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A multiplicidade das significações é o índice que faz de uma palavra uma palavra. (BAKHTIN, 2006. p. 130)

A literatura enquanto prática discursiva social auxilia na percepção e na confirmação da identidade dos distintos grupos sociais. Por outro lado, a presença do silêncio, reflexo da mulher dominada, denuncia uma recorrente ausência de voz no discurso literário, atravancando o percurso natural das possibilidades múltiplas de alcance de uma palavra dita sob o ponto de vista feminino. Em Vozes Femininas no “Quilombo da Literatura”: a interface de gênero e raça nos cadernos negros, Adélia Regina da Silva Mathias reflete sobre a tese do pesquisador Amauri Rodrigues da Silva que trata de personagens negras na Literatura Brasileira. A autora chama a atenção para a recorrente presença do silêncio nas obras literárias canônicas, denunciando que a inexistência da voz negra, no discurso narrativo, retrata um contexto grupal em desfavorecimento a seu aspecto individual. Essa representação coletiva legitima e valida “os discursos não ficcionais”, patenteando o poder do não dizer como premissa do não ser e relegando a essas personagens um lugar à margem da tecitura literária, personagem que carrega um duplo de invisibilidade: enquanto negra e enquanto mulher. Observa-se, então, que a complexidade do silêncio, segundo Silva, está em conceituar sua significação, já que “o não dito é fluido e pode ser manipulado”. No âmbito da palavra escrita, o silêncio é o “não escrever/dizer, e, inegavelmente, também significar” (MATHIAS, 2014, P.10) cujas implicações resultam em múltiplas significações. Desse modo, não se furta a ideia de que o silêncio:

[...] tem matizes, também tem dimensões. Igualmente, o silêncio manifesta- se de formas diferenciadas, e a forma de silêncio que mais interessa é aquela ligada à sua dimensão política, isto é, a dimensão do silenciamento porque esta é a que melhor dá sentido à minha proposta crítica. É nessa dimensão que se encontra toda a problemática de “cercear” a palavra, de “tirar” a palavra, de “conduzir” a palavra, a partir dos atos de obrigar a dizer, de fazer calar, da interdição de dizer, enfim, de silenciar ambígua e intencionalmente. (SILVA, apud MATHIAS, 2014, p.10)

Em A formação da literatura brasileira, Antonio Candido, ao se ocupar com o surgimento de uma tradição literária brasileira, ramificação da literatura europeia, por isso síntese de tendências universais e particulares, conceitua literatura como um sistema de obras ligadas cuja interação se dá em torno do triângulo "autor-obra-

publico". Essa continuidade incessante, por sua vez, gera uma tradição literária. A partir desse conceito de sistema literário, o autor apresenta como os agentes desse campo fortalecem a rede de obras aprovadas pelo grupo detentor do poder, procurando definir ao mesmo tempo o valor e a função dessas obras. Isso corrobora a concepção de habitus de Bourdieu a qual se baseia em uma relação homóloga entre o espaço em que o indivíduo está inserido na sociedade e o espaço simbólico, já que o habitus é convencionado pelos valores sociais, culturais, históricos, ideológicos e, principalmente, à posição que esse indivíduo ocupa no espaço social, pois os:

[...]agentes que ocupam posições vizinhas nesse espaço [...] estão sujeitos aos mesmos fatores condicionantes; consequentemente eles têm toda a chance de desenvolver as mesmas disposições e interesses e de produzir as mesmas práticas e representações. Aqueles que ocupam posições semelhantes têm toda a chance de desenvolver o mesmo habitus. (BOURDIEU, 1987)

