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2 A CONTEMPORANEIDADE E O PÓS-MODERNISMO

3.1 Alguns aspectos da poética pós-modernista

3.1.2 A experimentação de linguagem

3.1.2.1 A mescla de suportes

7 Hamsun apoiou a Alemanha quando da ocupação da Noruega e escreveu diversos artigos defendendo o regime

nazista, apesar de nunca ter se tornado oficialmente membro do partido. Ganhou o prêmio Nobel de literatura em 1920 por seu livro Os frutos da terra (Markens Grøde, 1917) cuja medalha ofereceu a Josef Goebbels, na ocasião em que se encontrou com ele e com Adolf Hitler em 1943. Depois da guerra, Hamsun foi preso, julgado e penalizado por suas opiniões políticas.

Glaucha é um romance nada convencional, tendo sua estrutura montada pela utilização de diversos recursos de comunicação, sobretudo visuais. Percebe-se que o desejo de criar algo novo não é apenas uma vontade das personagens, mas é também um objetivo do romance. A configuração dos textos é entrecortada por desenhos, figuras, fotografias, poesias concretistas, além de contemplar também uma peça de teatro e um roteiro de cinema, como visto anteriormente. O apelo visual é evidente em Glaucha. Ao folhar o livro, o leitor se pergunta se o que tem nas mãos seria mesmo um romance. Santiago (1989) esclarece o que se pode entender por romance contemporâneo. Observe-se:

Torna-se difícil classificar o que seja ou não romance hoje. Há uma explosão das regras tradicionais do gênero, característica aliás dos momentos de transição literária, quando os padrões comuns que determinam a estética do gênero em determinado período histórico passam a ser insuficientes (ou repressivos e até mesmo inconseqüentes), não possibilitando a expressão de novos anseios e de situações dramáticas originais. [...] Quem é que ousaria chamar de romance, no final da década de 20, a Memórias sentimentais de

João Miramar e a Macunaíma? [...] Se hoje ainda há alguma voz discordante

quanto à inclusão desses livros no gênero romance, ela vem de meio intelectual altamente conservador. [...] A anarquia formal não deve ser tomada, a priori, como um dado negativo na avaliação da literatura em prosa de agora. Pelo contrário. Demonstra a vivacidade do gênero, capaz de renascer das próprias cinzas; fala da maleabilidade da forma, pronta para se moldar idealmente a situações dramáticas novas e díspares; e exprime a criatividade do romancista [...] (1989, p. 33-34).

Romance que adota essa “anarquia formal”, Glaucha dispõe de todos os tipos de recursos, sem haver preocupação com qualquer limite imposto pelo que se costuma entender como gênero literário tradicional. O texto é trabalhado com a utilização da poesia concretista, com disposições inovadoras nas páginas, usando enfaticamente travessões, espaços, caixas- altas, listagem de palavras. O intento parece mesmo ser o de quebrar qualquer laço com os romances tradicionais.

A aparição do concretismo em meio à narrativa é mais um recurso de expressão dos personagens. Glaucha conta sobre a vez em que um senhor idoso a entrega, junto com seu companheiro, à polícia, quando estavam escondidos em um canto escuro da rua. A cólera do delator é expressa dessa forma:

R I Furiar! Arfriu! F Furiar! Arfriu! R Furiar! Arfriu! Ã Furiar! Arfriu! U (RIBEIRO, 1989, p. 18).

Aqui há uma espécie de poesia concretista construída pelo jogo de palavras, que parece aludir à respiração ofegante do acusador. Em outro momento, o concretismo é um recurso para contar um fato da vida de um dos personagens do livro, Valnei:

[...] Valnei, em 1966, ganhou um concurso de poesia no Grupo Escolar Conde de Afonso Celso, com um poema dedicado à sua musa; segundo o Seu João Maria, que tocava a sineta, uma verdadeira jóia do concretismo: CASTIGO PRIMÁRIO EU AMO A PROFESSORA EU AMO A PROFESSORA EU AMO A PROFESSORA [...] (RIBEIRO, 1989, p. 82-83-84).

A frase “eu amo a professora” é repetida exatamente cem vezes no romance, ocupando três páginas, como um castigo no quadro negro, mas ironicamente vista como exemplar da poesia concretista pelo homem que tocava a sineta do colégio. Assinala-se, ainda, a já citada transformação do texto em uma peça teatral, com rubricas para os atores, inclusive, e também a presença do roteiro de cinema, com a disposição de vídeo/áudio, descrição dos cenários e enquadramentos, enfim, um roteiro pronto para ser filmado.

