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2. Que loucura poderá servir o Evangelho?

2.2. A singularidade da “loucura” de Paulo

2.2.3. A “loucura” paulina

Como já tivemos oportunidade de verificar, o emprego do termo mwro,j, e dos que têm a mesma raiz é quase exclusivo do epistolário paulino.

Analisemos brevemente as ocorrências do termo fora da perícope 1 Cor 1, 10-4, 21, que aprofundaremos posteriormente.

Em Rm 1, 22, o verbo “tornar-se louco” (evmwra,nqhsan - mwrai,nw, 3ª pessoa do plural) é utilizado para insultar aqueles que deixaram de adorar a Deus e começaram a adorar imagens de homens ou de animais: “Afirmando-se como sábios, tornaram-se loucos”. O termo assume o sentido pejorativo próprio do grego clássico e da Koiné.169

As passagens de Ef 5, 4; 2 Tm 2, 23 e Tt 3, 9 apresentam a loucura associada às palavras vãs. Paulo adverte os cristãos a precaverem-se da “tolice”, das “palavras loucas” (mwrologi,a),

166 Cf. Folie In Xavier LÉON-DUFOUR, Vocabulaire de Théologie Biblique, 487; Cf. P. FIEDLER, mwri,a;

mwrai,nw; mwro,j, 450.

167 Cf. P. FIEDLER, mwri,a; mwrai,nw; mwro,j, 450.

168 G. BERTRAM, mwro,j; mwrai,nw; mwri,a; mwrologi,a, 752-755. 169 Cf. P. FIEDLER, mwri,a; mwrai,nw; mwro,j, 450.

66 da verbosidade dos discursos vazios, próprios dos sofistas: “[não] haja palavras obscenas, insensatas ou grosseiras; são coisas que não convêm” (Ef 5, 4). Trata-se, aliás, de um problema recorrente, que se faz sentir em diversas cartas, como podemos notar nos termos equivalentes a mwrologi,a: “discursos vãos” - mataiologi,an - (1 Tm 1, 6), “vãs conversas” - kenofwni,a - (1 Tm 6, 20), “discursos sedutores” - qanologi,a| - (Cl 2, 4) e “palavras grosseiras” - aivscrologi,an - (Cl 3, 8). Em 2 Tm 2, 23; Tt 3, 9 o termo mwro,j é empregue para condenar declaradamente as “vãs questões”- mwraί zhth,seij. A questão é uma constante nas cartas pastorais, onde, que em prol da sã doutrina, se denuncia a especulação vazia de um caudal de doutrinas vigentes no mundo helénico de então.170

Paulo, repetidamente, recorre às Escrituras para explicar a dicotomia: sabedoria - loucura. Os termos loucura (mwri,a) e louco (mwro,j) não aparecem nas citações que se fazem do AT, pelo menos, no sentido que assumem no corpus paulinum. As expressões que traduzem a ideia de loucura estão ligadas à carência do verdadeiro conhecimento de Deus, que resulta da impiedade e da iniquidade do homem, e têm por correspondentes os termos hebraicos nâbâl (lb'än" - cf. Dt 32, 6 e Is 32, 5-6) e ḵə-sî-lîm (lysiK. - cf. Sl 94, 8). A loucura que encontramos nestes textos refere-se à apostasia e impiedade dos homens. Ora, tal formulação nada tem que ver com a loucura de 1 Cor 1, 10-4, 21.171 Mesmo em Ben Sirá, onde encontramos a utilização específica

do adjetivo mwro,j, o termo assume uma significação profundamente pejorativa, que se afasta radicalmente do que Paulo usa. Do mesmo modo, a loucura que encontramos nos ditos de Jesus também parece não ter qualquer influência sobre Paulo. Nos Evangelhos, como tivemos oportunidade de constatar, o termo é utilizado para designar a perda do sabor do sal (cf. Mt 5, 13; Lc 14, 34), a imprudência das virgens (cf. Mt 7, 24-27; 25, 1-13), a insensatez dos fariseus (cf. Mt 23, 17). A loucura paulina não resulta, portanto, da utilização do conceito dos ditos de Jesus.172

170 Cf. Ibidem, 450.

171 Cf. L L. WELBORN, Paul, the Fool of Christ, 25-26. 172 Cf. Ibidem, 27.

67 No corpus paulinum, a loucura assume um carácter singular em 1 Cor:

“O significado da descrição de Paulo do Evangelho como “loucura” tem de ser compreendido no contexto imediato de 1 Cor 1-4, ou, pelo menos, dentro do âmbito da correspondência com Corinto”173.

