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“ [...] puxaria ainda muitos outros fragmentos, miúdos, poderosos, que conservo no mesmo fosso como guardião zeloso das coisas da família”27

Lavoura Arcaica - Raduan Nassar “ [...] em torno de toda a casa e do terreno flutuava uma atmosfera peculiar [...] uma atmosfera que não tinha afinidade com o ar do céu, mas que se havia evolado das árvores senis, das paredes cinzentas, do pântano silente – um vapor pestilento e místico, pesado, inerte, mal perceptível, cor de chumbo”28

“A queda da casa de Usher” - Edgar Allan Poe

Os dois fragmentos apresentados nas epígrafes acima acentuam um caráter especial atribuído a certos objetos e contextos espaciais que, por estarem imersos em um forte conteúdo afetivo, acabam sendo apreendidos como dispositivos acionadores de lembranças. Uma vez acionados e disparados, esses vestígios

27 NASSAR, 1989, p. 63. 28 POE, 2008, p. 158.

viriam a iluminar a percepção de uma “presença de uma ausência”29. Assim, essa

característica, atribuída a certos lugares, objetos e tantos outros rastros deixados pelo tempo, pode adquirir o status de símbolo carregado de múltiplos significados, oferecendo-nos novas possibilidades para se pensar o complexo fenômeno da memória.

Com o objetivo de investigar as possíveis formas de preservação mnemônica, Aleida Assmann, em seu livro intitulado Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural (2011), percorre os meandros da memória, da recordação e do esquecimento, com o objetivo de explorar a maneira pela qual certos suportes materiais interagem, reconstroem e conservam recordações, os chamados espaços da recordação.

Nessa esteira, a autora sublinha que a forma e a qualidade desses espaços são determinadas por fatores de ordem política, social e por suas transformações ao longo do tempo. Ademais, Assmann afirma que os espaços da recordação possuem como traço característico a força de poderem influenciar a constituição da identidade do sujeito, bem como a sua vida. Nas palavras da autora, os espaços da recordação:

[...] surgem por meio de uma iluminação parcial do passado, do modo como um indivíduo ou um grupo precisam dele para a construção de sentido, para a fundação da sua identidade, para orientação de sua vida, para a motivação de suas ações (ASSMANN, 2011, p. 437).

Desse modo, a pesquisadora elenca quatro media mnemônicos que viabilizariam a reconstrução da memória, isto é, ela examina quatro espaços onde a memória se realiza, é guardada e arquivada. Temos, portanto, a escrita, a imagem, o corpo, os locais e os arquivos como vestígios que possibilitam a reconstrução dos fatos pretéritos. Dos quatro media analisados pela estudiosa, nosso foco incidirá nas peculiaridades do “local” como elemento irradiador da memória, visto que nos dois romances selecionados para a presente análise, a casa é um dos elementos que exercem forte influência na vida e no psicológico das personagens.

Ao iniciar sua reflexão acerca da concretização espacial da recordação, Aleida Assmann sublinha que há duas formas de expressões inerentes à memória dos locais. A primeira, denominada genetivus objectivus, caracteriza-se por apresentar uma memória dos locais; já a segunda, a chamada genetivus

subjectivus, diz respeito à recordação situada nos locais. Assim, como um elo entre

as duas expressões vinculadas ao conceito de reminiscência espacial, a autora afirma que ambas possuem a força de serem antropomorfizadas, ou seja, podem adquirir recordações e uma memória mais apurada que a humana.

Consequentemente, Assmann entende que a importância dos locais reside no fato de que eles não apenas

[...] solidificam e validam a recordação, na medida em que a ancoram no chão, mas também por corporificarem uma continuidade da duração que supera a recordação relativamente breve de indivíduos, épocas e também culturas, que está concretizada em artefatos (ASSMANN, 2011, p. 318).

Diante dessas características expressas pela força vinculativa dos locais à memória, a autora frisa que um dos fatores responsáveis pela apresentação de uma aura especial atribuída aos lugares deve-se ao fato deles reverberarem uma forte conexão com as histórias familiares. Temos, dessa forma, a manifestação dos chamados “locais de gerações”.

