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A literatura vista de baixo: conceitos e métodos

A história da literatura ocidental é marcada por uma distinção fundamental, difícil de ser percebida em um primeiro olhar, devido à falta de contrapontos sistemáticos à sua gloriosa hegemonia – a distinção entre quem pode e quem não pode representar a si mesmo.

Tal distinção, que poderíamos chamar de direito de representação – corolário das diversas distinções sociais que envolveram e envolvem a trajetória humana em diversos tempos e lugares – foi historicamente acompanhada por outra: distinção entre o que deve e o que não deve ser representado conforme o que cada época classificou (no sentido de “hierarquia social” e de “ordenamento”), em termos éticos ou estéticos, através do binômio básico alto/baixo.

Reflitamos sobre essas categorias.

Para compreender o que chamamos de “direito de representação” é preciso primeiro esclarecer o que entendemos aqui pelo termo representação.

Gayatri Spivak, analisando uma passagem do Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, em que Marx se detém sobre as formas de representação política dos pequenos camponeses pela figura de Napoleão III, distingue os significados das duas palavras que o idioma alemão oferece para o verbo “representar”. A primeira é vertreten e teria um significado predominantemente político (“falar em nome de”, “defender”); a outra palavra é darstellen e seu significado seria predominantemente mimético (“falar no lugar de”, “apresentar”). Quando falamos em “direito de representação” no nosso trabalho, estamos utilizando os dois significados de “representação”, apontados por Spivak, simultaneamente (Cf. SPIVAK, 2003, p. 309- 311).

Aristóteles, em sua Poética, ao tratar de distinguir as características da Tragédia em relação à Comédia, é o primeiro pensador do mundo ocidental a estabelecer uma divisão entre o “alto” e o “baixo”, ou seja, o que é digno de figurar

em cada gênero, utilizando para isso critérios morais, conforme podemos perceber na seguinte passagem:

Como os imitadores imitam pessoas em ação, e estas são de boa ou má índole (porque os caracteres quase sempre se limitam a esses), sucede que, necessariamente, os poetas imitam homens melhores, ou piores, ou então iguais a nós, como o fazem os pintores: Polignoto representava os melhores; Pausão, os piores; Dionísio, como era, Cada imitação se compõe dessas diferenças, e cada uma delas variará, por imitar coisas diferentes. (ARISTÓTELES, Linha 1448a. 1-8)

Se resta a dúvida sobre a quem se refere esse “nós” colocado entre os homens superiores e inferiores, “Seria o cidadão ateniense, por oposição ao mundo de heróis e deuses, ou seja, superiores, e por oposição aos inferiores, escravos, estrangeiros, pessoas sem direito à vida democrática, etc.?” (POSSEBOM, 2003, p. 32), Aristóteles deixa claro que, na sua visão, são os objetos da representação, ou seja, os homens e sua divisão em “superiores” e “inferiores” o critério para separar o Sério e o Cômico, o Alto e o Baixo: “a mesma diferença se encontra na tragédia e na comédia; esta procura imitar os homens inferiores ao que realmente são e, aquela, superiores” (ARISTÓTELES, Linha 1448a).

As origens da Tragédia e da Comédia, apesar de possíveis pequenas diferenças geográficas e entre seus primeiros promotores, apresentam um fundo comum, as celebrações a Dioniso, deus grego do vinho – se ligam necessariamente, portanto, ao campo e aos cortejos populares. Ainda segundo Aristóteles, a primeira nasce “por obra dos solistas dos ditirambos” e a segunda advém da atuação dos “solistas dos cantos fálicos” (ARISTÓTELES, 1999, p. 41). Apesar dessa origem comum e da pouca estima de que gozavam por seu caráter popular, os dois gêneros poéticos seguiram caminhos diversos.

A Tragédia, à custa de algumas modificações formais e temáticas, conquistou seu status de gênero nobre. Que modificações foram essas? Aristóteles explica: “quando passou a ser mais extensa, quando abandonou a narrativa curta e a linguagem grotesca e satírica”. Percebe-se que a condição para a Tragédia conquistar seu estatuto de nobreza foi se afastar, paulatinamente e cada vez mais, de seu elemento mais caracteristicamente popular, o grotesco. Em outras palavras, o gênero trágico livrou-se justamente do que, mais uma vez segundo Aristóteles, é a própria “essência” da Comédia: “A comédia, como dissemos, é imitação de gentes

inferiores; mas não em relação a todo tipo de vício e sim quanto à parte em que o cômico é grotesco” (ARISTÓTELES, 1999, p. 42).

