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A mediação educacional da disparidade racial de riqueza

4 Educação, raça e riqueza

4.2 A mediação educacional da disparidade racial de riqueza

Dentre os ricos, mais de 74% das pessoas possuem ao menos curso superior completo, indicando uma forte prevalência de altos níveis de ensino. Por outro lado, das pessoas com curso superior completo, apenas cerca de 10% são ricas. Em outras palavras, há uma minoria de pessoas altamente escolarizadas que compõe uma porção majoritária dos ricos: os ricos altamente escolarizados. Não apenas a conclusão do nível superior de ensino como também as diferenças em termos de área de formação constituem um crivo importante na composição desse grupo de pessoas. Diante disso, espera-se que parte da disparidade racial de riqueza seja mediada pela desigualdade educacional entre negros e brancos, especialmente quando se consideram as diferenças em termos de área de formação no ensino superior. Isso porque as pessoas negras são menos frequentes em cursos associados a maiores rendimentos. Nesse sentido, cabe perguntar em que medida a disparidade racial de riqueza é mediada por desigualdades educacionais, o que também significa perguntar em que medida, tudo mais permanecendo constante, a eliminação da desigualdade educacional entre negros e brancos corrigiria a disparidade racial de riqueza.

Essa é uma questão relevante não apenas do ponto de vista teórico, mas também prático. Por um lado, dada a ciência de que a desigualdade socioeconômica entre negros e brancos é substancialmente mediada por desigualdades educacionais, no Brasil, têm-se recentemente amadurecido ações visando à maior inserção de negros no nível superior de ensino. Por outro lado, mais recentemente sancionou-se lei prevendo reserva de vagas para negros nas contratações no

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âmbito da administração pública federal, das fundações e empresas públicas, assim como das sociedades de economia mista controladas pela União. Nesse último caso, a motivação é a ideia de que parte substancial da desigualdade racial de renda não é mediada por desigualdades educacionais, fazendo-se necessário intervir diretamente no mercado de trabalho. Sendo o funcionalismo público um segmento com elevada renda média, onde se concentram algumas carreiras com altos rendimentos, é de se esperar que essa política funcione em alguma medida como um mecanismo de inserção de pessoas negras nos estratos mais ricos, ou seja, de correção da disparidade racial de riqueza. É importante, portanto, também do ponto de vista prático, investigar em que medida a disparidade racial de riqueza é mediada pela desigualdade educacional entre negros e brancos. Na medida em que ela o é, ações afirmativas no sistema de ensino ganham suporte. Na medida em que ela não é, ganham suporte também propostas de ação afirmativa voltadas diretamente para o mercado de trabalho.

Para acessar empiricamente essa questão, utiliza-se a lógica dos efeitos parciais. A ideia é lançar um modelo básico para obter um coeficiente associado à variável raça, o qual expresse o quanto a condição de negro afeta a probabilidade de que alguém pertença ao grupo dos ricos. Ao acrescentar-se o controle pelos níveis educacionais, espera-se que essa associação se reduza, porque parte da relação entre raça e riqueza é explicada por diferenças educacionais entre negros e brancos. Essa redução deve ser ainda maior quando se consideram as diferentes áreas de formação, pois a escassez de negros nas formações de elite cumpre também um papel importante nessa mediação. Utilizam-se, assim, três especificações para o modelo de regressão logística. Na primeira não há indicadores de nível educacional. Na segunda toma-se a educação superior como um bloco. Na terceira, a educação superior é desagregada em termos de áreas de formação. O controle pela segmentação regional e pela residência em zonas rurais ou urbanas foi implementado pela limitação da amostra às pessoas com residência urbana na região sudeste. A variável idade foi incluída, mas não com um termo quadrático. Uma modelagem através de regressão linear da relação entre idade e renda aponta para o entorno dos 57 anos como o ponto de pico na variação da renda em função da idade. Esse número é bem próximo dos 60 anos, idade máxima incluída na amostra em estudo, com o que a especificação do padrão curvilíneo não acrescenta muito em informação. Considerando isso, e diante das dificuldades no trato adequado com termos quadráticos em regressões logísticas (Norton et al., 2004), optou-se pela inclusão da variável idade

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simplesmente em termos de anos completos. Cada uma das três especificações foi aplicada em separado para homens e mulheres. A Tabela 4.1 apresenta os resultados:

Tabela 4.1: Razão de chances de riqueza com três níveis de controle para a educação. Brasil, sudeste urbano, renda igual ou superior a um salário mínimo, 2010.

