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A LINGUAGEM NA PERSPECTIVA DE BAKHTIN

No documento miriamnogueiraduquevillar (páginas 53-58)

Na possibilidade de refletir sobre os estudos da linguagem e de que forma ela reverbera nas rodas de conversa da creche, será feito um diálogo com alguns conceitos

abordados pelo círculo de Bakhtin, principalmente no que se refere à questão da alteridade, do dialogismo, do enunciado, do tema e significação, entre outras discussões fundamentais e que irão embasar a análise do discurso das vozes que se revelaram nesta pesquisa.

O círculo de Bakhtin (1895-1975) é um grupo de intelectuais constituído por pessoas com diferentes formações, que teve como principais integrantes, Mikhail Bakhtin (1895- 1975), Valentim N. Volochínov (1894-1938) e Pável N.Medviédev (- - 1938) e, entre 1919 até 1929, na Rússia, dialogavam sobre temáticas como: linguagem, filosofia, ética, estética, entre outras.

A teoria do círculo de Bakhtin concebe a linguagem como produto das interações humanas, enfatizando o papel do outro na constituição do sujeito, marcando que as interações dialógicas contribuem para a construção de diferentes sentidos, apreendidos por meio do contexto no qual um enunciado17 surge, circula e é compreendido. Sendo assim, conforme indica Bakhtin (2004), a consciência só adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações.

Desse modo, essa pesquisa toma os eventos como base das análises, fundamentadas na concepção bakhtiniana de ato/atividade e evento, que é formado pelos vários atos da atividade humana que são situados concreta e historicamente. O aspecto singular do evento, destacado por Bakhtin, está intrinsecamente relacionado com a concretude do ato. No entanto, a singularidade do ato não descarta os elementos repetíveis, pois, segundo Sobral (2005), a estrutura processual dos atos humanos é a base da possibilidade de generalização a partir do específico. Nesse contexto, Bakhtin (1997) apresenta um sujeito concreto, situado, responsável pelos seus atos. Um sujeito que produz o evento e se produz no evento. Por isso, “[...] recusa tanto um sujeito infenso à sua inserção social, sobreposto ao social, como um sujeito submetido ao ambiente sócio-histórico, tanto um sujeito fonte de sentido, como um sujeito assujeitado” (SOBRAL, 2005, p. 11-12).

Em uma perspectiva dialógica, que considera o homem como ser de linguagem, Bakhtin e seu círculo ressaltam a importância do conceito de alteridade para a formação da consciência do homem. É nas relações alteritárias que os sujeitos se constituem, em um processo que não surge de suas próprias consciências, mas de relações sócio- historicamente situadas.

Como afirma AMORIM, (2004), ao falar sobre alteridade, Bakhtin sustenta principalmente a necessidade do envolvimento com o outro – com o outro concreto, que é o

17O termo “enunciado” é utilizado por Bakhtin (2011, p. 261) como “ato de enunciar, de exprimir, transmitir

sujeito participante, que se responsabiliza pelo outro, não podendo ser substituível nesse ato. Somos constituídos e transformados sempre pela relação com outro, e a alteridade fundamenta-se nessa relação dialógica.

De acordo com Stam (1992, p.12), a linguagem é uma “[...]criação coletiva, parte de um diálogo cumulativo entre o „eu‟ e o outro, entre muitos „eus‟ e muitos outros”. É no diálogo entre as diferentes esferas sociais que se estabelecem os enunciados dos sujeitos.

Para Bakhtin, os enunciados que surgem no processo da fala são dialógicos, independentemente de sua dimensão. Fiorin (2008, p.19), aponta que “[...]as relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados”, Bakhtin denomina de dialogismo. O enunciado é produzido dentro de um contexto que é social, portanto, é sempre um diálogo, isto é, uma relação entre as pessoas. Por isso, tratar o que as crianças estão dizendo na roda de conversa como enunciados, significa reconhecer que naquelas situações estão sendo produzidos sentidos para as experiências das crianças no mundo.

Desse modo, para Bakhtin, o sujeito é um ser dialógico e vai se constituindo na relação com as diferentes vozes sociais. E, nesse ambiente heterogêneo de encontro e de confronto com outras vozes “[...] o sujeito mergulhado nas múltiplas relações e dimensões da interação socioideológica, vai se constituindo discursivamente, assimilando vozes sociais e, ao mesmo tempo, suas inter-relações dialógicas” (FARACO, 2009, p.84).

Fundamentando-se nesse conceito, o teórico buscou mostrar as diversas vozes presentes em um mesmo discurso e a sua historicidade, ou seja, como se constitui a relação de um discurso com o outro. Sobre o ponto de vista de Bakhtin (2014, p. 98-99), não existe objeto que não esteja repleto de discursos, pois,

[...] não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. (BAKHTIN, 2014, p. 98-99).

Para esse autor, a palavra serve a valores ideológicos de maneira que uma palavra não é só uma palavra, mas sim a expressão de algo verdadeiro, falso, correto, bom, ruim. A palavra sem um significado é somente um som vazio; sendo ela um fenômeno ideológico, reflete e representa uma realidade. Desse modo, como signo ideológico, a palavra se faz presente em diversos lugares ao mesmo tempo, adentrando em todas as relações sociais.

Diante desta perspectiva, Bakhtin destaca a importância da fala ao afirmar sua condição social, não individual. Dessa forma, a fala está totalmente relacionada às situações

de comunicação entre os indivíduos, que, por sua vez, estão sempre associadas às estruturas sociais. Assim, a comunicação verbal aparece indissociável das outras formas de comunicação, pois implica conflitos, relações de dominação, de resistência e de adaptação. Isto significa que as esferas da atividade humana, por mais diversas que sejam, estão sempre relacionadas com o uso da linguagem. De acordo com Bakhtin /Volóchinov (2017, p.261),

O emprego da língua efetua-se em formas de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo de atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem [...], mas acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos[...] estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gênero do discurso.