Pelo exposto até aqui poderíamos estabelecer uma definição de “alto” e de “baixo” nas artes e no pensamento estético ocidentais em suas “origens” – o primeiro refere-se às classes dominantes (reis, nobres, generais etc.), que controlam a vida econômica, social e política em determinada sociedade que devem receber tratamento sério nas diversas representações artísticas; o segundo, às classes subalternas (escravos, mulheres, iletrados etc.), a quem geralmente cabe a omissão ou o tratamento cômico. O direito de representação, portanto, é um privilégio que acompanhará historicamente as primeiras, em detrimento das segundas.

A cultura ocidental e o pensamento sobre as artes foram profundamente marcados pelas divisões e julgamentos de Aristóteles sobre o “alto” e o “baixo”, de alguma forma, até os nossos dias.

Recalcada, diminuída ou ridicularizada, a perspectiva dos de baixo poderá, entretanto, ser encontrada em algumas manifestações culturais específicas situadas em lugares e períodos determinados, assumindo um direito de representação que escapava ao controle das instâncias sociais hegemônicas. Um exemplo consagrado dessas manifestações – que, inclusive, iriam depois plasmar-se com determinadas produções estéticas dentro da esfera do “alto” – é o carnaval medieval.

Nesse tipo de manifestação essencialmente popular, encontra-se o que Bakhtin chama de a “percepção carnavalesca do mundo”. É o que o teórico da literatura russo defende em seu famoso estudo sobre Rabelais, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:

Ela caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamento de bufões. (BAKHTIN, 2010, p. 10)

Conforme as palavras de Bakhtin, podemos perceber que o carnaval medieval transgride violentamente as divisões entre “alto”/ “baixo” estabelecidas pela Poética, ridicularizando as divisões e os espaços de atuação geralmente estabelecidos entre os diferentes estamentos sociais.

Durante o Renascimento, muito da visão de mundo e das manifestações das classes subalternas serão fundidas à cultura hegemônica, como podemos ver na obra Gargântua e Pantagruel, do já mencionado Rabelais, por exemplo. Observemos, porém, que nessas obras e autores, apesar das distinções entre “alto” e “baixo”, “sério” e “cômico” estarem drasticamente esgarçadas, é ainda a perspectiva das classes hegemônicas a que predomina, pois são autores da tradição erudita que se apropriam de elementos (temas e formas) do universo popular e não o contrário. Esse fato foi percebido pelo historiador italiano Carlo Guinzburg que, ao comentar o livro A cultura popular, de Bakhtin, observa que

(…) o limite do belíssimo livro de Bakhtin talvez seja outro: os protagonistas da cultura popular que ele tentou descrever – camponeses, artesãos – nos falam quase só através das palavras de Rabelais. É justamente a riqueza das perspectivas de pesquisa indicadas por Bakhtin que nos faz desejar, ao contrário, uma sondagem direta, sem intermediários, do mundo popular. (GUINZBURG, 2006, p. 15)

Essa por assim dizer “confusão” entre o “alto” e o “baixo” dentro da produção erudita iria durar pouco. Já no século XVII, essas divisões voltariam a ser exercidas em termos plenos – através da ação de diversos setores hegemônicos (jesuítas e protestantes, sobretudo) – em busca de eliminar a cultura popular e reforçar sua autoridade intelectual ameaçada pela produção e circulação de livros, as quais ganharam um grande impulso com a invenção da imprensa ainda no século XVI (GUINZBURG, 2006, p. 190).

Na lúcida análise de Bakhtin sobre as categorias estéticas na perspectiva das classes hegemônicas a partir desse período (século XVII em diante), podemos destacar as seguintes características: o cômico – e, portanto, “baixo” – pode referir- se apenas a fenômenos de caráter parciais e negativos; as grandes figuras históricas (“reis, chefes de exército, heróis”) devem receber necessariamente tratamento sério; o tratamento cômico deve ser destinado apenas aos “estratos mais baixos da sociedade” (BAKHTIN, 2010, p. 57-58).