Razão de Chances

Sem controle por educação Educação Geral Educação Específica

Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres

Fundamental Completo - - 1,989 1,435 1,991 1,471 Médio Completo - - 4,648 3,196 4,659 3,339 Superior Completo - - 37,518 21,652 - - Medicina - - - - 129,030 130,424 Direito - - - - 44,0924 59,691 Administração, Comércio e Economia - - - - 36,104 28,095 Engenharia, Produção, Arquitetura - - - - 51,030 54,233 Serviços, Transporte, Proteção - - - - 33,688 15,040 Jornalismo e Informação - - - - 29,459 32,121 Agricultura e Pesca - - - - 37,442 32,255 Continua

95 Ciências Biológicas, Física, Matemática - - - - 19,680 11,941 Saúde - - - - 17,180 15,478 Humanidades, Letras, Psicologia - - - - 13,208 11,910 Formação de Professores, Ciências da Educação - - - - 8,017 4,083 Mestrado ou Doutorado - - 111,400 73,530 112,653 107,567 Idade 1,057 1,049 1,065 1,055 1,064 1,062 Negro 0,149 0,144 0,339 0,293 0,357 0,334

Fonte: IBGE - Censo Demográfico 2010 - Microdados. Elaboração própria.

O modelo mais básico inclui apenas as variáveis raça e idade. A razão de chances indica que, considerando zonas urbanas da região sudeste, negros e negras têm algo em torno de 14% das probabilidades que pessoas brancas têm de estarem entre os mais ricos. Quando se inclui a educação em geral no modelo, a desvantagem das pessoas negras se reduz substancialmente. Os negros têm agora quase 34% das probabilidades que os brancos têm de estarem entre os homens mais ricos. Entre as mulheres, essa mudança é menor, com a razão de probabilidades entre negras e brancas indo a 29%. Como esperado, a especificação dos indicadores educacionais por áreas de formação leva a uma redução ainda maior dos efeitos diretamente associados à raça. A razão de probabilidades passa a 36% entre os homens e a 33% entre as mulheres.

Quanto à educação em si, pode-se ver na segunda especificação do modelo uma razão de chances da ordem de 37 associada ao nível superior de ensino. Como ainda é relativamente pequena a probabilidade de ser rico condicional à conclusão de nível superior (menos que 10% das pessoas com esse nível de instrução são ricas), esse número ainda pode ser interpretado como indicação de que pessoas com curso superior completo são, grosso modo, 37 vezes mais prováveis

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de estarem entre os ricos do que pessoas sem esse nível educacional. Quando se considera a terceira especificação dos modelos, observa-se a grande heterogeneidade existente entre as áreas de formação no que se refere à relação com a riqueza. Previna-se, contudo, de interpretar todas as razões de chance como razões de probabilidade já que, nesse caso, para alguns cursos, a probabilidade de ser rico é bastante alta. Assim, embora as razões de chance apontem para uma associação global muito forte entre a riqueza e as formações nas áreas da Medicina, do Direito, das Engenharias, assim como a conclusão do doutorado, não é propriamente acertado dizer que, entre os homens, médicos têm uma probabilidade de serem ricos 129 vezes maior que os não médicos, mantidas constantes as outras variáveis do modelo. Nesse caso, a razão de chances não é uma boa aproximação da razão de probabilidades.

Esses resultados permitem avançar duas conclusões. A primeira delas é que a disparidade racial de riqueza é consideravelmente mediada pela desigualdade educacional entre negros e brancos, mas que, embora substancial, essa mediação está longe de ser definitiva. Reduzir ou, virtualmente, eliminar a desigualdade educacional entre negros e brancos, mesmo incluindo aquela em termos de áreas de formação, reduziria a disparidade racial de riqueza, mas nem de perto a eliminaria. Em boa medida, isso se deve ao próprio fato de que a educação apenas moderadamente explica a participação no grupo dos ricos. Igualdade educacional, portanto, mesmo em se tratando de uma igual distribuição dos grupos raciais pelas diferentes áreas de formação, não significaria iguais oportunidades de riqueza. Assim, a correção da desigualdade racial na educação constitui um mecanismo efetivo, mas não definitivo para a correção da disparidade racial de riqueza.

A segunda conclusão é a de que a contribuição da desigualdade por áreas de formação para a disparidade racial de riqueza é relativamente discreta. A segunda especificação do modelo mostra uma correção substancial quando se controla a desigualdade em termos de educação em geral. A terceira especificação, que considera as diferenças por áreas de formação, leva a uma correção adicional relativamente modesta. A contribuição da desigualdade educacional para a disparidade racial de riqueza parece estar mais relacionada ao baixo acesso de pessoas negras ao nível superior de ensino do que às diferenças por área de formação no interior desse nível.

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