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CAPÍTULO 2 – REFLEXÕES E PARADOXOS DA LUTA FEMINISTA PELA

2.4 A luta feminista na construção de uma teoria política

Como movimento histórico de transformação social, para alguns, o feminismo parece ter perdido força, vítima das sociedades ditas pós-modernas, da crise das ideologias de progresso e da ascensão dos individualismos. Contudo, mantém-se bem presente na cena pública, por vezes sob a forma de um feminismo institucionalizado (pós-feminismo), mas mais frequentemente por meio de debate renovados, nomeadamente sobre a

73 Citação encontra-se na página 29 da versão eletrônica da obra “A ideologia alemã” de Karl Marx e Friedrich

103 necessidade de defender o múltiplo e de não confundir igualdade e identidade ou sobre os desvios da ausência de diferenciação entre o pessoal e o político.

Mesmo com toda essa transformação, é indiscutível a importância da luta feminista para o engajamento político das mulheres, ainda que aquém do ideal. Por isso, a reflexão feminista teve que ganhar em sofisticação e complexidade, para apreender uma forma de dominação que também se tornou muito mais sofisticada e muito mais complexa do que o velho patriarcado.

Esse engajamento transpõe obrigatoriamente a discussão do direito da mulher para o campo da esfera pública74. E isso se deve em parte ao reconhecimento de que o respeito à diferença requer a aproximação do direito com a política, pois são os interesses das mulheres que estão em jogo, os quais são inerentes à própria luta, cujos discursos trazem as marcas identitárias femininas, as quais são forjadas pelas ideologias que povoam esses discursos.

A participação das mulheres na esfera pública sempre foi muito reduzida. Basta ver o quanto é incipiente a participação delas no campo decisório, no debate político, na elaboração e aplicação das leis. Os campos dos saberes-poderes são legitimados, orientados e direcionados historicamente para a atuação dos homens, que sempre se mantiveram no poder, tomando as decisões, inclusive, no lugar das mulheres.

De qualquer forma, o impacto da reação conservadora à luta feminista é de caráter político, o que impacta juridicamente e que pode motivar, inclusive, a perda de direitos arduamente conquistados. Para reverter esse movimento conservador, é necessária a conscientização de que seu foco não são questões apenas culturais, mas políticas e jurídicas, estimulando assim uma reação progressista que objetive, em seu conteúdo, a elaboração de um construto teórico que tenha na sua concepção o destrave dos mecanismos repressores e de dominação das mulheres.

Por essas razões é que o feminismo construiu (e ainda está construindo) uma teoria do mundo social que contribui para “iluminá-lo” não só no que se refere às relações de gênero, mas em todos os seus padrões de dominação e de reprodução das assimetrias entre grupos (MIGUEL, 2014). Ao lado do marxismo, o feminismo pode ser considerado um dos principais eixos de reflexão crítica sobre a sociedade, visto que se constitui em uma

74 No campo do direito e no caso brasileiro especificamente, fica bem nítido quando se trata de direito de família

(os novos modelos de família), de direito de propriedade (a disposição sobre o próprio corpo), de direito do trabalho (a dupla jornada), de direito penal (eliminação de tipos penais sexistas), entre tantos outros exemplos.

104 teoria política preocupada com a opressão e a injustiça, o que, do ponto de vista da construção da igualdade, não é aceitável abrir mão dos seus construtos teóricos.

Um dos pontos de discussão diz respeito a duvidar do conceito de universalidade. A ideia do universal é um resquício do Estado moderno. Sobre este ponto Marx denuncia o caráter abstrato do Estado político moderno, na medida em que a universalidade deste se baseia sobre a real diferença no nível econômico-social dos indivíduos. Ou seja, tudo se reduz ao caráter econômico. O Estado moderno, aliás, constrói-se com base em tais premissas, isto é, o Estado pode ser livre, sem que o homem o seja em suas condições reais de vida. A igualdade no Estado moderno, portanto, está fundada na igualdade jurídico-universal. A emancipação dos sujeitos foi uma das promessas não cumpridas pelo Estado moderno.

Para o feminismo, a sociedade atual produz “naturezas” diversas a depender das diferentes posições sociais (papéis). O apelo ao elemento universal, que unifica, homogeiniza, implica abstrair as diferenças, que não são só diferenças, mas hierarquias. O simples fato de se postular uma posição particular como universal retira a chance de que se marginalizem todas as outras formas possíveis de verdade. É o que as posições sociais dominantes fazem. Por terem condição privilegiada, constroem-se como universais75.