Diante disso, não é de se estranhar que, mesmo diante da grande mudança de paradigma para a representação das classes subalternas e para a literatura em geral que foi o advento do Realismo europeu no final do século XVIII e início do XIX, na França e na Inglaterra – através de nomes como Stendhal, Balzac, Flaubert, Defoe, Richardson e Fielding – a perspectiva das classes dominantes fosse ainda a

que predominasse no tratamento do material narrativo. Conforme diz-nos Erich Auerbach, em seu livro Mimesis (2007, p. 446), nas obras desses autores “as camadas mais baixas do povo, o povo propriamente dito, mal aparece; e quando aparece, não é visto a partir de seus próprios pressupostos, na sua própria vida, mas de cima” – grifos nossos. Quais seriam esses “pressupostos” de que fala o historiador e crítico alemão é o que tentaremos responder mais adiante.

O surgimento da estética realista nas letras europeias esteve estreitamente ligado à ascensão de um gênero literário tipicamente burguês – o romance.

Apesar de ainda ligado à perspectiva das classes hegemônicas, o romance trouxe importantes inovações para a representação da realidade no ocidente. Entre essas inovações podemos citar o que o crítico Ian Watt chamou de “realismo formal”, um “conjunto de procedimentos narrativos”, cujo principal fundamento seria a “visão circunstancial da vida”, a saber, um compromisso com a verossimilhança e a autenticidade na descrição da experiência humana, atentando para detalhes antes quase ignorados por outros gêneros como a individualidade das personagens, as particularidades de local e tempo das ações dessas personagens e o emprego, em consonância com essas exigências, de uma linguagem fortemente referencial (WATT, 1990, p. 31).

Não foi apenas o realismo formal que despertou nos autores realistas da primeira metade do século XIX o interesse “sério” pelas classes pobres e subalternas, mas uma pronunciada curiosidade por tudo o que fugisse do universo social e cultural de seus leitores burgueses e pudesse provocar neles novas sensações, mesmo o choque ou a repulsa. O que levou os escritores desse período a oferecer um lugar para os setores subalternos em suas narrativas foi a procura pelo exótico, inevitavelmente deixando de fora da representação do “povão” elementos fundamentais do funcionamento dele: “o seu trabalho, o seu lugar dentro da sociedade moderna, os movimentos políticos, sociais e morais que vicejam nele e visam ao futuro” (AUERBACH, 2007, p. 448).

Tratamento mais completo essas classes só viriam a ter já sob a égide do Naturalismo, em um livro como Germinal, de Émile Zola, com suas descrições sobre a vida de uma comunidade de mineradores no norte da França, feita de trabalho

pesado, alegrias grosseiras, privações e embrutecimento sexual. O que vemos nesse livro é uma verdadeira inflexão na narrativa burguesa, uma evolução do “realismo formal” apontado por Watt nos primeiros romances realistas. Não é por acaso que, junto com a admiração de alguns, tenha chocado uma imensa parcela do público e da crítica, surpreendidos por verem as classes mais baixas do povo recebendo um tratamento que não estava ligado ao estilo “baixo” ou cômico, mas da forma mais séria e moralista possível (AUERBACH, 2007, 458).

Reconhecendo o papel de Germinal no tratamento literário sério das classes subalternas, é preciso, todavia, insistir no seguinte: o ponto de vista, a perspectiva do livro ainda é a de um autor saído de uma classe hegemônica – no caso, a burguesa – através do código erudito. Portanto, o direito de representação ainda não passou para as mãos de alguém pertencente à esfera dos dominados. Estamos diante de uma representação das classes subalternas do tipo darstellen, com Zola colocando-se “no lugar de” seu “objeto”, o povo, ou seja – o subalterno ainda não falou.

Ora, se mesmo o tratamento literário mais sério possível das classes subalternas ressente-se de uma perspectiva que fuja à perspectiva hegemônica, onde encontrar então uma perspectiva diferente da “de cima”? Onde buscar essa “voz” que é impedida sistematicamente de vir à tona? Como fundamentar uma literatura vista de baixo? No que se convencionou chamar de “literatura popular”? São essas as perguntas que gostaríamos de tentar responder agora.

