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A música italiana ligeira diante da experiência colonial na Líbia (1911)

Universitário de Lisboa, Portugal

1. A primeira fase: o colonialismo pré-fascista (1882-1912)

1.2. A música italiana ligeira diante da experiência colonial na Líbia (1911)

Duas situações, quase que duas fotografias, que retratam o mesmo sujeito mas visto sob ângulos visuais completamente diferentes, podem ser consideradas como o começo dum interesse mais consciente e sistemático da música italiana relativamente à África. O ano é 1911, o país está numa fase de forte dinamismo social, económico e cultural, enquanto a cena política – que tinha começado, em 1900, com o assassinato do rei Umberto I em Monza - continua dominada pelo liberal Giolitti, qua pauta pelo diálogo com as forças socialistas, a extensão do sufrágio eleitoral e o alargamento da instrução às classes menos abastadas (Di Pol, 2002).

As duas fotografias retraem a primeira experiência de sucesso do colonialismo italiano, a ocupação da Líbia, nomeadamente da Tripolitânia e Cirenaica. Nessa altura, o país estava em plena expansão industrial, chamada também “big spurt” (Gerschenkron, 1974), em que o contributo do sector industrial ao PIB nacional passa de 19,6% de 1895 a 25% de 1914 (Romeo, 1988).

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Em paralelo, o cenário cultural e “ideológico” sofre várias e repentinas transformações. O futurismo estorou no panorama italiano, trazendo grandes inovações. O seu Manifesto foi publicado em vários jornais italianos em 1909, e o próprio Le Figaro, na sua edição de 20/02/1909, o reproduziu na íntegra, à demonstração do impacto que esta corrente teve na Europa. Seu promotor foi Filippo Tommaso Marinetti, que mandou reformar as formas julgadas obsoletas de arte (inclusive Wagner, o melodrama e o realismo) em prol duma visão “dinámica”, centrada no mito da velocidade, modernidade e até do “barulho” derivante da vida urbana e industrial, confirmada pelo Manifesto dei pittori futuristi (1910), pelo Manifesto

della musica futurista (Francesco Balilla Pratella, 1912), por L’Arte dei rumori (Luigi

Russolo, 1913),, clarificando e destacando as infinitas possibilidades sonoras dos ruídos, que o artista teria o dever de reproduzir (Marisi, s.d.). No âmbito poético, Gabriele D’Annunzio está afirmando-se como principal expressão da literatura italiana. Essas correntes começaram também a enaltecer o classicismo e a perfeição estética, desaguando num novo e mais forte conceito de nacionalismo e de colonialismo (Pandolfo, 2013).

Internamente, liberais, católicos e nacionalistas empurravam o governo para invadir a Líbia, na altura sob o domínio do Império Otomano, e apesar das dúvidas de Giolitti. Os primeiros, com o apoio do capital industrial, a partir do jornal da família Agnelli, dona da FIAT (fundada em 1899), “La Stampa” de Turim. A Líbia era representada como um possível novo mercado de matérias-primas e de expansão produtiva, uma terra rica e fértil. Entretanto, a voz de mais dura oposição manifestava-se através da revista florentina de tendências socialistas, “La Voce”, dirigida por Prezzolini. Esta revista tinha havido acesso a um estudio da comunidade judáica internacional, à procura de um território onde instalar o futuro estado de Israel. A Líbia tinha sido contemplada nesse trabalho de pesquisa, e o resultado foi que não reunia as condições para o efeito, devido a uma crónica falta de água. Daqui, a tentativa que a revista levou a cabo de informar correctamente os italianos em relação a uma campanha que se pretendia não apenas simples do ponto de vista militar, mas extremamente promissora quanto às perspectivas económicas (sobretudo no sector agrícola). Foi assim que Salvemini definiu a Líbia como “uno scatolone di sabbia” (“um caixão de areia”). A esta oposição juntaram-se os republicanos e os socialistas mais radicais, entre os um jovem líder duma célula do Partido Socialista da região da Romanha, Benito Mussolini. A CGL (o maior sindicato nacional) proclamou um dia de greve (27/09/2011), com escasso sucesso, salvo em algumas cidades da Emília-Romanha, onde foi entoada a segunda das duas “fotografias” acima recordadas (Del Carria, 1966). Os católicos pautavam por uma nova cruzada contra o Islão; em boa verdade, queriam favorecer a penetração dum banco com fortes raízes na igreja (o Banco de Roma), que em 1907 tinha aberto uma filial em Tripoli e que andava a fazer negócios de vária natureza; os últimos, chefiados pelo seu líder Enrico Corradini, para resgatar as péssimas figuras que a Itália tinha feito com as derrotas de Dogali (na Eritreia, em 1887) e Adua (na Etiopia, em 1886, por obra de Menelik II), ao longo da primeira fase da sua aventura colonial. A esses grupos juntaram-se individualidades da cultura nacional, tais como o poeta Giovanni Pascoli, com a sua celebre frase, La grande proletaria si è mossa, e Gabriele D’Annunzio (Nardi; Gentili: 2009). Apesar das muitas reservas, Giolitti acabou cedendo a essas tendências. Ao nível internacional, o cenário líbico apresentava-se confuso e por isso interessante, situação que permitiu à Itália - com o consentimento do Kaiser Guilherme II da Alemanha, seu poderoso aliado -, de declarar guerra ao Império Otomano e invadir o território líbio, em 1911. Foi apenas através da mediação dum rico homem de negócios de Veneza, que tinha fortes interesses na Turquia, o Sr. Volpe, que foi possível trazer os Otomanos à mesa das negociações de paz com a Itália (Losana, dia 10 de Outubro de 1912). Por um lado, a Itália declarará o seu domínio político da Tripolitania e Cirenaica,