Assim, o pensamento feminista contribuiu para mostrar que o “indivíduo” genérico e universal do liberalismo é o homem proprietário e branco (visão eurocêntrica). É ele que possui a capacidade de estabelecer contratos, que caracterizaria os indivíduos “em geral”, mas dependente de sua posição no trabalho e na família. Quando mulheres, trabalhadoras, trabalhadores, negras e negros, são admitidos à cidadania, não são cidadãos completos, por não possuírem os atributos associados ao indivíduo “padrão” universal (masculino, branco e heterossexual).

Outro aspecto importante que se depreende da teoria política feminista diz respeito às “opressões cruzadas”76 (interseccionalidade). Desse modo, um movimento operário e

um movimento negro que negligenciem o gênero podem ser somados a um movimento

75 Exemplos não faltam que comprovam o padrão universal (masculino, branco, heterossexual). Por exemplo,

fala-se da literatura escrita por mulheres como literatura “feminina”, mas não há uma literatura “masculina”. Do mesmo modo, há uma literatura negra e uma literatura gay, mas não se fala de literatura branca ou hétero.

76 Na primeira metade do século passado, uma dirigente negra do Partido Comunista dos Estados Unidos,

Claudia Jones, já começava a teorizar sobre o que chamava de “tripla opressão”, observando o equívoco de julgar que a desigualdade de classe nos fornecia, isoladamente, explicação suficiente sobre a sociedade e seus conflitos. Hoje se usa o termo “interseccionalidade”, lida como indicando a necessidade de atenção ao cruzamento entre opressões de gênero e de raça, com a classe perdendo centralidade e passando a compor o pano de fundo.

105 feminista insensível a classe ou raça. Os três movimentos, conjuntamente, são incapazes de expressar as perspectivas e as demandas de mulheres trabalhadoras negras, por exemplo. E isso se deve ao fato de que a posição social de quem sofre opressões cruzadas precisa ser entendida na sua especificidade. Em uma sociedade que é, simultaneamente, capitalista, “patriarcal”, racista e heterossexista, as posições geradas por gênero, raça ou sexualidade geram vulnerabilidades específicas nas relações de trabalho – e vice-versa (MIGUEL, 2014).

No feminismo contemporâneo, considera-se que a teoria da interseccionalidade possui um conteúdo vital para alcançar a igualdade social e política e para promover o sistema democrático, visto que as diferenças são consideradas como elementos para a discussão de caminhos alternativos para o reconhecimento e afirmação de direitos.

2.4.1. O papel das esferas pública e privada

No primeiro capítulo, iniciou-se a discussão sobre o papel da esfera pública na vida privada e vice-versa, no sentido de mostrar o quanto as duas esferas estão imbricadas: o pessoal é político e o político é pessoal. Essa foi, aliás, a bandeira do feminismo dos anos 60, que teceu críticas à divisão entre público e privado, mas, sobretudo, debruça-se sobre a representatividade do pensamento feminista e sua contribuição em termos de mostrar o quanto essa dicotomia é produtora de significado para entender o problema da igualdade e da emancipação feminina.

Portanto, “público” e “privado” são categorias historicamente construídas, fruto de uma classificação convencional. A esfera privada foi o campo de atuação do Estado liberal, ao passo que, no Estado social, viu-se maior atuação da esfera pública. Os paradigmas jurídicos liberal e social, respectivamente, geraram uma realidade que se adequou a sua esfera de atuação, cujas práticas institucionais (ou institucionalizadas) foram vividas como se naturais (ou naturalizadas) fossem, pois os sistemas econômico e político adaptavam-se aos mecanismos internos de controle presentes nesses paradigmas.

Sobre essa dualidade assim pontua Biroli (2014, p. 31):

Essa dualidade corresponde a uma compreensão restrita da política, que, em nome da universalidade na esfera pública, define uma série de tópicos e nem experiências como privados e, como tal, não políticos. É uma forma de isolar a política das relações de poder na vida cotidiana,

106 negando ou desinflando o caráter político e conflitivo das relações de trabalho e das relações familiares.