O que se convencionou chamar no Brasil de “literatura popular” tem a nosso ver pelo menos três inconvenientes: a) pressupõe formas fixas, herdadas do passado e da literatura medieval ibérica, geralmente envolvendo um imaginário do campo e, portanto, não dá conta das produções que não obedecem a formas fixas e constroem-se dentro do universo urbano na contemporaneidade; b) pressupõe uma criação coletiva, do tipo “cancioneiro popular”, em que as vozes individuais dos autores – com algumas exceções – não são consideradas nas suas singularidades estilísticas; c) é uma classificação geralmente feita “de cima para baixo”, ou seja, por agentes da cultura erudita, que deste modo distinguem-se e circunscrevem para si um espaço de prestígio dentro do campo literário, deixando para os autores “populares” um lugar geralmente à margem do referido campo.

É preciso destacar também que – apesar de formas poéticas “populares” como o cordel terem sido praticadas por autores da tradição erudita, como Ferreira Gullar, por exemplo – sua produção, circulação e consumo sempre foram historicamente associados às classes pobres e subalternas, fato que acreditamos contribuir para sua dúbia valoração no campo das letras brasileiras.

Diante dessas limitações que o rótulo “literatura popular” oferece à análise de produções de autores que, embora pertencentes ao “povão”, para usar um termo de Auerbach, não fazem uso de formas literárias herdadas do passado, da tradição ibérica, nem estruturam suas narrativas a partir de um imaginário do campo, como é o caso de Carolina Maria de Jesus, preferimos adotar neste trabalho o conceito de “literatura vista de baixo”. Conceito que, formulado a partir dos estudos históricos contemporâneos – Edward Thompson, Eric Hobsbawn, Le Roy Ladurie e Carlo Guinzburg, entre outros – propõe-se a explicitar os pressupostos que estruturam o olhar estético-literário das camadas subalternas.

Um atrativo extra do conceito de literatura vista de baixo, a nosso ver – e que o afasta ainda mais do rótulo “literatura popular” – é que ele não torna homogêneo o diferente, pois pressupõe a existência de autores singulares, com vozes e estilos que, apesar de partilharem entre si certas características fundamentais, ligadas às condições sociais de seus autores, possuem elementos idiossincráticos.

Nesse sentido, Carolina Maria de Jesus possui uma escrita diferente de Helena Morley (mesmo levando em conta que as duas são autoras de diários), que possui uma escrita diferente de Patativa do Assaré que por sua vez possui uma escrita diferente dos mais recentes Ferréz e Sérgio Vaz.

A literatura vista de baixo pretende resgatar para esses autores o que Guinzburg chamou de “o conceito histórico de ‘indivíduo’” (GUINZBURG, 2006, p. 20).

Outra vantagem do conceito de literatura vista de baixo para os estudos literários é que ele admite a mudança dentro das obras vindas do povo. Tenta dessa forma “corrigir” o viés teórico segundo o qual a arte erudita se modifica através do tempo – com a sucessão de estilos de época, movimentos e tendências como

“Classicismo”, “Romantismo”, “Simbolismo”, “Pós-modernismo” etc. – enquanto a dita “arte popular” permanece estática e monolítica.

Estudar a literatura das classes subalternas é, no entanto, tarefa deveras árdua, já que são parcos os casos de escritores vindos das classes pobres em qualquer lugar do mundo. As limitações que alguém saído dessas classes enfrenta para produzir literatura são de duas ordens: a da luta pela sobrevivência, que se não inviabiliza totalmente a atividade da escrita, ao menos a dificulta extraordinariamente, já que toma às pessoas das classes subalternas o tempo que a concepção e a escrita física de um livro exige; e a da ignorância do código literário erudito, que, parcial ou totalmente, impede de articular seu estilo dentro das expectativas colocadas pela tradição – ou pela vanguarda – literária. Conforme nos diz Marisa Lajolo, referindo-se ao contexto brasileiro:

Independentemente do que tematize, pelo código de que se vale, a produção literária (ao menos a brasileira) foi sempre monopólio dos que detêm os instrumentos do trabalho literário, do polo do autor ao leitor. Queiramos ou não, a produção escrita produzida, circulada, legitimada e consumida como literatura (no nosso país) é invariavelmente confinada às classes dirigentes (LAJOLO, 1983, p. 104).

É ainda a mesma autora que problematiza a presença do discurso do pobre na literatura erudita, enxergando-o como uma real expropriação por parte das classes hegemônicas: “o discurso do pobre presente na nossa literatura pode constituir uma última forma de expropriação, na medida em que não é o pobre o sujeito deste discurso sobre ele” (LAJOLO, 1983, p. 104).