Caracterizados por transmitirem uma concepção de continuidade e estabilidade, a esses locais são designados a tarefa de estabelecimento de fortes vínculos entre os indivíduos que ali residem e os mitos da sua família. Nesse sentido, entende-se que, na topografia desses locais de gerações, repercute-se um resistente pacto consanguíneo entre o sujeito e sua linhagem. Consequentemente, essa tipologia espacial apresenta dois lados antagônicos: se, por um lado, ela pode se tornar um marco representativo de orgulho e imponência da família; por outro, pode ser a fonte causadora de sentimentos como o de enclausuramento e sofrimento, bem como uma das causas responsáveis pela petrificação das relações sociais. Assim, no entender de Assmann:

O significado dos locais das gerações surge do vínculo duradouro que famílias ou grupos mantêm com um local determinado. Assim surge uma relação estreita entre as pessoas e o local geográfico: este determina as formas de vida e as experiências das pessoas, tal como estas impregnam o local com sua tradição e histórias (ASSMANN, 2011, p. 328).

Se o fio condutor dos “locais de geração” recai sobre a noção de estabilidade, nos denominados “locais honoríficos” o lema é a fragmentação. Apresentando uma antítese em relação à classificação anterior, os espaços honoríficos caracterizam-se por apresentarem um ambiente repleto de ruínas ou escombros remanescentes de vidas que foram interrompidas pelas adversidades da existência.

Expondo verdadeiros “fósseis de uma época passada” (ASSMANN, 2011, p. 334), tais locais encenam uma consciência fragmentada do passado de vivências que se extinguiram ou que foram esquecidas. Por intermédio da degradação ou destruição dos espaços honoríficos, seguido pela condensação de um abundante conteúdo mnemônico sobre os materiais que resistem ante a ação corrosiva e destruidora do tempo, vemos que esses vestígios deixados pelo passado podem se transformar em substratos para a elaboração de várias narrativas transmitidas, por meio de tradições orais, e servirem de referência para a constituição de uma nova memória cultural.

Nesse caminho, consoante as reflexões da pesquisadora:

No local honorífico, uma determinada história não seguiu adiante, mas foi interrompida de modo mais ou menos violento. Tal história se materializa em ruínas e objetos remanescentes que se destacam nas redondezas. O que foi interrompido cristaliza-se nesses restos e não estabelece qualquer ligação com a vida local do presente, a qual não só prosseguiu, como também avançou para além dos restos sem nem tomá-los em conta (ASSMANN, 2011, p. 328).

Como pode ser observado pelas reflexões cima apresentadas, verifica-se que a configuração espacial se destaca entre os demais espaços da recordação devido a sua perenidade e inércia, assim como por ser um medium que se encontra imerso no pântano da subjetividade. A forte aura irradiada por esses dois locais de memória pode estar estreitamente relacionada ao vínculo familiar estabelecido entre os descendentes e os ascendentes.

Como conclusão, recapitulamos nosso objetivo com o presente subcapítulo, o qual foi apresentar algumas considerações acerca do caráter especial atribuído ao espaço como um dispositivo acionador de memórias. Conforme verificaremos nas análises dos dois romances, as residências das famílias Sutpen e Honório Cota constituem uma verdadeira fonte das memórias dessas duas dinastias e, consequentemente, um potente intensificador dos mitos familiares.

A seguir, adentraremos o denso universo ficcional de William Faulkner e Autran Dourado. Percorreremos as ruas das cidades de Jefferson e as de Duas Pontes em busca de informações sobre o legado deixado pelas famílias Sutpen e Honório Cota. Invadiremos a decadente mansão construída pelos patriarcas Thomas Sutpen e o sobrado arquitetado pelo misterioso Lucas Procópio com o intuito de desvendarmos as ambições, os segredos, as angústias e as tragédias que unem

essas duas famílias condenadas, seus descendentes e ascendentes, os vivos e os mortos.

Figura 5. Piet Mondrian, A árvore vermelha, 1908, óleo sobre tela, 70 x 99 cm. Coleção Haags,