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comprometendo-se em retirar suas tropas das ilhas do Egeu (mas, na verdade, isso não vem a acontecer e, em 1923, essas ilhas serão incorporadas nos domínios coloniais italianos). Por outro, o Império Otomano declarará a autonomia daqueles territórios, mas sem reconhecer a autoridade italiana. O desfecho dessa complicada questão ter-se-á apenas após a primeira guerra mundial e o fim do Império Otomano.

As vozes maioritárias presentes na Itália juntaram grandes agrupamentos políticos, económicos, culturais e religiosos favoráveis ao colonialismo; e o “parto”, em termos musicais, é a canção A Tripoli, mais conhecida como Tripoli bel suol d’amore, escrita em 1911 por Colombino Arona (música) e Giovanni Corvetto (letras), este último jornalista do diário “La Stampa”. As forças contrárias minoritárias deram lugar a uma canção irónica,

Tripoli suol del dolore. Esta sai na edição do dia 6/4/1912 do jornal socialista de Vercelli, “La

Risaia”, de forma anónima, mas provavelmente da autoria do operário Luigi Castagna, dito Gino. Foi entoada pela primeira vez no dia da greve geral em Parma, acompanhando as aspérrimas críticas relativamente à opção colonial. Após transcrever os textos das duas canções, iremos fazer um breve comentário:

A TRIPOLI!

Sabes onde é que aninha-se mais florido o solo? Sabes onde é que sorri mais mágico o sol? No mar que nos liga com a África d’or, a estrela da Itália nos aponta um tesor. Tripoli, belo solo d’amor te chegue doce

esta minha canção agite-se o Tricolor em cima das tuas torres ao estrondo do canhão! Navegue, oh couraçado benigno é o vento e doce é a estação Tripoli, terra encantada será italiana

ao estrondo do canhão. Tripoli, belo solo d’amor te chegue doce

esta minha canção agite-se o Tricolor em cima das tuas torres ao estrondo do canhão! A ti, Marinheiro, seja a onda caminho seja guia a Sorte para ti Bersalheiro vá e espere, soldado, Vitória é lá

contigo tens a Itália que grita-te: vá!

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Ao vento africano que Tripoli ataca já soam as trombetas a marcha real. A Tripoli os turcos já deixaram de reinar: a nossa bandeira içada é lá. Um belo militar queria de mim um sim para algo (vocês sabem o que é). Disse-lhe rindo:

“Teras aquilo que desejas; mas antes, patife,

vá a Tripoli, e depois...”! Tripoli, belo solo d’amor te chegue doce

esta minha canção agite-se o Tricolor em cima das tuas torres ao estrondo do canhão! Navegue, oh couraçado benigno é o vento e doce é a estação. Tripoli, terra encantada, será italiana

ao estrondo do canhão.

Essa canção teve um sucesso repentino e enorme. Vários factores contribuiram para este resultado: acima de tudo, a incessante campanha dos nacionalistas; em segundo lugar, a mensagem religiosa; finalmente, a ideia da “missão civilizadora”. Cerca de 100.000 camponeses foram incentivados em ir a Líbia com navios do Estado, onde receberam casas novas e 30 hectares de terra por cada família. A propaganda belicista desferiu o golpe final mediante a primeira representação cénica da canção “A Tripoli”. Essa foi dada em Turim, em 1911, por Alessandra Drudi, que D’Annunzio rebaptizou com o pseudónimo de Gea della Garisenda, formosa estrela da opereta, vestida apenas com um drape tricolor, que desencadeiou a fantasia sobretudo daqueles jovens que estavam prestes a partir como militares para Líbia (foto 1).

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