Essa argumentação nos conduz à reflexão acerca das várias forças que operam no campo literário. Pierre Bourdieu elaborou diversos estudos sobre as disputas sociais e o exercício de poder. Noções de campo, poder simbólico e habitus, desenvolvidas pelo referido sociólogo, ajudam a entender as relações que se dão no âmbito da literatura no cenário contemporâneo. O campo, a que o francês se refere, caracteriza-se como um espaço social dos agentes cujas ações, individual e coletivamente, são geradas e transformadas continuamente; constituindo, assim, uma disputa de poder que traz em seu bojo a necessidade de se definir quem é o detentor ou não desse poder simbólico. Tal espaço ou estrutura possui uma dialética determinada e determinante, conforme as influências sociais, que produzirão valores e normatizações, padronizando o senso comum. Nesse contexto, a luta simbólica pelo poder determinará o que será considerado erudito ou popular, na Literatura, e, dos elementos de triunfo, formar-se-ão diferentes habitus, cujos universos simbólicos supervalorizarão determinadas obras em detrimento de outras. Essa arena cultural literária, espaço formado por escritores/as, editores/as, revisores/as, leitores/as, críticos/as, livreiros/as, livrarias, possui agentes que se relacionam, num conjunto social, onde diferentes campos dão origem a espaços sociais mais amplos, porém, afins, influenciadores e influenciados reciprocamente. Essa atuação conjunta

é sinônima de campo literário. A respeito do assunto campo literário, Virgínia Leal, resume-o como:

[...] o espaço onde se definem as relações de legitimação e reconhecimento entre diversos agentes: escritoras e escritores, editoras e editores, a crítica – acadêmica e jornalística –, instituições, canais de venda, meios de comunicação, o sistema de ensino, etc. De acordo com essa teoria, as mudanças externas ao campo literário provocam alterações nas posições de seus agentes, ao permitir a chegada de novas/os produtoras/es e consumidoras/es. (LEAL, 2010, p. 183)

Um habitus conservador rege, então, o campo literário brasileiro, afastando de suas apreciações quaisquer conceitos literários que neguem estereótipos já cristalizados historicamente pelos agentes, indicando esses lugares-comuns como legítimas manifestações da arte literária. Randal Jhonson, adentrando essa temática, diz que:

A primeira instância da avaliação da produção literária é a indústria editorial, a seguinte é a crítica literária, o que a torna uma segunda instância de reconhecimento e legitimação. Como no campo literário de que faz parte, a crítica desenvolve suas próprias regras de operação, sua própria hierarquia e suas próprias estruturas de autoridade. Na verdade ela é uma das condições da existência e de sustentação da obra literária enquanto tal. (JOHNSON, 1995)

É concebível, portanto, estabelecer uma distinção entre os conceitos de campo e o de sistema. Aquele determina as relações existentes entre os produtores e agentes envolvidos na criação literária; esse auxilia na compreensão da existência de uma continuidade de princípios de usos sociais, criando não somente um conjunto de valores compartilhados, mas também a convicção de que se perpetuam e construirão uma identidade nacional de tendenciosa repetição dinâmica. Sem espaço para atuar, a invisibilidade, desta forma, continua sendo uma dificuldade para o grupo de quaisquer minorias: mulher, negro, pobre, pois se depara com o fortalecimento e a cristalização de imagens pré-concebidas que se mantêm por causa disso.

Regina Dalcastagnè coordenou a pesquisa sobre personagens nos romances da Literatura Brasileira Contemporânea, dedicando-se aos romances brasileiros publicados, entre 1990 e 2004, num total de 258 romances. Nessas obras, foram levantados dados como posição na narrativa, sexo, raça, idade, ocupação, entre outros. Parte da pesquisa apurou informações sobre os/as autores/as desses

romances que foram escritos por 165 autoras/es diferentes, dos quais 72,7% são homens, ou seja, quase três quartos dos autores publicados. Apesar da evolução da condição feminina, em vários aspectos sociais a literatura, no que tange ao romance, ainda é um espaço social quase exclusivo ao homem devido às dificuldades que uma mulher enfrenta para escrever sejam quais forem as causas. Em referência à Virginia Woolf, Adélia Regina da Silva Mathias destaca que, apesar da contribuição de estudiosos(as) para anunciar e denunciar a parca participação da escrita feminina, ainda é “majoritariamente masculina a produção discursiva na literatura” (MATHIAS, 2014, p.67). Esse panorama não é restrito às editoras mais prestigiosas já que uma relação de 130 romances brasileiros, lançados em 2004, organizada para um prêmio literário, indica apenas 31 títulos escritos por mulheres, isto é, 23,8%2. Assim, não se intui, segundo a pesquisa de Dalcastagnè, se as mulheres escrevem menos ou se possuem menos acesso para publicarem nas editoras mais prestigiosas, ou ambos, ou outros fatores inclusos. Esses dados são importantes uma vez que explicitam qual é o lugar de fala de grande parte das pessoas que produzem literatura no Brasil e como isso influencia no resultado das produções desses autores/as pesquisados/as. Ainda que devam ser considerados outros aspectos como classe social, faixa etária das/os autoras/es e outras variáveis; o que escrevem, e o que não escrevem, atua sobre o modo como se dão as relações sociais.

