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A Marcha Nico Lopes: entre carnavais de ontem e hoje

No documento jairobardunifilho (páginas 149-153)

4. POETAS, AGRÍCOLAS, BOÊMIOS, ESPORTISTAS, DELICADOS

4.3 A Marcha Nico Lopes: entre carnavais de ontem e hoje

A liberdade seria então algo com o qual podemos entrar em relação, mas não algo que podemos ter ou possuir, não algo do qual pudéssemos nos apropriar (LARROSA, 2009).

Uma das tradições estudantis mais emblemáticas e originais surgidas na ESAV é a Marcha Nico Lopes, uma história cotidiana transformada em data comemorativa muito festejada e aguardada pelos estudantes até os dias de hoje. Especificamente, trago a Marcha em seu ano de 1951, período em que Sr. Juarez, um dos meus entrevistados e ex-estudante dessa escola, participa, junto com seus amigos, desse ritual estudantil.

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A Marcha liga-se com a discussão das masculinidades na ESAV e continua a apresentar as traquinagens de uma tradição estudantil, transgredindo a barreira do gênero dentro de um cotidiano carnavalesco. O leitor poderá perceber as facetas cômicas existentes na escola, bem como a zoação com a masculinidade subalterna homossexual ou, como aparece em uma das fotos, baitolas.

O jornal O Bonde, ao longo de sua existência, publicou várias notícias a respeito da Marcha Nico Lopes. Considerando-se isso, trago o conceito de liberdade como algo pelo qual se tem de lutar, se conquistar, é uma condição advinda de confrontos, de relações de poder, como se expressa na epígrafe de Larrosa (2009) acima. Por essa razão, acreditando nessa filosofia, é que me interessa analisar uma das tradições da escola que se encontra presente até os dias de hoje na UFV, a Marcha Nico Lopes, um acontecimento que favorece discussões, reflexões, brincadeiras e embates pela conquista da liberdade.

A curiosidade me move com um olhar microscópico sobre o passado, de uma condição histórica vivida pelos garotos da ESAV na invenção dessa tradição. Antes de qualquer coisa, é preciso compreender quem foi Nico Lopes. Recorro, assim, à informação presente no número 19 do jornal de 1946. Nele, o estudante de pseudônimo A. Dias Lopes regressa ao tempo relembrando os primórdios da escola e a presença de um senhor chamado de Nico Lopes pelos alunos. Segue a matéria.

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Amigos, companheiros, visitantes da Escola, leitor que

Por ventura eu tenha, querem me acompanhar por instantes? Então fechem os ouvidos aos chamados e voltemos a alguns anos atrás na vida da Escola, onde encontraremos a origem do título que encima esta crônica.

Em todas as cidades, sempre encontramos esses tipos característicos de rua, homens entregues ao convívio público, de uma pronunciada que os transforma rapidamente em um elemento conhecido de todos.

Nico Lopes era assim. Logo que a Escola começou a funcionar, Nico Lopes, ora improvisando anedotas, ora remontando pilherias de sua vida boêmia, prendeu a atenção dos primeiros alunos, que não se cansavam em tê-lo em seus passeios e distrações. Quando se via uma rodinha em volta de um poste ou de um banco do jardim, podia se contar como certo que era Nico Lopes distraindo principalmente os alunos. Mas não demorou ele se foi para o derradeiro sono, deixando um enternecimento, em todos os corações. Principalmente dos alunos acostumados a ouvi-lo horas a fio, a se divertirem com suas galhofatices. Foi-se e quando todos pensavam que Nico Lopes tinha desaparecido com a sua consequente morte, deu- se justamente o contrário. Os alunos viram naquele velho de fisionomia denegrida pelo tempo, uma imagem que não podia desaparecer do nosso meio justamente quando a Escola começava a surgir. Tratava-se de quem primeiro havia compreendido a alma moça da Escola. E, então movidos por um desejo geral, resolveram imortalizá-lo em nossas tradições, dando o seu

A.Dias Lopes

Nome à marcha de confraternização entre calouros e veteranos. E agora, leitor, olhe à frente que não demorará o desfile dos calouros. Uma grande tabuleta chama-lhe atenção: Marcha Nico Lopes. E atrás o que virá? Críticas, blocos, dísticos, carros alegóricos, decorações, atualidades, enfim, uma porção de causas que o leitor dirá: o que é isso? E com serenidade, orgulho e altivez, nós, veteranos, lhe diremos: é a maior das nossas tradições. Se não obedece a um plano pré-estabelecido, se não representa a sequência de fatos capazes de esclarecer, a priori, ao visitante a sua finalidade, é porque a sua característica é esta. E é justamente na disparidade das apresentações, nos contrates berrantes dos blocos, nas pilherias e brincadeiras do nosso meio, que reside a importância dessa marcha. Porque dela parece estarmos ouvindo ainda, faz poucos dias, o esaviano antigo, pessoal ou coletivamente, ensinando ao calouro as nossas canções, as nossas saudações, o nosso hino, enfim, familiarizando-o com tudo que é nosso e que também é dele. E quando, leitor, desaparece o último calouro do desfile, atente bem para a sua vista porque com ele se poderá identificar a imagem do Velho Nico Lopes sempre alegre e aparentando jovialidade... E o compromisso do calouro com o veterano de zelar pelas nossas tradições, e pelos nossos ideais, dentro da camaradagem, união e entendimento mútuo, porque só do entendimento mútuo da união e da camaradagem é que poderemos ter ordem e progresso em nossa Escola.