Quando, porém, um ou outro autor vindo das classes subalternas consegue romper as barreiras apontadas e produz uma obra literária, uma das primeiras características que se destacam, verdadeira marca da literatura vista de baixo, é a oralidade, entendida aqui como a mimetização escrita da linguagem falada no cotidiano.

Esse fato se explica pela falta de referências, por parte do escritor da literatura vista de baixo, do código literário e das conquistas estéticas fornecidas pela tradição erudita, o que o leva a utilizar o código verbal que conhece – o código da sua fala do dia a dia.

Esse olhar estético-literário das classes subalternas diferencia-se do olhar erudito também em outro aspecto fundamental: o tratamento dos temas escolhidos Essa diferença é de um tipo muito semelhante a apontada por Antonio Candido em relação à literatura primitiva (no caso específico enfocado, o povo Nuer, do Alto Nilo) e a literatura do mundo civilizado.

Em seu hoje clássico livro Literatura e sociedade, Antonio Candido faz as seguintes observações em relação aos condicionamentos sociais nas formas primitivas e civilizadas de literatura:

(…) as formas primitivas de literatura repousam mais direta e perceptivelmente sobre os estímulos imediatos da vida social, sobretudo os fatos de infraestrutura, que nas literaturas eruditas só aparecem como elemento condicionante depois de filtrados até a desfiguração por uma longa série de outros fatos (CANDIDO, 1965, p.75).

O que Antonio Candido nos explica nessa passagem é que os “estímulos imediatos da vida social” – o frio, o calor, a fome, a sede, o sexo – recebem um tratamento temático diferente pelos produtores de literatura em uma sociedade civilizada com uma cultura erudita e em uma sociedade primitiva com cultura arcaica.

Analisando essa diferença de tratamento no caso particular da comida, praticamente ausente da literatura civilizada como “fonte de lirismo”, Antonio Candido nos dá uma excelente explicação do fenômeno:

Os grupos que produzem literatura, entre nós, vivem num meio que resolveu teoricamente o problema do abastecimento regular, e adotam modelos sugeridos pela ideologia de classes que não participam diretamente no processo de obtenção dos meios de vida. Por isso, apenas nas obras de cunho realista ou grotesco o alimento aparece na sua realidade básica de comida. Nas obras de expressão lírica e timbre emocional elevado, só se manifesta despido da sua natureza específica e reformulado em função dos valores estéticos da civilização (CANDIDO, 1965, p.81).

As observações de Candido sobre a literatura no mundo civilizado, em contraposição ao primitivo, assemelham-se bastante às análises de Pierre Bourdieu sobre o que este autor chamou de “estética pura”, marcada pela distância da necessidade material e a negação do mundo social e em conformidade com a situação de criadores de arte que não “participam diretamente no processo de obtenção dos meios de vida”:

A estética pura enraíza-se em uma ética ou, melhor ainda, no ethos do distanciamento eletivo às necessidades do mundo natural e social que pode assumir a forma de um agnosticismo moral (visível quando a transgressão ética se torna um expediente artístico) ou de um estetismo que, ao constituir a disposição estética como princípio de aplicação universal, leva ao limite a denegação burguesa do mundo social. Compreende-se que o desempenho do olhar puro não possa ser dissociado de uma disposição geral em relação ao mundo em que é o produto paradoxal do condicionamento exercido por necessidades econômicas negativas – o que é designado como facilidades – e, por isso mesmo, propício a favorecer o distanciamento ativo à necessidade. (BOURDIEU, 2011, p. 13)

Ora, nas camadas subalternas, onde a privação alimentar é uma realidade constante, assim como no mundo primitivo, encontraremos, de um modo geral, um tratamento estético do tema comida diferente dos autores das classes hegemônicas que solucionaram “teoricamente o problema do abastecimento regular”. Ilustremos esta afirmação com dois exemplos – um, tirado de um autor das classes hegemônicas, outro, de uma autora das classes subalternas – para que o confronto torne as formulações mais claras.

Em “As peras”, Ferreira Gullar (2004, p. 18) utiliza-se da figura das frutas que batizam o poema para expressar sentimentos ligados à passagem do tempo, dos limites da poesia, da separação entre o “eu” e o mundo. O que predomina é o tratamento plástico das frutas:

As peras, no prato apodrecem.

O relógio, sobre elas,