Bakhtin (2011) salienta que os gêneros do discurso constituem-se, então, a partir destes três elementos fundamentais, que são: o conteúdo temático, estilo e construção composicional.

De acordo com Bakhtin (2006), o conteúdo temático é denominado como tema. Para esse autor o tema é o sentido da totalidade do enunciado, determinado não só pelas formas linguísticas como também pelo contexto e pela interpretação do sujeito, “[...]o tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura adaptar-se adequadamente às condições de um dado momento da evolução”(BAKHTIN, 2006, p.134), pois depende da situação histórica à qual pertence. Um tema do enunciado sem os aspectos situacionais passa a ser incompreensível.

Bakhtin aponta que tema e significação são inseparáveis, isto é, não há tema sem significação, como não há significação sem tema. Não se consegue criar a significação de uma palavra isolada sem que ela esteja associada a um tema.

Desse modo, para Bakhtin (2006, p.132-133), “[...]o tema deve apoiar-se sobre uma certa estabilidade da significação; caso contrário, ele perderia seu elo com o que precede e o que segue, ou seja, ele perderia, em suma, o seu sentido‟‟.

Para o círculo de Bakhtin, a forma mais acertada de pensar a interrelação do tema e da significação é a seguinte:

[...]O tema é o limite superior, real, do significar linguístico; em essência, apenas o tema designa algo determinado. A significação é o limite inferior do significar linguístico. Na realidade, a significação nada

significa, mas possui apenas uma potência, uma possibilidade de significação dentro de um tema concreto (BAKHTIN/VOLÓCHINOV, 2017, p.231).

Enquanto a significação tende a ser abstrata, permanente e estável, o tema tende a ser fluído e dinâmico, ou seja, reelabora e renova constantemente o sistema de significação.

De acordo com Cereja (2005), a significação é um estágio mais permanente dos signos e dos enunciados, pois os fatores que a constituem são frutos de práticas sociais e criam indicações de sentido semelhantes em diferentes enunciações. Nessa ótica, Cereja (2005, p.202), observa que, já que a significação está para o signo possuindo possibilidades de criação de sentido da língua, “[...]o tema está para o signo ideológico, resultado da enunciação concreta e da compreensão ativa, o que traz para o primeiro plano as relações concretas entre os sujeitos”.

Portanto, o sentido do enunciado vai depender do contexto da enunciação. Sendo assim, tema é o sentido da enunciação completa, é único e não se repete, pois o sentido formulado no momento da constituição dos enunciados é sempre manifestado dentro de um acontecimento histórico, real, o qual gerou a enunciação. O que for pronunciado será sempre da mesma maneira cada vez que for pronunciado, mas, de acordo com os contextos dos ouvintes e dos diálogos em que os sujeitos estão envolvidos, esse pronunciado irá aparecer na forma de diversos sentidos. É válido ressaltar que os sentidos são também definidos por elementos não verbais, como olhares, expressões, gestos e até mesmo pelos silêncios e não somente pelas palavras ou pelas formas gramaticais (SCHEFFER, 2019).

Nos trabalhos do círculo de Bakhtin, as relações de sentido que se constituem entre enunciados caracterizam a natureza dialógica da linguagem. Para Bakhtin/ Volóchinov (2017, p.216),

O centro organizador de qualquer enunciado, de qualquer expressão não está no interior, mas no exterior: no meio social que circunda o indivíduo. [...] O enunciado como tal é inteiramente um produto da interação social, tanto a mais próxima, determinada pela situação da fala, quanto mais distante, definida por todo o conjunto das condições dessa coletividade falante.

Os enunciados fazem parte do cotidiano e, portanto, não são neutros, e estão carregados de sentidos e valores, consistindo sempre em uma tomada de posição, em um ato responsivo.

Sobre a questão da responsividade, Bakhtin (2011, p.271), entende que, “[...] o ouvinte ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em

relação a ele uma ativa posição responsiva”, isto é, o ouvinte concorda ou discorda, total ou parcialmente ou também completa-o. A compreensão, cedo ou tarde, irá sempre dar uma resposta pois, “[...] toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau de ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta”( 2011, p.271), isso faz com que Bakhtin considere a língua como um elemento de interação entre os sujeitos.

Para Bakhtin, mais do que uma forma de comunicação, a linguagem é uma forma de interação social. O que interessa a esse autor é que a linguagem não é apenas “[...]um sistema de categorias gramaticas abstratas‟‟ (FARACO, 2009, p.56), mas sim, uma língua viva, que se manifesta nas diferentes vozes sociais e em seus enunciados concretos. Desse modo, todo enunciado está ligado a um diálogo discursivo, sendo o lugar ativo daquele que fala. Portanto, linguagem nesta perspectiva dialógica, situa-se como elemento primordial para o desenvolvimento do sujeito, com base na interação com o outro, o meio social e a cultura.

Ao conceber o homem como um ser histórico e produto de um conjunto de relações sociais, Bakhtin corrobora com os postulados teóricos de Vigotski, para quem o conhecimento é construído historicamente pelos sujeitos em suas relações humanas através da linguagem. Sendo assim, no tópico a seguir serão apresentadas algumas ideias, princípios e conceitos da teoria histórico cultural de Vigotski que também contribuem com esta pesquisa.

No documento miriamnogueiraduquevillar (páginas 53-58)