Como o número de autores homens é notavelmente superior, pode-se inferir ainda que o conjunto dessas obras contribui pouco para a diversidade da abordagem das relações interpessoais sob o ponto de vista marginal do feminino ao mesmo tempo em que o ponto de vista desses autores é legitimado por seu grupo social. Sendo assim, a inclusão de obras escritas por qualquer grupo marginal não consegue adquirir prestígio relevante para interferir no funcionamento do campo literário brasileiro. Enquanto gênero, o romance assevera a seus leitores e/ou leitoras, que têm cores, idades, crenças, instrução, classes sociais, perspectivas muito diferentes entre si, uma pluralidade; reflexo de um sistema de “representações de linguagens”, nos termos de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin (1988, p.205), que envolve não só

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A lista foi elaborada, em 2005, pela organização do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, em meio a uma relação mais ampla, de 361 obras literárias, de todos os gêneros, publicadas no ano anterior. Embora ampla, a lista não é exaustiva e contém erros, como a inclusão de algumas reedições.

personagens e narradores(as), mas também seus(suas) leitores(as) e autores(as). Reconhecer-se em uma representação artística ou reconhecer o outro nela, faz parte de um processo de legitimação de identidades. Por isso o estranhamento quando, para determinados grupos sociais, os lugares de fala, no interior da narrativa, inexiste, é inexpressivo ou quando esses mesmos grupos são ratificados por

estereótipos que continuam sendo reproduzidos pela Literatura Brasileira. Nesse viés, uma literatura mantenedora de uma cultura marginal que submete, silencia e estereotipa tais grupos. Ocorre que a expressão artística se funda exatamente na pluralidade de perspectivas sociais e o silêncio desses grupos marginalizados – entendidos em sentido amplo, como todos aqueles que vivenciam uma identidade coletiva que recebe valoração negativa da cultura dominante, sejam definidos por sexo, etnia, cor, orientação sexual, posição nas relações de produção, condição

física ou outro critério – é sobreposto por vozes que buscam falar em nome deles,

embora tal silêncio possa ser rompido pela produção literária de seus próprios integrantes.

A questão da representatividade, portanto, não se limita a tão somente buscar o olhar do outro e suas peculiaridades, mas, sobretudo, alcançar o ponto chave que caracteriza a diversidade de percepções do mundo cujo acesso à voz não é suprida pela boa vontade daqueles que monopolizam os lugares de fala. Em nome de maior eficácia social por parte daquele que fala, impõe-se um discurso e ao outro só resta calar-se, entrevendo, assim, uma produção discursiva oriunda de uma sociedade controladora e seletiva.

Para Michel Foucault, diante de um discurso que revela uma censura social velada,

uma negação do direito de fala, que silencia os grupos dominados, “o essencial é a multiplicação dos discursos [...] no próprio campo do exercício do poder” (FOUCAULT, 2005, p. 22). Não se trata apenas da possibilidade de falar, preceito da liberdade de expressão preconizado e incorporado no ordenamento jurídico da Carta Magna de 1988, que infere no caput do Artigo 220: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988), mas de fazê-lo com autoridade e autonomia, isto é, o reconhecimento social e valorativo da narrativa sob a ótica marginal.

Inserindo, assim, a premissa constitucional, defendida pelo Professor Gleuso Damasceno Duarte, de que “é necessário assegurar a liberdade de pensamento, de criação e de expressão” (DUARTE, 1995).