O paradigma procedimental de Habermas contribui para desconstruir esse pensamento dual, bem como nunca foi e não é o que postula o feminismo que, pelo exercício crítico, mantém-se como “antinaturalista”, uma vez que busca mostrar que as relações sociais não são simplesmente reflexo da natureza, mas produto da ação de mulheres e homens que constroem, sob condições desiguais, sua própria história.

Ao formular que “o pessoal é político”, o feminismo destacou como as relações interpessoais – na família77, na conjugalidade78, em todos os espaços – refletem padrões

mais amplos de dominação e, ao mesmo tempo, contribuem fortemente para reproduzi-los (MIGUEL, 2014). A barreira que separa o “privado” do “público” é um poderoso obstáculo ao enfrentamento da opressão. E é essa barreira que o Estado democrático de direito tem se proposto a romper79.

Na outra vertente (“o político também é pessoal”), o que está em jogo são as matrizes de possibilidades que se dão a uns, em detrimento de outros, o acesso a determinados espaços sociais e o controle de recursos escassos e valorizados. Enfim, o que está em jogo é a possibilidade de decidir a própria vida, o que é algo que não se efetiva em arenas específicas, mas “no mundo da vida” (no dizer de Habermas). O político é pessoal porque nele se definem as condições em que o indivíduo pode exercer a sua autonomia80 (MIGUEL, 2014).

A noção de que política é uma atividade que se restringe a espaços sociais específicos (governo, partidos, parlamento) é vazia, não mais cabível no contexto do Estado democrático de direito que, pela superação da dicotomia público versus privado, proporcionou avanços no desenvolvimento e aprimoramento do arcabouço legal.

77O feminismo avançou e chegou à esfera da família, que transita como espaço de afetos e, justamente por isso,

parece ter salvo-conduto para reproduzir todo o tipo de opressão. A família vive, na expressão da feminista francesa Christine Delphy, um “estado de exceção”. Nela, os direitos de seus integrantes estão suspensos. Um exemplo atual foi a reação à recente lei brasileira que busca impedir castigos físicos contra crianças (Lei da Palmada), situação que revela como essa percepção da unidade familiar continua viva e atuante.

78 Discursos, como “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, são contraproducentes e inviáveis do

ponto de vista da superação da dicotomia público versus privado.

79 No Brasil, com as exceções dadas pela lei penal, a mulher não pode dispor do seu próprio corpo e praticar o

aborto. E a legalização do aborto, aliás, é uma das lutas feministas. É um exemplo claro de intervenção da esfera pública na esfera privada, bem como nos crimes de estupro ou violência doméstica contra mulher, em que a sociedade é chamada a participar na coibição de crimes por questão de gênero.

80 O próprio conceito de gênero foi um passo inicial para essa conquista, pois é uma discussão, sobretudo,

107 Habermas (2002, p. 237) discute o processo democrático como o mecanismo de superação da dicotomia quando o assunto é, por exemplo, a igualdade de direitos para as mulheres:

O processo democrático pode assegurar a um só tempo a autonomia privada e a pública: os direitos subjetivos, cuja função é garantir às mulheres uma organização particular e autônoma da própria vida, não podem ser formulados de maneira adequada sem que antes os próprios atingidos possam articular e fundamentar, em discussões públicas, os aspectos relevantes para o tratamento igualitário ou desigual de casos típicos. É apenas pari passu com a ativação de sua autonomia enquanto cidadãos do Estado que se pode assegurar, a cidadãos de direitos iguais, sua autonomia privada.

A igualdade também não é interpretada de modo simplesmente procedimental. A democracia deliberativa exige não só igualdade de “possibilidades” para participar da vida pública, mas também a igualdade de “capacidades” para fazê-lo efetivamente – que pressupõe um contexto econômico razoavelmente igualitário. Mas a igualdade democrática não se esgota na sua dimensão econômica; ela possui uma dimensão cultural. O aporte deliberativo justifica tanto políticas redistributivas, quanto políticas de reconhecimento. “Se não há igualdade material razoável e igual reconhecimento, não há real motivação para cooperar, e o processo democrático se reduz ao padrão ‘amigo-inimigo’” (SOUZA NETO, 2009, p. 108).

2.4.2 Aprendendo com a experiência

O conhecimento feminista é um conhecimento epistemológico – epistemologia feminista, em distinção à epistemologia masculina, dominante –, que abre espaço para o aprendizado a partir da experiência. É como se a opressão vivenciada pelas mulheres e a sua marginalização gerassem conhecimento mais que suficiente para o entendimento das estruturas de dominação.