Fonte: Jornal O Bonde (Ano 1946. Número 19).

De acordo com a matéria acima, a Marcha Nico Lopes foi idealizada por um dos estudantes da época: Antonio Secundino de São José. A marcha leva o nome de Antonio Lopes Sobrinho, vulgo Nico Lopes, tornando-se, assim, o iniciador desse ritual estudantil. A origem também pode ser verificada com Borges (1968, p. 13), segundo o qual

A passeata da Escola à cidade, denominada “Marcha Nico Lopes”, muito simples e puxada a sanfona naquela época, ainda hoje comemora o fim do “trote” dos calouros. A marcha “Nico Lopes” era a sátira, crítica de fatos pitorescos, pois todas as brincadeiras eram atribuídas ao Nico Lopes, espírito Folgazão, responsabilizado pelas coisas erradas ou más que aconteciam. Um dos atuais ex-alunos, o Dr. Antonio Secundino de São José, reunia os calouros, arregaçava-lhes uma das pernas da calça e fazia com que corressem em volta do jardim ao som de uma sanfona de 8 baixos e fole rasgado. Daí o nome da brincadeira.

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Desse modo, o evento se tornou manteve a tradição, talvez, não a memória. A Marcha se apresenta como uma atração para muitos jovens da UFV, bem como para os moradores de Viçosa que participam, assistindo pelas janelas e sacadas dos prédios, jogando seus baldes de água nos estudantes para refrescar o calor dos primeiros meses do ano e se incorporando aos estudantes no final da marcha, geralmente, em um encontro entre nativos e estudantes na Praça Silviano Brandão. A Marcha finaliza o período de trote. É importante frisar que se trata de uma tradição masculina, pois o trote, socialmente, nada mais é do que uma invenção masculina de socialização, reconhecimento entre homens. Uma invenção que envolvia a chegada dos calouros no campus da escola e o reconhecimento dos veteranos por estes primeiros, enfim, uma prática de dominação em uma instituição masculina.

Assim, problematizar alguns pensamentos a respeito da Marcha Nico Lopes e, consequentemente, como esta era apresentada pelo jornal O Bonde, é capturar os lugares de fronteiras, resistências, afrontamentos e metáforas existentes em uma instituição de meados do século XX, bem como evidenciar os modos como o poder era concebido e exercido.

Como o poder é algo que relaciona sujeito - liberdade e resistência, a Marcha pode muito bem ser vista nesse prisma de relações. Era o momento em que as resistências jogavam com o poder institucional enquanto protesto, um momento em que, estrategicamente, os estudantes produziam meios de resistências em que, ao mesmo tempo em que buscavam sanar suas demandas, buscavam uma instituição melhor para estudar. Pensando foucaultianamente, a Marcha não seria a resistência enquanto fenômeno sociológico, mas, sim, a invenção da resistência contra um poder em expansão, no caso, a institucional-educativa. Isso no tocante a demandas estruturais e de lazer como alimentação e espaços de entretenimento - piscina etc. Do mesmo modo, a Marcha serve a propósitos de evidenciar as outras relações de poder, como no futebol, e até da estigmatização pela comicidade da masculinidade subalterna, como poderá ser visto mais à frente com a fotografia de um estudante empunhando o cartaz “baitolas da Martinica”, na Marcha de 1951.

Tive o prazer de participar da Marcha em 2008/2009. É este o momento em que me lembro de uma frase inspiradora e detonadora para a produção deste capítulo: “Não devemos temer nem julgar ilícito nada do que nossa alma deseja em nós mesmos” (HESSE, 2005, p.132). Para mim, o possível élan criativo de um trabalho artesanal de escrita está justamente nesse diálogo que me reaproxima de um movimento de vida, de

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experiência, de captura subjetivada pelo meio em que vivi inspirado por Foucault (2006, p. 77-78), quando este diz que:

[...] há sempre uma espécie de prazer baixamente erótico, talvez, em encontrar uma frase bonita, quando se está entendiado, numa manhã, escrevendo coisas não muito divertidas. Fica-se um pouco excitado, delirando e, bruscamente, aquela bela frase, que se esperava, aparece. Isto dá prazer, isto dá um élan para ir mais longe. Isto acontece, evidentemente.

Acredito que toda escrita se refere a uma bela frase, um belo pensamento, algo inspirador que nós, pesquisadores, temos o privilégio de encontrar ao longo de nossas leituras e escavações da investigação. Isso nos ajuda a produzir um mosaico artístico, arquitetural de nossa história na relação com os outros, do passado e do presente. Uma história de pequenos fragmentos aparentemente insignificantes, mas que são partes escondidas, reveladoras de uma vida. Somos sujeitos interessados, ou seja, implicados no movimento histórico, deixamos nossas pegadas no mundo e o mundo, em piruetas fascinantes, nos faz retornar para tais pegadas, porém, maduras. Por isso, ao falar do jornal O Bonde, retorno, depois de alguns anos, à instituição em que estudei.

É desse local que parto para escrever sobre um ritual ufeviano, que, como aponta Dosse, (2009, p. 73), “el rito es um marcador de identidad por su capacidad de estructuración de la memória”. A Marcha é um dos rituais mais emblemáticos e agregadores que a UFV possui. Um rito engraçado para quem está de fora, mas extremamente intimista para os esavianos de ontem e ufevianos de hoje. No mais, ao tentar tecer esse élan da minha participação na Marcha em 2008, penso que estou expandindo a compreensão atemporal do que significa essa tradição institucional.

No documento jairobardunifilho (páginas 149-153)