Pierre Bourdieu expande a temática ao afirmar que as mulheres aplicam à sua realidade social esquemas de pensamento oriundos da incorporação das relações de poder em que estão subjugadas, por conseguinte, seus atos de conhecimento são atos de reconhecimento prático, de adesão, de crença dóxica e que faz, de certo

modo, a violência simbólica que ela sofre. Acrescentando ainda que:

O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura, de língua etc.) se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos habitus e que fundamentam, aquém das decisões da consciência e dos controles da vontade, uma relação de conhecimento profundamente obscura a ela mesma. (BORDIEU, 2002)

Introduz-se, então, um jogo simbólico de dominação masculina que perpassa o social e adentra ao universo da expressão literária. Por outro lado, os excluídos ratificam sua incapacidade de produzir literatura exatamente porque a concepção deste termo exclui suas formas de expressão, circunscrevendo um espaço monopolizado que corresponda aos modos de manifestação de alguns grupos, não de outros. Nesse emaranhado simbolismo de poder, perde-se em diversidade por não haver uma pluralidade de perspectivas sociais.

Rita Terezinha Schmidt sintetiza o esboço defendido pelas literaturas não canônicas:

A simples redução da diferença à polarização cânone/contra-canône parece-me ser uma oposição essencialista e improdutiva, que reproduz o binarismo centro-margem, fixando identidades culturais numa hierarquia imposta ou presumida. Sendo assim, sou levada a crer que essa polêmica não nos serve. A postura estratégica mais rentável para descentrar o centro e reconfigurar as margens reside no processo de disjunção e deslocamento desse referencial, pois somente dessa forma poderemos assumir nossa cultura como registro dos imaginários múltiplos que nos constituem. (SCHMIDT, 1996:121)

Faz-se preponderante a democratização do fazer literário como veículo de atenuação da exclusão de determinados grupos, os que ficam à margem, sem voz, algo não exclusivo do campo literário. No entanto, é, na literatura, que a manifestação da legitimidade social encontra espaço de destaque. Numa crítica

análise, Regina Dalcastagnè assevera que a literatura

é um artefato humano e, como todos os outros, participa de jogos de força dentro da sociedade. Essa invisibilização e esse silenciamento são politicamente relevantes, além de serem uma indicação do caráter excludente de nossa sociedade (e, dentro dela, de nosso campo literário). (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 22)

Em seu ensaio Pode o subalterno falar?, Gayatri Spivak afirma que as pessoas, em situação de subalternidade, não conseguem efetivamente ter uma voz. Revela também que muitas vezes indivíduos que sofrem diferentes níveis de opressão não têm espaço público legitimado para falarem e serem escutados com respeito e/ou dignidade. “Para o ‘verdadeiro’ grupo subalterno, cuja identidade é a sua diferença, pode-se afirmar que não há nenhum sujeito subalterno irrepresentável que possa saber e falar por si mesmo” (SPIVAK, 2010, p.60-61). Tal vertente pode ser aplicada, no espaço literário, pois a permanência da mulher, nas margens, em séculos de literatura, permite-nos estabelecer que a voz dos homens não tem gênero e por isso a existência de duas categorias: a “literatura”, sem adjetivos, e a “literatura feminina”, presa a seu “gueto”, cuja produção literária, crítica e teórica encontram empecilhos para se legitimar.

Ainda hoje, as reivindicações de articulações sociais como os feminismos, dentre outros entendidos como minorias, não têm eco substancial para reverberarem suas pautas diante de uma coletividade maior: a sociedade. Quando se fala em Literatura sem nenhum adjetivo para acompanhá-la, o discurso da crítica literária tradicional está baseado em padrões excludentes que não abarcam diferenças sejam de gênero, raça, classe, idade, sexualidade.

Gayatri Spivak tematiza o problema da representação de um grupo oprimido/subalterno quando esta é feita por um intelectual. Para a autora, a produção de teoria também é uma prática, e “a oposição entre teoria abstrata ‘pura’ e prática concreta ‘aplicada’ é um tanto apressada e descuidada” (SPIVAK, 2010, p.31). Desse modo, segundo Mathias, a crença de que um(a) teórico(a) represente com total fidelidade as aspirações do grupo oprimido implica na convicção do mesmo numa “objetividade, impessoalidade e universalidade; conceitos já desconstruídos por teóricos/as como Stuart Hall, Judith Butler, Derrida, Walter

Mignolo, Aníbal Quijano e tantos/as outros/as” (MATHIAS, 2014, p.21).