De acordo com Rago (1998), “o feminismo não apenas tem produzido uma crítica contundente ao modo dominante de produção do conhecimento científico, com também propõe um modo alternativo de operação e articulação nesta esfera”. Para a autora, as mulheres trazem uma experiência histórica e cultural diferente da vivenciada pelos homens, que se expressa por meio de uma “nova linguagem”, ou na produção de um “contradiscurso”, o que também pode ser visto em relação à produção do conhecimento científico.

108 Portanto, uma teoria política feminista que se queira digna de respeito não pode vir separada da experiência, sendo esta o que sedimenta e concretiza os discursos. Ela converge o olhar sobre as pessoas em suas circunstâncias próprias, mas socialmente estruturadas, de modo a refletir sobre a complexidade dos padrões cruzados de opressão. Contrário ao universal (que é imposto), a experiência é vivida, sentida, compartilhada, tornando possível a formação de um pensamento (consciência) de percepção do mundo social com as suas injustiças e das formas de enfrentá-las81.

Young (2006, p. 162) ao falar sobre aprender com a experiência vivida, desse modo discorre:

Assim, as posições sociais estruturais produzem experiências particulares, relativas ao posicionamento, e compreensões específicas dos processos sociais e de suas conseqüências. Cada grupo diferentemente posicionado tem uma experiência ou um ponto de vista particular acerca dos processos sociais precisamente porque cada qual faz parte desses processos e contribui para produzir suas configurações. É especialmente quando estão situadas em diferentes lados das relações de desigualdade estrutural que as pessoas entendem essas relações e suas conseqüências de modos diferentes.

A perspectiva, de acordo com a mesma autora, é um modo de olhar os processos sociais sem determinar o que se vê. Dessa forma, duas pessoas podem compartilhar uma perspectiva social e, não obstante, experienciar seus posicionamentos de maneiras diferentes, na medida em que estão voltadas a diferentes aspectos da sociedade. Compartilhar uma perspectiva, porém, propicia a cada uma delas uma afinidade com o modo como a outra descreve o que experiencia, uma afinidade que as pessoas posicionadas diferentemente não experienciam (YOUNG, 2006, p. 163).

Para a autora, portanto, a experiência só tem sentido se compartilhada, não acredita que seja possível no estado bruto, sem construção reflexiva, conhecimento. Não há um misticismo da vivência que faz com que sua simples enunciação supra a necessidade da reflexão teórica. Aprender com a experiência vivida significa elaborar, repensar, essa experiência, até mesmo para não reproduzi-la. Resta saber como aprender com a experiência, quando esta é vivida sob a égide de uma sociedade desigual. E mais, a opressão não é externa aos agentes sociais, contribui para produzi-los. Mais do que isso,

81 Uma importante feminista estadunidense, Iris Marion Young, combinou três aspectos: a atenção à

experiência vivida, que a motivou a buscar, na própria vivência – socialmente estruturada, como qualquer vivência – da corporalidade das mulheres, elementos para produzir a crítica da sociedade atual; a recusa radical ao discurso do universal; e o entendimento de que a luta por justiça não é a busca de um padrão abstrato, mas o enfrentamento das injustiças existentes (YOUNG, 2006).

109 produz, em particular, a adesão à ordem social, tida como natural, inevitável ou mesmo justa.

Assim, se uma mulher é capaz de expressar sua adesão ao insulamento no lar, à posição subalterna na família, aos padrões dominantes de beleza, à dupla moral sexual ou mesmo à mutilação genital, não se pode simplesmente aceitar que é a manifestação de uma vontade autônoma (MIGUEL, 2014). A prática de se comportar dessa ou daquela maneira está naturalizada. Por isso, uma análise mais detida sobre a adesão da mulher a práticas opressoras de dominação exige que se interroguem as condições, os constrangimentos e os incentivos, que geraram tal adesão, que produziram tais preferências.

É necessário, enfim, manter a posição em que se recusa a ideia de que existem preferências “certas”, objetivamente identificáveis por observadores externos, mas ao mesmo tempo não se abre mão da crítica aos mecanismos de manipulação e produção da conformidade ao mundo social, tão presentes e tão atuantes.

2.5 GÊNERO E SUB-REPRESENTAÇÃO: MENOS MULHERES NO PODER, MENOS