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A metáfora na retórica de I A Richards

Capítulo III A Frase Enquanto Unidade Metafórica (O Nível da Frase)

3.2. A Metáfora e a Semântica do Discurso

3.2.1. A metáfora na retórica de I A Richards

Segundo Ricoeur, a obra The Philosophy of Rethoric de I. A. Richards194 não se insere

dentro da tradição da semântica da frase, mas radicaliza mais a concepção linguística de E. Benveniste, que dá primazia a frase.

Richards adota uma definição de retórica onde não é difícil mostrar que subjaz uma concepção semântica. Ele toma sua definição de retórica de um dos últimos grandes tratados ingleses do século XVIII, o do arcebispo Whateley: “a retórica é uma disciplina filosófica que visa ao domínio das leis fundamentais do uso da linguagem”195.

Tal definição restitui a amplitude da retórica grega a partir de cada um dos seus elementos. Ao mesmo tempo em que insiste no emprego das leis fundamentais do uso da linguagem, Richards situa a retórica no plano propriamente verbal da compreensão e da comunicação, isto é, numa teoria do discurso que radicaliza mais a concepção linguística de E. Benveniste, que dá primazia a frase.

A retórica renovada de Richards tem como principal interesse da retórica a comunicação, e não a persuasão, apresentando um tipo de estudo da competência

194 RICHARDS, I. A., The Philosophy of Rhetoric, Oxford, Oxford University Press, 1971. 195

comunicativa, uma análise dos “equívocos e de seus remédios”196. E é neste sentido que todo o

projeto retórico do autor é dedicado a restabelecer os direitos do discurso a expensas dos da palavra, renunciando à identificação entre palavra e ideia. Além disso, Richards mostrava-se hostil às taxionomias disponíveis da retórica clássica que conferia à metáfora um valor absoluto, como aqueles significados das palavras que são figuras substituíveis, sem qualquer referência que pode se opor à metonímia à sinédoque.

A análise de Richards volta-se contra a distinção cardeal em retórica clássica entre sentido próprio e sentido figurado. Revertendo a relação de prioridade entre a palavra e a frase, para ele, as palavras não têm significação própria dentro da língua; elas não possuem nenhum sentido em si mesmo; somente no discurso tomado como um todo, isto é, na interação dos contextos de fala, é que a palavra transmite o sentido de maneira indivisa. É o discurso o portador-distribuidor do sentido das palavras. É, em nome de uma teoria francamente contextual do sentido – teoria resumida no “teorema contextual da significação”197– que Richards pode condenar a noção de sentido próprio:

O discurso subordina o sentido atual da palavra ao sentido totalmente circunstancial da frase, mas não o dissolve nela. É que, nele, a semântica permanece em tensão com uma semiótica que assegura a identidade dos signos por meio de suas diferenças e de oposições. […] Com I. A. Richards, entramos em uma semântica da metáfora que ignora a dualidade de uma teoria dos signos e de uma teoria da instância de discurso, e que se edifica sobre a tese da interanimação de palavras na enunciação viva. A retórica como “estudo da incompreensão e dos remédios propostos a ela” (p. 3) deve ensinar a dominar os deslocamentos de significação que asseguram a eficácia da linguagem.198

I. A. Richards explicita na conferência intitulada “L’Interanimation des mots” a configuração constitutiva da linguagem que “se edifica sobre a tese da interanimação de palavras na enunciação viva”199. E é sobre essa teoria da interpenetração das partes do

discurso que se edificará a teoria da interação, própria à metáfora.

196 RICHARDS, I. A., The Philosophy of Rhetoric, p. 3 apud. Ibid.,p. 127.

197 RICHARDS, I. A., The Philosophy of Rhetoric, p. 40, apud RICOEUR, A Metáfora Viva, p. 124. 198 Ibid.,p. 127.

199

É a partir deste tipo de posicionamentos que uma teoria da interação começa a se desenvolver, no contraponto de uma concepção puramente substitutiva de metáfora.

Em “The meaning of meaning”, escrito em parceria com C.K. Ogden, I. A. Richards considerou a metáfora como o uso de uma referência a um grupo de coisas que estão relacionadas segundo uma forma particular, para descobrir uma relação similar em outro grupo200. O que torna o funcionamento e o próprio pensamento metafórico por excelência. É

exatamente para tal clarificação que se voltam as duas conferências consagradas por Richards à metáfora (V e VI conferências).

Em primeiro lugar, contrariamente a Aristóteles, que considerava o domínio da metáfora dom de gênio que não pode ser ensinado, para I. A. Richards, a linguagem é vitalmente metafórica; por isso, a metáfora longe de ser um desvio em relação à operação comum da linguagem,

Longe de ser um desvio em relação à operação comum da linguagem, a metáfora é o princípio onipresente em toda a sua ação livre; não constitui um poder adicional, mas a forma constitutiva da linguagem, [...] a metáfora diz respeito às próprias profundidades da interação verbal.201

No contexto da frase, a metáfora aparece mantendo

dois pensamentos de coisas diferentes simultaneamente ativas no seio de uma palavra ou de uma expressão simples, cuja significação é resultante de sua interação. Não se trata de um simples deslocamento de palavras, mas de um comércio entre pensamentos, isto é, de uma transação entre contextos.202

Para I. A. Richards, a metáfora que aparece como tal no contexto da frase mantém dois significados diferentes, mas simultaneamente ativos, no interior de uma palavra ou de uma expressão simples cuja significação é resultante da sua interação. Dois pensamentos estão entre si como uma ideia que aparece em primeiro lugar e uma ideia subjacente que aparece

200 Cf. OGDEN, CHARLES KAY, IVOR, ARMSTRONG, RICHARDS, The Meaning of Meaning. London,

Routledge and Kegan Paul, 1930, p. 213.

201 RICOEUR, Paul, A Metáfora Viva, p. 128. 202

através da primeira. Por isso, propôs denominar “conteúdo” (tenor) a idéia subjacente, e “veículo” (vehicle) a idéia sob cujo signo a primeira é apreendida.

Mas importa notar justamente que a metáfora não é o “veículo”: ela é o todo constituído pelas duas metades. A metáfora resulta da co-presença e da interação dos dois termos. Por consequência, o “conteúdo” não pode conservar-se inalterado e o “veículo” não deve ser tomado como mera veste ou ornamento. É por intermédio da tensão que tanto a semelhança como a diferença entram em jogo e, porventura, a alteração que o “veículo” imprime no “conteúdo” deve-se muito mais à diferença do que à semelhança.

Por essa concepção de algum modo psicológica da metáfora, se poderia supor, segundo Paul Ricoeur, que todo par de pensamentos abreviados numa única expressão, constituiria uma metáfora. Para evitar esse tipo de generalização psicológica, Richards introduz a noção de desnivelamento, ou seja, o processo metafórico, no qual dois pensamentos pertencem a níveis distintos, no sentido de que se descreve um pelos traços do outro. Este desnível entre duas ideias que aparecem simultaneamente faz o caráter próprio da metáfora, que assim fica diferenciada de qualquer outra ideia que, como tal, na frase, segundo Richards, é sempre resultado do contexto, isto é da interação.203

Em suma, Richards considera que as palavras não têm significações próprias. Só no contexto ou em situação discursiva, diz ele, elas adquirem significado. Ele nasce da interação entre as palavras. O mesmo se pode dizer da metáfora. Ela se constrói na interação entre as partes do discurso. E por isso, se pode afirmar que a metáfora é o princípio omnipresente em toda a sua ação livre da constituição da linguagem.204

203 Cf. RICOEUR, Paul, A Metáfora Viva, p. 129. 204