A loucura exaltada por Paulo aparecerá como o principal adjetivo da sabedoria divina. É sabedoria que só pode ser compreendida pelo dom do Espírito. Daí que, aos olhos do mundo, a sabedoria divina não passe de uma loucura. Neste sentido, a loucura, assumirá um significado inédito em toda a Escritura. Paulo vai exaltar a personagens do tolo e vestir as suas roupagens. Porque o tolo já não é o ímpio ou o insensato, mas aquele que foi capaz de se despojar do seu orgulho e da sua pretensa sabedoria, para abraçar o escândalo do evento da salvação manifestado pela cruz de Cristo. Neste sentido, a Primeira Carta aos Coríntios é um verdadeiro elogio da loucura, sem precedentes na história de Israel. Uma sabedoria pretensiosa que acaba por se fechar ao dom da graça.174

Ao procurarmos o significado específico do termo em 1 Cor 1-4, verificamos que, em 1 Cor 1, 18, a loucura assume um carácter predominantemente escatológico. O termo é utilizado em sentido apocalítico: “a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem”, para designar “aqueles que se perdem” (avpollume,noi), sem que este grupo dos que se perdem seja identificado socialmente. Esta unidade será identificada posteriormente em 1 Cor 1, 23 como o grupo dos “gentios” (e;qnoj), em contraposição ao grupo dos “Judeus” (VIoudai/oj), para quem a mensagem de “Cristo crucificado” é “escândalo”(ska,ndalon). Paulo será ainda mais específico, indicando, em 1 Cor 1, 22, quem são esses “gentios”. Depreendemos, então, qual a motivação subjacente ao juízo sobre a loucura da mensagem da cruz: “Enquanto os judeus pedem sinais, os gregos andam em busca da sabedoria” (eidh. kai. VIoudai/oi shmei/a aivtou/sin kai. {Ellhnej sofi,an zhtou/sin). Neste grupo de “gentios”, Paulo inclui sobretudo os “gregos” ou “helénicos”

173 Ibidem, 29.

68 ({Ellhn). Ora, sabemos que o termo “gregos”, designava, não só nos escritos paulinos, mas na antiguidade em geral, o grupo dos que não eram “Bárbaros” (ba,rbaroi), designando, em sentido mais amplo, todos os que partilhavam a língua e a cultura gregas175. A sua nota característica é

a “busca da sabedoria”. Os que abraçaram o espírito helenístico tinham como ideal de vida a descoberta filosófica da sabedoria através da razão humana. Estes tinham aprendido da cultura grega a filosofia, a retórica e a arte no ginásio, nas assembleias e no teatro. A loucura da cruz é endereçada a estes que arrogam para si a posse da sabedoria.176

Para Paulo, a verdadeira loucura consiste em não acreditar na sabedoria de Deus, que se manifestou em Cristo crucificado (cf. 1 Cor 1, 18-29). Por isso, o crente é chamado a passar por louco aos olhos do mundo (cf. 1 Cor 3, 18 ss.). A comunidade de Corinto reflete a loucura da eleição divina, que não escolhe nem sábios nem poderosos: “não são muitos os sábios, segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres de nascimento” (1 Cor 1, 26). Os próprios discípulos espelham a opção preferencial de Cristo pelos pequenos e humildes. A fé em Cristo faz descarrilar a lógica humana e todo o bom senso.177 E assim Paulo veste a

pele do tolo: “Nós somos loucos por causa de Cristo, e vós, sábios em Cristo!” (1 Cor 4, 10). Partindo desta retórica crescente, L. Welborn propõe a asunção da loucura em momentos progressivos: confirmação, apropriação, avaliação178 e aceitação. até a aceitação em 1 Cor 4,

10 da

175 Cf. Charles Kingsley BARRETT, A Commentary on the First Epistle to the Corinthians, 55; H. WINDISCH,

{Ellhn,, ‘Ella,vj, ‘Ellhniko,j, ‘Ellhni,j, ‘Ellhnisth,j, ‘Ellhvisti,, in KITTEL, Gerhard; FRIEDRIEH, Gerhard,

GLNT, vol. III. 469-504.

176 Cf. L L. WELBORN Paul, the Fool of Christ: A Study of 1 Corinthians 1-4 in the Comic-Philosophic Tradition.

London: T & T Clark International, 2005. 29-31.