Sob esse ponto de vista, falar pelo outro é também uma forma de silenciá-lo/a. Isso só não repercutiria negativamente se se esse outro também pudesse falar por si próprio/a. A literatura além de produzir entretenimento e prazer, produz saberes e visões de mundo por meio de seu discurso específico, revelando, assim sua influência social, pois ser representado/a inadequadamente gera um movimento ao revés em busca de outras possibilidades; verdadeiras, reais e capazes de contrastarem com estereótipos já ratificados. Observa-se que estar no lugar do outro não implica em um problema. A dificuldade somente surge quando vozes são silenciadas para favorecer apenas a representação do grupo hegemônico sem o consentimento da manifestação diferenciada do eu oprimido. Por outro lado, a negação disso implica insistir na perpetuação de uma forma de opressão, que elimina da literatura as marcas da diferença social e expulsa para os guetos tantas

vozes potencialmente criadoras.

A arena literária brasileira é uma área excludente. Constatação irrefutável, já que se insere num universo social que, por sua vez, é também extremamente restrito. Como os números da pesquisa indicam eloquentemente, carece ao romance brasileiro a incorporação da representação das vivências, dramas, opressões como também das fantasias, esperanças e utopias dos grupos sociais silenciados; sejam eles definidos por classe, gênero, raça, orientação sexual ou por qualquer outro critério. Romper com essa estrutura de pensamento é mais difícil quando não se compreende que nosso olhar é reflexo de nossa relação com o mundo cujas influências são intermediadas pela história, pela política, pelas estruturas sociais3. E que, desta forma, toda e qualquer apreciação literária é regida por interesses por mais difusos que eles sejam.

É importante ressaltar que a representação plena de um grupo é impraticável, visto que não há grupos formados por “integrantes homogêneos”. Todavia, os indivíduos que os compõem têm algumas necessidades afins. Sob essa perspectiva, pendemo-

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Sobre essa discussão ver EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. de Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1983 e BOURDIEU, Pierre. Gênese histórica de uma estética pura. In: O poder simbólico. Trad. de Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1989.

nos ao conceito de “fundamentos contingentes”, vocábulo concebido por Judith Butler (BUTLER, 1998), como também ao de “essencialismo estratégico” desenvolvido por Spivak (SPIVAK, 2010), pois ambas as concepções conjecturam a possibilidade de “agenciamentos coletivos”, ainda que existam questões distintivas entre partícipes no interior dos grupos. Ao discorrer sobre o sujeito mulher, nos feminismos, a filósofa Butler afirma que:

Desconstruir o sujeito do feminismo não é, portanto, censurar sua utilização, mas, ao contrário, liberar o termo num futuro de múltiplas significações, emancipá-lo das ontologias maternais ou racistas às quais esteve restrito e fazer dele um lugar onde significados não antecipados podem emergir. (BUTLER, 1998, p. 36)

Nossa Literatura apresenta, por consequência, uma perspectiva social oblíqua,

tendo em vista a exclusão da voz literária desses grupos silenciados nos espaços de

produção do discurso. A criação e conservação de estereótipos revalidam imagens e

representações de grupos de poder, vigorando, no campo literário, a mesma regra existente na política, na qual “a um grupo dominado resta apenas opção de calar ou ser falado [por outros] 4”. Ocorre, desta forma, a deslegitimação das formas de

expressão marginal. Por outro lado, ainda que, depreciativos, tais imagens provocam

a organização e o fortalecimento dos grupos estigmatizados que, exauridos da má representação, visam à desconstrução dessas imagens inadequadas, oriundas dos discursos hegemônicos5. Isso propiciaria o legado de uma representação diferenciada desses grupos marginais que não se sentem representados devido aos estereótipos criados e mantidos pela literatura canônica já que não contabiliza a pluralidade das diferentes imagens possíveis dos mesmos.

O problema da representação feminina não condena vozes minoritárias a restringirem-se à cultura marginal. A verdadeira questão não é quem deveria falar e de que perspectivas, mas como assegurar às mulheres acesso integral e idêntico às

4 Miguel, “Representação política em 3-D”, p. 134.

5 Teórico da análise do discurso, Fairclough declara que Hegemonia é liderança tanto quanto autoridade nos domínios econômico, político, cultural e ideológico de uma sociedade. Hegemonia é o poder sobre a sociedade como um todo de uma das classes economicamente definidas como fundamentais em aliança com outras forças

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