Além da subversão da palavra escrita e da preocupação com sua diagramação, o romance utiliza outros suportes, como ilustrações, fotografias, figuras. Ao apresentar o manifesto da doutrina “zecalencarista”, mostram-se exemplos de projetos e fotografias segundo os preceitos do movimento. Na figura 1, há um “projeto zecalencarista”, que propõe o uso de chapéus nos pés e sapatos na cabeça, meias em lugar de cachecóis e luvas. A inversão da lógica, do pré-estabelecido é coerente com a proposta de subversão e libertação do pensamento delineada pelo movimento.

Figura 1: “Projetos” (RIBEIRO, 1989, p. 36)

Na figura 2, vê-se um menino fotografado na rua, como se cheirasse alguma coisa, muito provavelmente cola de sapateiro. O menino descalço, só, é uma figura-símbolo do abandono e da condição precária do país em relação à juventude, é um retrato do mundo marginalizado que está sendo mostrado pelo movimento “zecalencarista”. Note-se a referência ao cineasta Glauber Rocha que, com sua estética da fome, acreditava que a exibição das mazelas funcionava como ponto de partida para a discussão dos problemas.

Figura 2: “Fotos Zecalencaristas” (RIBEIRO, 1989, p. 39)

Percebe-se que o manifesto “zecalencarista” utiliza muitos recursos visuais. Na figura 3, vê-se uma aglutinação de AI – 5, o Ato Institucional número 5, decreto emitido pela ditadura militar brasileira em 13 de dezembro de 1968, que deu ao regime poderes absolutos

ao fechar o Congresso Nacional por quase um ano. Mediante esse ato, estabeleceu-se a forte censura e o cerceamento das liberdades individuais no país. O movimento “zecalencarista” propõe o uso da figura criada como broche, provavelmente para que nunca seja esquecido esse período da história do país.

Figura 3: Trecho do Manifesto Zecalencarista (RIBEIRO, 1989, p. 43)

A figura que segue na mesma página ilustra a proposta de transformar vocábulos em híbridos feminino-masculinos. Nessa página, é possível notar como as ilustrações são estruturadas dentro do texto e contribuem para a explicitação do significado proposto.

Não é apenas no manifesto do “Zecalencarismo” que são usados suportes visuais. Todo o romance é perpassado por eles. A figura 4 é uma ilustração da relação entre Glaucha e suas amantes, em que um triângulo amoroso é composto por ela, Jocélia e Samantha. O meio do triângulo é ocupado pela palavra cicatrizes (sic atrizes do título do romance). Um círculo está dentro da figura, podendo representar o mundo da personagem abarcado pelo amor das três mulheres. Percebe-se, então, que as figuras não estão dispostas ao acaso, pois delas também o leitor pode (e deve) extrair significação.

Figura 4: Triângulo do amor feminino (RIBEIRO, 1989, p. 25)

Na figura 5, os pensamentos da personagem Samantha são expressos sob a forma de desenho. Suas memórias infantis perpassam o aprendizado das vogais, o de contar até dez, o de começar a ser alfabetizada ao escrever Eva viu a uva. Seguem desenhos comuns às crianças pequenas, como o barquinho e a casinha. O devaneio tem ainda a trilha sonora de uma canção infantil, o marcha soldado e, por fim, uma letra infantilizada escreve a frase o dois é uma marrequinha nadando. O leitor tem a impressão de entrar no pensamento da personagem, visualizando suas memórias infantis.

Figura 5: “Samantha lembra” (RIBEIRO, 1989, p. 73)

O próprio roteiro de cinema já referido é também ilustrado. Uma espécie de storyboard8 finaliza o roteiro. Veja-se na figura 6: as ilustrações estão dispostas dentro do que

parece ser uma tela de televisão, seis figuras desconexas, fragmentadas, assim como a 8 Roteiro desenhado em quadros, projeto de seqüência de cenas cinematográficas.

narrativa como um todo. Uma montagem cinematográfica, pois. As imagens parecem ilustrar os pensamentos dos personagens, combinando um quadro do roteiro de cinema, em que aparecem a bailarina e o maestro, um spot de luz, um olhar feminino, uma mulher nua sendo observada, uma espécie de radar observado por um alienígena.

Figura 6: Roteiro de cinema (RIBEIRO, 1989, p. 95)

Muito pode ser inferido a partir das ilustrações que perpassam todo o romance, aliando novos suportes ao texto literário, provocando o leitor para novos desafios interpretativos que complementam o texto escrito, enriquecendo-o.