realidade na primeira metade do século XX. Especialmente no Jornal de Pediatria o tratamento dado aos sujeitos mais jovens pode ser definido como carinhoso, como se pode ver nos exemplos: “a doentinha é muito inteligente” (NEIVA; PENNA, 1916, p. 131) “o doentinho” (FREITAS, 1941) “as pobres pequenas vítimas” (LUSTOZA, 1942), ainda que não se possa dizer o mesmo do tratamento dado aos responsáveis, como, por exemplo, na observação de Freitas (1941): “Filho de pais rudes, sempre teve a alimentação defeituosa”.

Alguns comentários a respeito dos sujeitos de pesquisa e da população não foram muito lisonjeiros:

“A principio, tivemos a intenção de dar a alimentação toda pezada e medir a quantidade de agua ou outros líquidos injeridos, (...) mas dela tivemos de dezistir, uma vez que nossos doentes, em geral cretinos, a isso não se prestavam.”

(GUERREIRO; 1912)

Ainda que o termo “cretinos” provavelmente tenha sido usado no sentido médico, ele dá um tom bastante desrespeitoso. Embora o significado original de “cretino” (crétin, do latim christianus), em um dialeto dos Alpes suíços fosse cristão, em uma época em que muitos habitantes da região tinham hipotireoidismo devido a uma deficiência crônica de iodo em sua dieta e “chamar essas pessoas de crétins era uma forma de se condoer de seus problemas e enfatizar sua humanidade. Como dizer que, apesar de tudo, elas também eram filhas de Deus” (RODRIGUES, 2012), a palavra foi incorporada à corrente principal da língua francesa designando apenas que sofria da referida doença. Posteriormente, no entanto, passou a ser usada de forma pejorativa, designando pessoas com comportamento comparável ao dos doentes (imbecis, idiotas). No Brasil a palavra foi dicionarizada em 1988, sendo usada com esses dois sentidos e também o de insolente, atrevido (HOUAISS, 2009;

RODRIGUES, 2012, TRÉSOR DE LA LANGUE FRANÇAISE INFORMATISÉ, 2014). Desta forma, Guerreiro foi bastante infeliz ao descrever seus doentes.

O racismo também foi detectado:

“O vale do rio São Francisco dá a impressão duma rejião pobre e atrazada. Quanto á população convem dizer que o elemento índio nela é quasi nullo. No entanto a raça preta entra com um continjente grande, muitas vezes predominante. Não são raros

os lugares onde, entre os nativos, falta o elemento completamente branco. Isto, naturalmente, influe muito sobre o caráter da população que geralmente vive de modo bastante

primitivo. (...) Tambem não pode haver progresso, onde a gente se contenta a vejetar sem melhorar as condições da sua vida.

Além da questão da raça, há outros que se opoem ao

progresso”. (LUTZ e MACHADO, 1915) (Grifos nossos)

A afirmativa tem um conteúdo de discriminação racial evidente, o que reflete aquele momento histórico – início do século XX. Uma época em que, de acordo com Guimarães (2004), as doutrinas racistas menos pessimistas foram as que:

desaguaram em diferentes versões do "embranquecimento", subsidiando desde as políticas de imigração, que pretendiam a substituição pura e simples da mão-de-obra negra por imigrantes europeus, até as teorias de miscigenação que pregavam a lenta mas contínua fixação pela população brasileira de caracteres mentais, somáticos, psicológicos e culturais da raça branca. (p.

11) (grifo do autor)

A despeito do racismo “entranhado”, Adolpho Lutz, coautor do texto em questão, tinha um auxiliar negro a quem, a seu modo, respeitava muito. Um sobrinho do referido auxiliar, fez o seguinte relato:

Trabalhava com o dr. Adolpho Lutz, que em quase todas as viagens quis levar o Venâncio. Inclusive aos Estados Unidos. O dr. Lutz fez questão que o Venâncio seguisse com ele. Pressionaram o diretor tendo em vista aquele problema do racismo nos Estados Unidos. Ele foi ao dr. Lutz, disse: "Não poderia levar outra pessoa?" O Lutz ficou quieto, que era de pouca palavra. Ficou quieto, foi ao diretor — ele tinha um sistema de falar assim: dizia

sempre "precisamente" —: "Senhor diretor, precisamente, meu

auxiliar chama-se Joaquim Venâncio Fernandes. Ou ele ou ninguém." Aí o Venâncio foi. Acompanhou o Lutz até a morte.

(Venâncio Bonfim, in: Adolpho Lutz em Manguinhos, 2003, p. 432)

E, finalmente, Neiva e Penna (1916), afirmaram que “no sul o elemento branco já predomina e os habitantes são mais vigorosos” (p. 167) e que estavam “convencidos de que uma das causas principais e, no nosso conceito a mais importante, do atraso das regiões do nordeste é a falta de imigrantes” (p. 175), fazendo coro a Lutz e Machado (1915) e ilustrando a doutrina no embranquecimento, referida por Guimarães (2004). No entanto, aqueles autores também encontraram outras justificativas para o atraso nas regiões por onde desenvolveram suas pesquisas, além de demonstrarem preocupação, ou antes, indignação, com as condições sócio-econômicas dos seus sujeitos de estudo e criticarem duramente o governo da época:

“Mesmo no verde que exprime a fartura naquelas paragens, alimentação da maioria é insuficiente e má (...) Como alimentar- se convenientemente se o salario é desprezivel?” (NEIVA; PENNA,

1916, p. 164-165)

“É uma rejião que, embora há séculos habitada, ainda se encontra impermeável ao progresso, vivendo seus habitantes como os povos primitivos. Vivem eles abandonados de toda e qualquer assistencia, sem estradas, sem policia, sem escolas, sem cuidados médicos nem hijienicos (...) sabendo da existência de

governos porque se lhes cobram impostos”. (idem, pág 199)

“A raça atual dessa região é inaproveitável. É habitual dizer-se, e nós mesmos já temos cometido este pecado, que o povo sertanejo é indolente e sem iniciativa. A verdade, porém, é outra. A ausência de esforço e de iniciativa dessa pobre gente, é proveniente do abandono em que vive, e da incapacidade física e intelectual resultante de moléstias deprimentes e aniquiladoras, cabendo nessas rejiões à moléstia de Chadas a primazia desse maleficio. (...) Conhecemos quase todos os estados do Brazil e peza-nos dizer que, à exceção dos estados do sul, nos quais se cuida de algum modo da instrução do povo, (...) quase todos os outros, excetuadas as capitais e alguns municípios, são vastos territórios abandonados, esquecidos pelos dirijentes, com populações vejetando na miséria, no obscurantismo, entregues a si mesmas, flageladas pelas sêcas do Brasil central, e por moléstias aniquiladoras (...)” (idem, p. 221-222)