177 Cf. Folie In Xavier LÉON-DUFOUR, Vocabulaire de Théologie Biblique, 487; P. FIEDLER, mwri,a; mwrai,nw;

mwro,j, 450.

178 Por sua vez L. Welborn divide a avaliação em três momentos: reconhecimento, asserção e afirmação: “Primeiro,

Paulo reconhece que, do ponto de vista dos ricos e poderosos, a mensagem de Cristo crucificado parece ser uma ‘loucura’ (1 Cor 1, 18a, 23; 2, 14). Segundo, Paulo assevera que Deus inverteu secretamenta os conceitos de ‘sabedoria’ e ‘loucura’, para que aquilo que é considerado como ‘loucura’ por uma elite, seja, na verdade, ‘sabedoria’ (1, 18b, 19-20, 24-255, 30; 2, 6-8). E terceiro, Paulo afirma que a “palavra da cruz” não é mais ‘loucura’ no tempo presente, por isso, aqueles que são ‘chamados’ neste mundo tem de se tornar ‘loucos’ (1, 21, 26-28; 3, 18-19).” Cf. L. L. WELBORN, Paul, the Fool of Christ, 117. L. Welborn apoia-se nas análises de Weiss e Wilkens: Johannes WEISS, Der erste Korintherbrief, Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen, 1910, 25 e Ulrich WILCKENS,

Weisheit und Torheit; eine exegetischreligionsgeschichtliche Untersuchyng zu 1. Kor. 1 und 2, J.C.B. Mohr (Paul

69 At 26, 24: “Neste ponto da sua defesa, Festo exclamou em voz alta: «Estás doido [mani,an], Paulo! A tua grande sabedoria faz-te perder o juízo»” 179. A salvação é obra desta

loucura de Deus, que entregou o seu filho crucificando-O na cruz, loucura de amor, que é sabedoria suprema (cf. 1 Cor 1, 25).

Não há nada de mais absurdo aos olhos de uma pessoa razoável ouvir que um pobre judeu de Nazaré foi condenado à morte pelas autoridades civis e políticas sediadas em Jerusalém, que ressuscitou, que é filho de Deus e que veio para salvar o mundo. A radicalidade do anúncio kerigmático de Paulo toca o limiar do razoável.

Para compreender mais amplamente o conceito de loucura (mwri,a) há que considerar o mundo cosmopolita em que Paulo viveu, sob a hegemonia da cultura helénica. Temos, portanto, que enquadrar o termo nos vários domínios da cultura greco-romana. Na literatura, nomeadamente na tragédia, o conceito designava uma espécie de “demência”, própria de um ato irrefletido e meramente impulsivo. No contexto político, referia-se à atitude de quem, por ingenuidade, age sem calcular as consequências das suas ações. Para os filósofos, o louco era aquele que, por falta de razão, vivia no absurdo de uma vida impensada. Aos ouvidos do retórico, a loucura caracterizava a incapacidade de adaptar o seu discurso ao auditório. Para o bom conselheiro, consistia na “conversa fiada” (mwrologi,a), que não oferecia repercussões concretas.180 Todos estes usos têm alguma relevância para Paulo. Todavia, para a maioria dos

leitores da correspondência paulina o termo mwri,a caracterizava a atitude de um estereótipo social determinado: o bobo da ralé.181 A loucura desta figura residia, desde logo, na sua própria

apresentação, no atraso mental e na deformação física. Esta personagem feia e defeituosa era motivo de zombaria no mundo greco-romano. Alvo do gozo da populaça, um tal personagem

179 Cf. H. LESÊTRE, Folie, 2302.

180 Cf. L L. WELBORN Paul, the Fool of Christ, 32. 181 Ibidem.

70 era normalmente representado em palco, nas comédias populares e conhecido como “mi/moj”. O termo mwro,j passou a designar, neste contexto, o “louco” do teatro mímico (mi/moj).182

Paulo, feito “espetáculo para o mundo” (o[ti qe,atron evgenh,qhmen tw/| ko,smw| - 1 Cor 4, 9), considerou-se “louco por causa de Cristo” (h`mei/j mwroi. dia. Cristo,n – 1 Cor 4, 10). Será possível, tendo em conta a aplicação trágico-cómica do termo, fazer uma leitura dramática de 1 Cor 1-4? Para tentar tal leitura, procuremos, antes de mais, compreender quem era esta figura do “louco” na antiguidade clássica.

182 Cf. Ibidem, 33.

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